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O estupro (culposo) do Direito

Dizem que os governantes ficam de orelha em pé quando um movimento social eclode em um país vizinho. Morrem de medo que a insatisfação popular ganhe asas e se espalhe mundo afora, vindo a atingir as nossas pacatas e incríveis democracias. A história nos mostra que talvez eles estejam carregados de razão. Exemplos de insurreições que se espalharam, temos aos montes. Para o bem e para o mal. Ultimamente, no entanto, temos presenciado um outro fenômeno: o espraiamento do antidireito, do Direito ao contrário. Esse movimento parece ter chegado para ficar. Comecemos pelo “estupro culposo”. Essa expressão ganhou força e voz crescente nas redes sociais essa semana, mas a verdade é que ela não consta da sentença que absolveu o rapaz de Santa Catarina, acusado de estupro contra vulnerável, crime previsto no Código Penal. Independentemente disso, a expressão parece ter feito sentido aos ouvidos de milhares de cidadãos, leigos em Direito, que assistiram, espantados, ao desenrolar de uma audiência virtual onde a vítima de estupro foi achincalhada e humilhada pelo advogado do acusado. A notícia e os vídeos se espalharam com uma rapidez estonteante pelas redes e uma considerável parte dos internautas saiu imediatamente em defesa de mais uma vítima do machismo estrutural brasileiro. E por que se revoltaram com o tal “estupro culposo”? É porque tal figura teria um antecedente histórico. Sim, ele bem que poderia ser um parente da “legitima defesa da honra”, nascida no famoso caso de Doca Street e Angela Diniz na Praia dos Ossos, em Búzios. Quem viveu nos anos 80 sabe do que estou falando. O caso rumoroso do “dândi” que matou a namorada porque ela o traiu. Matou em defesa de sua honra aviltada. Os mais jovens podem não acreditar, mas foi essa a tese vencedora. Doca foi absolvido em primeira instância. Da mesma forma que o tal estupro culposo, a legítima defesa da honra também não existia em nosso ordenamento jurídico. Mas não é que a ideia “pegou”? Pois é. Estupro culposo seria o “primo” moderno da legítima defesa da honra. O antecedente comum? O ódio à mulher. Por isso fez tanto sentido na cabeça de tantos leitores. A mesmíssima ideia de que elas, as mulheres – ah, essas terríveis mulheres - provocam os piores instintos nos homens. Lembramos da legítima defesa da honra, mas passamos recentemente também pela figura jurídica até então desconhecida da “propriedade de fato”, figura esta que “aprendi” quando do episódio de um certo tríplex. Passeamos também pelo território do domínio dos fatos – porque a “literatura” assim parecia permitir. Invertemos a presunção da inocência e adentramos na nova presunção da culpa, em direito penal, para permitir a prisão em segunda instância. E voilà! Por que não chegaríamos ao estupro culposo? Seria o caminho esperado. Enfim, os tempos recentes estão repletos de exemplos de agressões ao direito – e às mulheres, é claro. Sabendo-se de antemão que tais movimentos se alastram rapidamente, já posso até esperar a criação das atenuantes para a nova modalidade desse novo crime. Em ordem decrescente de culpabilidade, poderíamos ter: o estupro consentido; o estupro tolerado; o estupro meramente admitido; o estupro de boa-fé e, finalmente, o estupro não merecido porque a mulher é feia (esta última atenuante inspirada em episódio recente envolvendo figuras públicas nacionais). Ainda que o tal “estupro culposo” não tenha sido reconhecido na sentença, a verdade é que a tendência ao antidireito avança. A passos largos. Assim como as insurreições, essas ideias podem “colar”, se espalhar, tomar conta de fóruns, “iluminar” juristas e influenciar a opinião pública. Inspiradas sobretudo por um falso moralismo. Ou descarada má-fé. Futuramente, talvez alguém diga: “o Direito foi violado, mas culposamente. Não tínhamos a intenção de violá-lo. Queríamos apenas melhorar o Brasil. Não fizemos por má-fé”. Estejamos atentos. A figura da “má-fé culposa” está a caminho.  * Juíza do Trabalho aposentada do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região.

A greve dos Correios de 2020 e a necessidade de superação de uma jurisprudência trabalhista incoerente

Na ADI 3423 (e outras julgadas em conjunto)1, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade dos §§2º e 3º do art. 114 da Constituição, na redação da EC 45/2004. A Corte utilizou como argumentos centrais aptos a sustentar a constitucionalidade da exigência do comum acordo para o dissídio coletivo de natureza econômica: (i) inexistência de violação ao acesso à justiça, pois se trata de criação de novo direito, e não de aplicação de direito pré-existente; (ii) a necessidade de reduzir a intervenção estatal nas relações coletivas de trabalho. Nesse contexto, não se pode deixar de apontar a grave incoerência da jurisprudência dos tribunais trabalhistas, inclusive do Tribunal Superior do Trabalho, com o que decidido pelo Supremo Tribunal Federal. O STF enaltece a liberdade dos entes coletivos e preconiza a supressão ou redução da intervenção estatal nos conflitos coletivos de trabalho, destacando que tal postura supostamente seria a mais democrática. Nesse diapasão, a única conclusão possível é a de que o Estado não pode igualmente intervir, em princípio, nos dissídios coletivos decorrentes de greve, pelo menos não com a intensidade que vem sendo adotada pelos tribunais trabalhistas. Tome-se como exemplo a greve dos Correios realizada no ano de 2020. A decisão do Tribunal Superior do Trabalho, julgando o dissídio coletivo de greve2, pode ser assim sintetizada: - (i) atuação da Justiça do Trabalho nos dissídios coletivos de natureza econômica passou a ter contornos de arbitragem, em decorrência da necessidade do comum acordo entre os envolvidos; - (ii) nos casos de dissídios coletivos de greve, o Judiciário Trabalhista poderia atuar mesmo sem comum acordo, “a bem da sociedade”. Por não ter sido, nessa hipótese, eleita pelas partes, o poder normativo da Justiça do Trabalho ficaria “restrito aos limites constitucionais e legais, preservando as normas convencionais pré-existentes, o que significa aquelas decorrentes do último instrumento normativo oriundo de negociação coletiva. Nessa hipótese, não é possível impor normas que venham a onerar economicamente a empresa, mas apenas cláusulas sociais que melhorem as condições de trabalho na empresa”; - (iii) a Lei 13.467/2017, assim como a jurisprudência do STF, impedem a ultratividade de normas coletivas; - (iv) no caso concreto, houve recusa patronal em negociar e a proposta formulada pela empresa foi “superlativamente redutiva de vantagens”; - (v) por se tratar de greve de longa duração, admitiu-se a compensação de apenas 50% dos dias parados, com desconto de apenas 50% dos dias restantes; - (vi) o Tribunal deferiu apenas as cláusulas econômicas aceitas pela empresa, e estabeleceu mais algumas cláusulas sociais que não implicavam ônus financeiro para o empregador. Foi deferido, também, reajuste salarial em percentual ligeiramente inferior ao INPC do período; - (vii) composto o dissídio coletivo pela sentença normativa, o TST determinou a imediata cessação de greve e o retorno imediato dos trabalhadores ao serviço, sob pena de multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais) aos sindicatos promotores da greve, “uma vez que eventual paralisação posterior ao julgamento do feito já não se dirige mais contra a Empresa, mas contra a própria Justiça do Trabalho”; - (viii) por fim, o acórdão autorizou a dispensa por justa causa do empregado que prosseguisse em greve no dia seguinte à data do julgamento. Com o devido respeito à instituição Tribunal Superior do Trabalho, e aos seus integrantes, deve ser demonstrado com clareza que o julgado – que representa a jurisprudência trabalhista prevalecente sobre o tema – institui sistema absolutamente incoerente no trato das relações coletivas de trabalho, violando a diretriz jurisprudencial fixada pelo STF. Veja-se que julgar as reivindicações econômicas da categoria sem o comum acordo das partes já constitui, por si só, violação ao art. 114, §2º, da CF, cuja higidez constitucional foi referendada pela Suprema Corte na ADI 3423. Não é possível que o Tribunal Trabalhista decida o conflito econômico, se não houver o comum acordo, que é exigido pela Constituição para o processamento do dissídio econômico, vale dizer, para que se possa ter uma decisão a respeito das reivindicações econômicas da categoria. Entender diferentemente faria com que o requisito constitucional do comum acordo fosse facilmente burlado: bastaria, para tanto, deflagrar greve e, em seguida, ajuizar dissídio coletivo de greve, fazendo com que o Tribunal decidisse as reivindicações econômicas da categoria. No entanto, decidir as reivindicações da categoria constitui objeto específico do dissídio de natureza econômica3. De duas, uma: ou se parte para um sistema de efetiva liberdade dos entes coletivos (sindicatos e empresas) para negociar coletivamente e assumir as consequências da greve; ou se admite o intervencionismo do Estado nos conflitos coletivos. O que não se pode é estabelecer um intervencionismo seletivo e pela metade, apenas com o fim de coibir os movimentos grevistas a pretexto de resguardar um suposto “bem maior da sociedade”. Veja-se a manifesta incongruência: de um lado, diz-se que o Estado não pode intervir nos conflitos coletivos de trabalho pela via do dissídio coletivo, porque isso supostamente seria antidemocrático e paternalista; de outro, quando os trabalhadores resolvem assumir o risco do movimento grevista, com todo o desgaste daí decorrente – inclusive o corte de salários, placitado pela jurisprudência ­–, a Justiça do Trabalho intervém de forma incisiva, para determinar o imediato fim da greve, estabelecer pesada multa e autorizar a medida extrema da dispensa por justa causa pela mera continuidade da greve! Além da incoerência, a decisão, objetivamente analisada, pratica uma espécie de cinismo judicial, porque diz uma coisa e faz outra. Afirma-se que o Judiciário não pode intervir, não pode asfixiar a autonomia privada coletiva, mas, ao mesmo tempo, profere-se decisão que impede o exercício do direito de greve, inviabilizando-o completamente em função das graves sanções cominadas. Perceba-se que os trabalhadores ficam absolutamente impossibilitados de agir para a melhoria de sua condição social. Não podem recorrer ao Poder Judiciário, porque para que se exerça o poder normativo há necessidade do comum acordo, ou seja, da concordância do empregador, a qual sabidamente quase nunca ocorre; e também não podem fazer greve, sob pena de serem multados e dispensados por justa causa. Dá-se aos trabalhadores, portanto, apenas o “direito” de se submeterem às condições unilateralmente impostas pela empresa. Quando os trabalhadores tentam fazer greve, e correm todos os riscos e agruras a ela inerentes, o Judiciário muda de postura e resolve julgar as reinvindicações econômicas, mas só defere os benefícios com os quais o empregador concordou. Perceba-se que o TST não apenas “lavou as mãos”, como Pilatos, mas agiu ativa e efetivamente para impedir que uma das partes (o sindicato profissional) pudesse continuar batalhando pela melhoria das condições sociais dos trabalhadores. Há forte incongruência, ainda, com a Súmula 316 do STF, segundo a qual “a simples adesão à greve não configura falta grave”. O verbete superou a jurisprudência anterior, segundo a qual a participação em greve abusiva consistiria em falta grave4. O entendimento doutrinário5, bem como a jurisprudência atual dos Tribunais Regionais do Trabalho vinha sendo firme no sentido de que, ainda que a greve fosse declarada abusiva, descaberia cogitar de aplicação de justa causa decorrente da mera participação do trabalhador6-7-8. Por isso mesmo, é surpreendente a decisão adotada na greve dos Correios de 2020. Se a greve persistir após a declaração de abusividade pelo Judiciário, ainda assim incide o raciocínio da Súmula 316 do STF, não se podendo concluir pela justa causa, por exemplo por suposto abandono de emprego. Isso porque o abandono de emprego pressupõe um elemento subjetivo, consistente na “intenção do empregado de não mais retornar ao trabalho até então exercido”9, o que certamente não está presente por ocasião de movimento coletivo de paralisação da prestação de serviços. Dessa forma, é imperativo que seja revista a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, a qual atualmente admite que os tribunais trabalhistas apreciem as reivindicações econômicas da categoria no caso de deflagração de greve10. Igualmente, deve-se prestigiar o entendimento de que é não é possível que o tribunal determine aos grevistas o retorno ao serviço e que “autorize” a efetivação de dispensas por justa causa no caso de descumprimento da determinação. Essa é a única maneira de preservar a coerência com a diretriz firmada pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 3423. 1 “Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Art. 1º, da Emenda Constitucional nº 45/2004, na parte em que deu nova redação ao art. 114, §§ 2º e 3º, da Constituição Federal. 3. Necessidade de “mutuo acordo” para ajuizamento do Dissídio Coletivo. 4. Legitimidade do MPT para ajuizar Dissídio Coletivo em caso de greve em atividade essencial. 5. Ofensa aos artigos 5º, XXXV, LV e LXXVIII, e 60, § 4º, IV, da Constituição Federal. Inocorrência. 6. Condição da ação estabelecida pela Constituição. Estímulo às formas alternativas de resolução de conflito. 7. Limitação do poder normativo da justiça do trabalho. Violação aos artigos 7º, XXVI, e 8º, III, e ao princípio da razoabilidade. Inexistência. 8. Recomendação do Comitê de Liberdade Sindical da Organização Internacional do Trabalho. Indevida intervenção do Estado nas relações coletivas do trabalho. Dissídio Coletivo não impositivo. Reforma do Poder Judiciário (EC 45) que visa dar celeridade processual e privilegiar a autocomposição. 9. Importância dos acordos coletivos como instrumento de negociação dos conflitos. Mútuo consentimento. Precedentes. 10. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente” (ADI 3392, 3423, 3431, 3432 e 3520, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 29/05/2020). - 2 PROCESSO Nº TST-DCG-1001203-57.2020.5.00.0000, Seção de Dissídios Coletivos, Rel. Min. Ives Gandra Martins Filho, julgado em 21.09.2020. 3 BERNARDES, Felipe. Manual de Processo do Trabalho. 2ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2019, p. 697. 4 Como exemplo dessa tendência superada: “A greve ilegal é falta grave. A lei nº 9070 não contraria a Constituição” (RE 42916, Relator(a): CÂNDIDO MOTTA, Primeira Turma, julgado em 10/09/1959). 5 Segundo Süssekind, “o fato de a greve ser declarada abusiva não significa, por si só, que os seus participantes tenham cometido ilícito trabalhista, principalmente quando restar comprovado que a participação da empregada se deu pacificamente” (SÜSSEKIND, Arnaldo, op.cit., p. 465). 6 “RESCISÃO CONTRATUAL - JUSTA CAUSA APLICADA - PARTICIPAÇÃO EM GREVE DECLARADA ILEGAL - NULIDADE DA JUSTA CAUSA. A participação do empregado em movimento paredista, ainda que considerado abusivo pela autoridade competente, não pode acarretar a aplicação da sanção máxima da justa causa” (TRT-24 00247031320145240001, Relator: NICANOR DE ARAUJO LIMA, 1ª TURMA, Data de Publicação: 29/06/2015). 7 “RECURSO ORDINÁRIO DA RECLAMADA - JUSTA CAUSA - GREVE ABUSIVA - A princípio, a mera participação em greve, mesmo considerada ilegal, não autoriza, por si só, a dispensa por justa causa. Há de ser demonstrada a conduta reprovável e os atos lesivos ao patrimônio da empresa ou a terceiros, passíveis de enquadramento nas hipóteses previstas no art. 482, b, e, h (...)”. (Processo: RO - 0001170-09.2012.5.06.0191 Redator: Sergio Torres Teixeira, Data de julgamento: 21/05/2014, Primeira Turma, Data de publicação: 01/06/2014). 8 “ADESÃO A MOVIMENTO PAREDISTA. APLICAÇÃO DA JUSTA CAUSA. IMPOSSIBILIDADE. A adesão à greve, por si só, não constitui falta grave, consoante a Súmula 316 do STF, não podendo, portanto, ser considerada motivo suficiente para a dação de justa causa. E diga-se que se a greve é um direito, não pode caracterizar falta grave a mera participação, daí porque o verbete tem aplicação nos casos de greves declaradas abusivas e ilegais, mesmo porque o art. 9o da Constituição da República assegura não só o direito de greve como também estabelece que compete aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender” (TRT-3 - RO: 00544201014803003 0000544-74.2010.5.03.0148, Relator: Convocado Maurilio Brasil, Quinta Turma, Data de Publicação: 6/11/2010, 12/11/2010). 9 Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa, op.cit., p. 641. 10 "I - RECURSO ORDINÁRIO. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.467/2017. DISSÍDIO COLETIVO DE NATUREZA ECONÔMICA. NOVA REDAÇÃO DO § 2º DO ARTIGO 114 DA CONSTITUIÇÃO ATUAL APÓS A PROMULGAÇÃO DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/2004. COMUM ACORDO. A Seção Especializada em Dissídios Coletivos deste Tribunal Superior do Trabalho firmou jurisprudência no sentido de que a nova redação do § 2º do artigo 114 da Constituição Federal estabeleceu o pressuposto processual intransponível do mútuo consenso das partes para o ajuizamento do dissídio coletivo de natureza econômica. A EC nº 45/2004, incorporando críticas a esse processo especial coletivo, por traduzir excessiva intervenção estatal em matéria própria à criação de normas, o que seria inadequado ao efetivo Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição (de modo a preservar com os sindicatos, pela via da negociação coletiva, a geração de novos institutos e regras trabalhistas, e não com o Judiciário), fixou o pressuposto processual restritivo do § 2º do art. 114, em sua nova redação. Nesse novo quadro jurídico, apenas havendo "mútuo acordo" ou em casos de greve, é que o dissídio de natureza econômica pode ser tramitado na Justiça do Trabalho. No caso concreto, as entidades sindicais da categoria econômica arguiram, em contestação, a referida preliminar, impedindo a incidência do poder normativo sobre as relações de trabalho existentes entre as Partes. Recurso ordinário desprovido" (ROT-1672-42.2018.5.09.0000, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Relator Ministro Mauricio Godinho Delgado, DEJT 01/10/2020). *Felipe Bernarde - Juiz do Trabalho - TRT da 1ª Região, autor e professor  Artigo publicado originalmente no site Instituto Trabalho em Debate - ITB no dia 02 de outubro de 2020. 

Corte Interamericana condena Brasil por mortes em Fábrica de Fogos no Recôncavo Baiano

Decisão histórica reconhece discriminações estruturais de raça, gênero e condições sociais como violações de direitos humanos.  Entre as 64 vítimas da tragédia, 63 eram mulheres. Mortos incluem 22 crianças e adolescentes, entre 11 e 17 anos. Caso é a 9a condenação internacional do Brasil por graves violações de direitos humanos.    Foi anunciada, nesta segunda-feira (26), a condenação do Brasil pelas mortes e violações de direitos humanos dos trabalhadores da Fábrica de Fogos, em Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano. A tragédia ocorreu no dia 11 de dezembro de 1998 e deixou 64 pessoas mortas: a maioria delas mulheres e crianças negras. O caso expôs as precárias condições de trabalho às quais as vítimas eram expostas. Por lei, a atividade exige fiscalização pelo Estado Brasileiro.  A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) é a nona condenação internacional do país por graves violações de direitos humanos. A decisão foi proferida no dia 15 de julho de 2020, durante o 135º Período Ordinário de Sessões, porém só foi tornada pública na data de hoje. Trata-se de uma sentença histórica, que reconhece padrões de discriminação estrutural e intersecional para determinar a respnsabilidade do Estado Brasileiro. Segundo a Corte, as vítimas “se encontravam em situação de pobreza estrutural e eram, em amplíssima maioria, mulheres e meninas afrodescendentes, quatro delas estavam grávidas e não dispunham de nenhuma alternativa econômica senão aceitar um trabalho perigoso em condições de exploração”. A Justiça Global e o Movimento 11 de Dezembro são os representantes das vítimas no caso. Para Raphaela Lopes, advogada da Justiça Global, trata-se de um precedente histórico. “Esta condenação é histórica e paradigmática para casos envolvendo discriminação de gênero e raça e sua relação com situações de pobreza. É o reconhecimento internacional da responsabilidade dos Estados de adotar medidas para proteger pessoas atravessadas por uma discriminação estrutural e interseccional”, afirma. Dos 64 trabalhadores mortos na explosão, 63 eram mulheres. A única vítima do sexo masculino era uma criança de 11 anos de idade. Dentre as vítimas havia 22 crianças e adolescentes, com idades entre 11 e 17 anos. A imensa maioria eram negras – dos 57 atestados de óbito juntados ao processo, 49 eram de pessoas negras, 3 brancas, e 6 sem identificação. Quatro mulheres grávidas e três nascituros também foram vítimas da explosão. A Corte considerou que o Estado brasileiro tinha conhecimento de que eram realizadas atividades perigosas na fábrica e não inspecionava nem fiscalizava o local adequadamente, que apresentava graves irregularidades e alto risco e perigo iminente para a vida, integridade pessoal e saúde de todos os trabalhadores. Além das irregularidades citadas, a fábrica era exploradora de trabalho infantil, o que violava os direitos ao trabalho e ao princípio da igualdade e não discriminação. A fabricação de fogos de artifício era a principal e, na maioria dos casos, a única opção de trabalho para os habitantes do município, que não tinham outra alternativa a não ser aceitar um trabalho de alto risco, com baixo salário e sem medidas de segurança adequadas.  Para os familiares do Movimento 11 de Dezembro, a condenação é um marco em mais de 20 anos de luta. O Movimento é formado por familiares e sobreviventes da explosão da Fábrica de Fogos e existe para cobrar das autoridades justiça e reparação. “É uma emoção e felicidade depois de 21 anos de luta e lágrimas que o Movimento conseguiu chegar na última instância e condenar o Estado Brasileiro por essa barbárie” A sentença condena o Brasil a uma série de medidas de caráter estrutural que garantam a não repetição de tragédias como a ocorrida em Santo Antônio de Jesus. Dentre elas, a criação de alternativas econômicas para a inserção econômica e laboral das vítimas e familiares da explosão e a criação e execução de um programa de desenvolvimento socioeconômico destinado à população de Santo Antônio de Jesus. A sentença também estabelece que o Brasil responsabilize cível e penalmente os perpetradores da explosão, além de determinar medidas de reparação às vítimas e seus familiares, como tratamento médico e psicológico, além da devida indenização. Perfil das vítimas: Na fábrica, homens e mulheres trabalhavam em lugares distintos, eles na fabricação das bombas, enquanto as mulheres amarrando os traques de pólvora. Das vítimas da explosão, 64 morreram e outros seis tiveram lesões graves, mas sobreviveram. Todas as vítimas tinham entre 11 (onze) e 47 (quarenta sete) anos. Das vítimas fatais: – 63 (sessenta e três) das 64 (sessenta e quatro) eram mulheres e o único do sexo masculino era a criança Alex Santos Costa, de 11 (onze) anos.  – 22 eram crianças e adolescentes entre 11 e 17 anos. – 4 mulheres grávidas e 3 nascituros. Das vítimas sobreviventes: – 4 (quatro) são mulheres e 2 (dois) são Bruno Silva dos Santos e Uelligton Silva dos Santos, então com 11 (onze) e 14 (catorze) anos, respectivamente. A maioria das vítimas era negra. Segundos dados do IBGE, 76,82% dos habitantes do município são pretos e pardos. 12,84% da população de Santo Antônio de Jesus vive na área rural, onde ficava localizada a fábrica, destes cerca de 86% são pretos e pardos. Os dados mostram como o descaso e omissão do Estado brasileiro tanto na fiscalização da fábrica quanto na reparação com dos familiares das vítimas e sobreviventes é orientado pelo racismo e machismo. Relembre o caso: Santo Antônio de Jesus é conhecido pela produção ilegal de fogos de artifício. A situação de pobreza do município obrigava a população a se submeter ao trabalho extremamente perigoso em fábricas de fogos, inclusive crianças. Além do risco, os trabalhadores recebiam salários ínfimos. Contam que eram pagos R$ 0,50 pela produção de mil traques (pequenos pedaços de pólvora embrulhados em papel). No dia 11 de dezembro de 1998, uma das fábricas, que funcionava na Fazenda Joeirana, na zona rural, explodiu causando a morte de 64 pessoas; outras seis tiveram ferimentos graves – queimaduras de 3º grau em 70% do corpo-, mas sobreviveram. Na época, como o número de ambulâncias na cidade eram insuficientes e o município não possuía um centro para atendimento de pessoas com queimaduras, os moradores assumiram o resgate e o transporte das vítimas até a capital, Salvador, a 190 km de distância. A fábrica de propriedade de Osvaldo Prazeres Bastos, estava registrada em nome de seu filho, Mário Fróes Prazeres Bastos. Apesar de possuir registro junto ao Exército, ela operava há anos fora dos padrões exigidos pelas normativas internas. Após a tragédia, os atingidos se organizaram em torno do Movimento 11 de Dezembro para lutar por justiça. As investigações revelaram uma série de irregularidades cometidas pelos donos da fábrica. Segundo o Ministério Público, os donos tinham ciência que a fábrica “era perigosa e poderia explodir a qualquer momento e provocar uma tragédia”. A perícia da Polícia Civil constatou que a explosão foi causada pela “falta de segurança vigente no local, não somente em relação ao armazenamento dos propulsores e acessórios explosivos”. A explosão da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus resultou em quatro processos judiciais, nas áreas cível, criminal, trabalhista e administrativa, contudo, segue pendente a responsabilização trabalhista, criminal e cível pelos danos causados às trabalhadoras e seus familiares. Caso é a 9a condenação internacional do Estado brasileiro: A sentença proferida pela Corte Interamericana responsabilizando o Estado Brasileiro pelas graves violações de direitos na Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus é a 9a condenação internacional do Brasil perante este tribunal.  O país reconheceu a competência da Corte em 10 de dezembro de 1998. Nestes 22 anos, o Brasil foi declarado culpado em 9 ocasiões, casos que se tornaram emblemáticos para defesa de direitos fundamentais no país e abriram precedentes importantes em a América. A última vez que a Corte Interamericana proferiu uma sentença condenado o país foi em 2018, quando reconheceu a responsabilidade do Estado Brasileiro pela violação dos direitos às garantias e proteção judicial pela ausência de investigação, julgamento, e sanção dos responsáveis pela tortura e assassinato de Vladimir Herzog. A Justiça Global foi uma das partes peticionárias em cinco das nove condenações obtidas contra o Estado Brasileiro. Relembre as condenações internacionais: Caso dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus Vs. Brasil – sentença de 15 de fevereiro de 2020.  Caso Herzog e outros Vs. Brasil – sentença de 15 de março de 2018.  Caso Povo Indígena Xucuru e seus membros Vs. Brasil – sentença de 5 de fevereiro de 2018. Caso Favela Nova Brasília Vs. Brasil – sentença de 16 de fevereiro de 2017. Caso Trabalhadores da Fazenda Verde Verde Vs. Brasil – sentença de 20 de outubro de 2016. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil – sentença de 24 de novembro de 2010. Caso Garibaldi Vs. Brasil – sentença de 23 de setembro de 2009. Caso Escher e outros V. Brasil – sentença de 6 de julho de 2009. Caso Ximenes Lopes v. Brasil – sentença de 4 de julho de 2006.   Artigo publicado originalmente no site  Justiça Global no dia 26 de outubro de 2020.          

A proposta de reforma administrativa do governo Bolsonaro: estado e forma jurídica

“O olhar que prende anda solto O olhar que solta anda preso”   Recentemente, em plena pandemia do Covid-19, o governo de Jair Messias Bolsonaro enviou ao Congresso a Proposta de Emenda Constitucional n. 32. Trata-se de proposição de reforma da administração pública. O enfrentamento do tema é fundamental, uma vez que envolve a modificação, já em andamento faz tempo, da estrutura do estado brasileiro. Antes de tratar do assunto, no entanto, algumas observações preliminares são indispensáveis. Se, a partir de Marx, podemos entender que a dinâmica do capital se constitui a partir da coleção de mercadorias, com o jurista russo Evgeni Pachukanis compreendemos, com maior profundidade, a leitura marxiana de que aquelas não vão ao mercado sozinhas, sendo indispensáveis, para isso, os sujeitos de direito. Assim, se, no modo de produção capitalista, temos a sobredeterminação da forma mercadoria, na relação dialética entre produção e circulação, esta não se concretiza na materialidade sem a subjetividade jurídica. Seja para a produção, seja para a circulação, o que ampara o capitalismo é uma série de relações contratuais (não no sentido meramente jurídico do termo, mas também neste) hasteadas numa de caráter matricial: a de compra e venda da força de trabalho – que se processa por sujeitos livres, iguais e proprietários. Sobre isso muito já pronunciou Pachukanis. Enfim, sujeito de direito e ideologia jurídica são os substratos desta forma jurídica ou contratual. Para realizar esta tarefa que contém em si a ideologia do contrato realizado (uma ideologia única, como lembrava Louis Althusser, que nos interpela cotidianamente no sentido da alienação da força de trabalho), o estado possui aparelhos repressivos (a polícia, o exército e assim por diante), mas também é provido de aparelhos ideológicos (que não se circunscreve apenas ao estado no seu sentido restrito, mas estende-se à sociedade civil – escolas, sindicatos etc.). Portanto, esse aparelhamento é fundamental para que a ideologia que viabiliza a reprodução do contrato acima se realize. Por outro lado, como uma das mais imediatas derivações da dialética produzida pela forma mercadoria-forma jurídica (contratual), temos a forma-estado. Se, em geral, o estado nos é apresentado como o portador do interesse público, Pachukanis demostra que esta é apenas a sua aparência. O estado emerge como neutro, já que não haveria possiblidade de violência direta sobre o produtor da mercadoria. Se, em outros modos de produção, isso era possível, no capitalismo, a coerção passará a ser econômica e o estado terá papel fundamental nesta passagem, já que será o detentor do monopólio da violência autorizado por sua “legitimidade”. Aqui, a aparência do púbico e de seu distanciamento do privado é fundamental para o capitalismo. A equação direito público versus direito privado é a expressão desta hipótese no campo jurídico, estendendo seus tentáculos sobre as esferas do conhecimento social. O que se oculta, em última análise,  é a violência na produção e na circulação. Concebido como agente mediador da compra e venda da força de trabalho, o estado assume papel fundamental para a existência do modo de produção capitalista. Exemplos podem ser dados às escâncaras. Quando, por decisão judicial, se reconhece a ilicitude da greve do setor dos transportes, impondo limites ao livre trânsito de veículos em horários de pico, o que se está promovendo é a circulação da força de trabalho, sob a escusa de que o interesse público consubstanciado no direito de ir e vir será atingido. Quando o estado constrói estradas, levanta hospital e escolas, a lógica é a mesma. A aparência é a promoção do interesse público, a sua relação com a essência indica que se está a tratar realmente da livre movimentação da força de trabalho. Sem a compreensão destes pressupostos, não seria possível avançar para a análise da reforma do estado existente por detrás da Proposta de Emenda Constitucional n. 32. À medida em que a forma contratual (ou jurídica) se acomoda às alterações do modo de produção capitalista, há um redimensionamento constante na relação entre o público e o privado. O mesmo se dá com o aparelhamento de estado. Duas situações têm-se mostrado importantes historicamente para esta relação: 1) na medida em que se tem a intensificação da luta de classes, o capitalismo utiliza-se estrategicamente do distanciamento entre as duas dimensões; pelo contrário, com a menor intensidade da luta de classes, há uma aproximação entre ambos (ficando mesmo mais difícil de divisar onde começa o público e em que momento se está falando do privado) e 2) numa etapa inicial do capitalismo, um maior distanciamento das dinâmicas estruturantes do público e do privado era fundamental, integrando um conjunto de medidas de organização rígida da compra e venda da força de trabalho; no momento atual, a aproximação das dinâmicas de estruturações do público e do privado faz parte de um todo integrado relativo à organização flexível da compra e venda da força de trabalho. Assim, se, no fordismo, por exemplo, havia um sentido no distanciamento inclusive das técnicas de gestão do setor público, a partir do toyotismo, faz parte da lógica estruturante que as dinâmicas de administração do setor privado passem a ser integradas ao setor público (por exemplo, a passagem, para o setor público, de postulados como o da eficiência e a importação das técnicas de gestão típicas das empresas no mercado para os entes estatais). Para entendermos a proposta de reforma administrativa conduzida ao congresso pelo atual governo, há que se compreender exatamente que estamos nos segundos instantes do quadro anterior: a) aproximação do público e privado decorrente de menor intensidade da luta de classes; b) diminuição do distanciamento das técnicas administrativas do setor público e do setor privado em momento de organização flexível da compra e venda da força de trabalho. Pensemos, agora, a Proposta de Emenda Constitucional n. 32, a partir de todas as premissas postas anteriormente. Atualmente, a constituição fala que a “administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência” (art. 37, “caput”). Perceba-se que o texto originário não falava em princípio da eficiência. Acrescentado por Emenda Constitucional de 1998 (n. 19), já indicava uma tendência referente ao que falamos acima de um estado pautado pela dinâmica do mercado. Se da lógica clássica do liberalismo, legalidade e impessoalidade são princípios que regeram o estado liberal em seu nascedouro e se arrasta para os dias de hoje, a eficiência como princípio de atuação da administração pública é a inequívoca admissão da pauta privada pelo setor público – indicando exatamente a ausência de qualquer distinção entre as duas esferas, que, no fundo laboram conjuntamente para a plenitude da noção privada de propriedade. Se isso já vinha se dando antes mesmo do atual governo, indicando o transporte da dinâmica de estruturação da esfera privada para a pública, o fenômeno se intensifica com a Proposta de reforma n. 32. Ali, além da eficiência, passam a reger a atuação da nossa administração os postulados da inovação e boa governança pública. Arrematando o caráter privado da dinâmica unitária com o público, aparecem os princípios da unidade e da coordenação. Em apertada síntese, esses dois últimos constituiriam a previsão de uma atuação em caráter unitário dos setores públicos com os setores privados, ainda que sob a coordenação estatal – mas não muito intensa como se percebe das disposições concernentes aos contratos a serem firmados pelas entidades do poder público das diversas esferas (art. 37-A da Proposta de Emenda n. 32). Em um capitalismo em cada vez mais há uma flexibilização da organização da compra e venda da força de trabalho - em consonância com um projeto intensificado com reformas trabalhistas que vêm se processando em especial (mas não apenas, já que vinha na pauta de governos anteriores) a partir Governo Temer e a reforma previdenciária do próprio Governo Bolsonaro (Emenda Constitucional n. 103/19) -, a proposta de Emenda Constitucional n. 32 de 2020 nasce sob o signo da total promiscuidade entre público e privado, revelando que, na essência, esta distinção não existe onde vinga a forma contratual (ou jurídica). Na realidade, do geral, percebe-se que a proposta do governo Bolsonaro, mais do que uma reforma de toda a dinâmica de ligação entre o público e o privado, que já vinha se operando por sucessivas reformas anteriores, é voltada especificamente para a final desconstrução dos serviços públicos a partir de uma alteração profunda das condições de trabalho dos servidores públicos. Portanto, estamos a falar muito mais de uma reforma da administração a partir da desconstrução do conceito que tínhamos, até o instante, do próprio trabalhador que presta os serviços para a esfera administrativa. De um trabalhador estável de uma estrutura feita para serviços prestados de forma contínua e com a participação exclusiva do estado, em grande parte das hipóteses, passa-se para um que se submeterá a instabilidade típica do setor privado (setor se que torna, cada vez mais, um “parceiro”, um “colaborador”, tornando-se quase que um sócio majoritário das empreitadas relacionadas a serviços antes de natureza tipicamente estatal). Não é de se estranhar que essa reforma dos serviços públicos, já em andamento faz tempos, conduziria inevitavelmente à das condições laborais dos servidores públicos. Vejamos como isso se processou, revelando que exatamente no instante em que a luta de classes encontra-se mais amortecida é o momento propício para as alterações mais específicas e diretas sobre as condições de vida dos trabalhadores e trabalhadoras da esfera pública. A lógica que permeia tudo isso é que, desconstruindo-se o serviço como essencialmente público, há a correlata desnecessidade de um servidor tradicionalmente público, com garantias como a estabilidade e salarias de diversas naturezas. Diante deste quadro, conduz-se à trincheira dos desprovidos de proteções jurídicas, semelhante ao que se dá com trabalhadores e trabalhadoras da iniciativa privada, os servidores públicos, com o que, também enfraquecidos, passariam a não ter a mesma capacidade mobilizatória atual. Aqui a luta pela defesa dos direitos nunca deve ser vista a partir da dinâmica da preservação do estado liberal, mas apenas pela ótica da dimensão das garantias mínimas de mobilização (não é fácil, por exemplo, para um trabalhador sem estabilidade no emprego, realizar uma greve, em vista do receio de perder o seu posto de trabalho. Algo que já se dá na esfera privada seria transposto para a pública). Não há como se esconder do fato de que a segmentação da classe trabalhadora já se dá quando se fala em trabalhadores e trabalhadoras do setor público versus aqueles e aquelas do setor privado. Não obstante, agora, mais do que nunca, a divisão promovida no interior da classe trabalhadora, arma potente da burguesia no curso do processo histórico, passa a habitar com mais intensidade o interior da esfera pública. Se isso já se deu em reformas de governos anteriores (como no caso da Emenda 41 de 2003, que passou a conter a previsão de previdência complementar para os servidores públicos), com a atual alteração pretendida, passaríamos a ter trabalhadores públicos de contrato indeterminado versus os de prazo determinado (art. 37, par. 8º., inciso IV, e 39-A,  inciso II, e seu parágrafo 2º.), assim como os primeiros seriam divididos naqueles investidos em cargos do típicos do estado (art. 37 II-B) e naqueles que não o são (art. 37 II-A). Conversemos um pouco mais sobre a última segmentação. Figura estranha é a do servidor em cargo típico do estado, que, em conformidade com o art. 39-A, em seu parágrafo 2º., virá definido por Lei Complementar (com quórum bem menos qualificado do que o exigido para uma emenda constitucional e, portanto, menos submetido à disputa política). É certo que a definição atenderá a uma nova realidade, na medida em que, com o desfazimento dos serviços públicos exclusivamente a cargo do estado, os servidores com atividades típicas se encontrarão agrupados em hipóteses cada vez mais raras. Talvez aqui venham a subsistir nesta qualidade aqueles que são fundamentais apenas para que o próprio estado de direito não deixe de existir (e estes, em geral, são aqueles provenientes de carreiras muito específicas, como as jurídicas ou diplomáticas, por exemplo). Mas, seja qual for a solução, a hipótese remete a tudo que falamos anteriormente, na medida em que o exercício de atividades específicas do estado é algo cada vez menos usual e estas serão as poucas que deterão prerrogativas como a proteção de estabilidade (art. 41). Ao servidor, em maior quantidade, que não estiver nesta condição, não há a mesma garantia. Certamente, este trabalhador instável será levado à precariedade, com a possibilidade “compensatória” de acumulação indiscriminada de outros cargos públicos, como se constata do art. 39, inciso XVI-B (já que a vedação de acumulação de cargos, que hoje é restritiva a todos servidores, não o será mais para aqueles que não se enquadram como de carreiras típicas do estado, o que se depreende do art. 39, incisos XVI e XVI-A). Enfim, está a se construir a figura de  um servidor público dos “bicos” ... inclusive “bicos” em diversas esferas do próprio estado. A mesma organização flexível prevista para a esfera privada sendo desenhada para o setor público. Ou melhor, as duas espécies de trabalhadores se submetendo à mesma dinâmica da organização flexível da compra e venda da força de trabalho – que deve ser considerada mais do que uma dimensão apenas do ato de alienar o trabalho em si, referindo-se a toda estrutura que propicia a reprodução dessa dinâmica contratual. Enfim, o máximo da subsunção real do trabalho ao capital, a que denominamos em outro artigo de subsunção hiper-real. Um outro tema a se destacar, neste contexto, é o da possibilidade de contratação de trabalhadores por tempo determinado (algo que o Governo Bolsonaro já tinha conseguido na Emenda Constitucional n. 106/20). Embora as hipóteses de vínculo por prazo determinado sejam expressamente previstas no texto constitucional, há que se perceber que se trata de disposição que também reforça a tese da precarização da condição dos trabalhadores públicos e da própria Administração em si. A sua potencialidade destruidora é revelada pela própria abertura dos termos que definem as hipóteses, a autorizar uma ampla discricionariedade do administrador, como se percebe do art. 39-A, par. 2º., incisos I a III (que alcança situações como atividades e procedimentos sob demanda por exemplo). A verdade é que estamos diante de uma modalidade de contratação precária, atingindo, com essa precariedade, não apenas os servidores públicos, mas o próprio serviço prestado em si. Adira-se a isso a ampliação das situações envolvendo a terceirização no serviço público, com o respaldo inclusive da jurisprudência, tendendo-se à inclinação de sua generalização também ali para as atividades fins (fenômeno semelhante ao que se deu no setor privado). Ou seja, as modalidades precárias de contratação do setor privado irão cada vez mais tomar conta das atividades públicas. Com isso, fica concluído o ciclo que denunciamos antes: a aproximação, em ambas esferas, da dinâmica de organização flexível da compra e venda da força de trabalho. Também aqui a linha divisória entre o direito público e o direito privado tende a se dissipar, já que tudo, no fundo, revela-se como defesa da propriedade privada. O mais impressionante é que nessa conformação da ideologia jurídica (ou contratual) sequer é mais necessário recorrer-se da figura da neutralidade do estado, já que o imaginário popular (leia-se dos trabalhadores e trabalhadoras, com força no real, na materialidade, e não apenas como uma consciência) passa a incorporar o “discurso” da necessidade de um estado sujeito às investidas empresariais. O próprio conceito de estado neutro, que possibilita a coerção econômica, vem assumindo nova feição. E aqui podemos finalizar exatamente com um dado fundamental desta ideologia jurídica (ou contratual), colocada na Proposta de Emenda Constitucional 32, que é o da abertura à possibilidade real de uma intensificação da militarização dos aparatos de estado brasileiro. Não se está a falar dos seus aparelhos repressivos, mas ideológicos, sendo perfeitamente possível o uso da noção althusseriana ampliada de estado, alcançando também os setores da sociedade civil. Tudo isso deve ser vislumbrado a partir da perspectiva ideológica de que somos interpelados, no capitalismo, à constante reprodução da prática de compra e venda da força de trabalho. Este preocupante dado é revelado pelo menos em dois dispositivos que se  pretendem ver introduzidos no texto constitucionais. No primeiro, abre-se a possibilidade de o militar chamado a exercer funções no serviço público civil mantenha o vínculo com as forças armadas, ainda que suspenso por dois anos. Somente após, passaria para a reserva. A respeito veja-se a redação do art. 142, inciso III, da Proposta de Emenda Constitucional n. 32. Essa disposição é fundamental para a composição de um governo com premissas de militarização dos aparelhos estatais, nos mais diferentes escalões (mas em especial nos inferiores). Mantida intacta, por um certo período, a relação com o serviço público militar será mais fácil uma constante movimentação de militares para cargos públicos civis, resguardada a possibilidade de retorno aos postos anteriores. Além disso, há uma espécie de garantia, para os militares, de não perderem, caso não seja exitosa a experiência, o vínculo relativo às funções originárias. Garantia para os militares, que mais do que pessoal, significa a preservação da lógica militar na consolidação dos aparatos estatais. No segundo (art. 142, par. 4º., da PEC 32), abre-se a possibilidade explícita de que os militares possam acumular a suas funções com as das esferas públicas ou privadas do magistério e da saúde. Aqui deve-se pensar a noção de estado no sentido ampliado althusseriano, em que os aparatos ideológicos não se encerram apenas no espaço meramente público, atingindo também o setor privado - teoria que parte da percepção marxiana das razões ideológicas da compartimentação entre sociedade civil e estado. É na escola, já dizia Althusser, que irá se processar a difusão dos conhecimentos das técnicas da compra e venda da força de trabalho, constituindo-se no espaço fundamental para a reprodução desta modalidade contratual como dado constitutivo do modo de produção capitalista. Militares infestando escolas e universidades, públicas e privadas, seria certamente o que mais desejaria este governo. Propagando os ideais positivistas, esta gente ajudaria a concluir a batalha contra a “ideologia de esquerda” que “infesta e contamina” o ensino, em especial o público superior. Aqui estaria, por fim, alcançada a pretensão de uma “escola sem partido, sem ideologia”, já que ensinar a compra e venda da força de trabalho e a preservação deste tipo de ordem não é, para este governo, ideologia, mas um dado natural do mundo em que vivemos. Enfim, realizada esta leitura incipiente da proposta de reforma administrativa do governo Bolsonaro, fica a advertência: se, com Dorival Caymmi, aprendemos que “o olhar que prende anda solto, o olhar que solta anda preso”, também é dele a lição de que aquele olhar que admira, que se surpreende, enfim, “o olhar que assusta anda morto”, sendo, no entanto, que o “olhar que avisa anda aceso”. *  Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) BIBLIOGRAFIA ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado: notas sobre os aparelhos ideológicos de estado. 11. reimp. Trad. Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1985. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. V. II. Trad. Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. ORIONE, Marcus. A política de governo de preservação de emprego e renda em tempos de coronavírus: perspectivas para o sujeito de direito, 2020. Site A terra é redonda, São Paulo, 15 maio 2020. Disponível em https://aterraeredonda.com.br/o-direito-na- pandemia/. Acesso em 18 maio 2020 PACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). Coord. Marcus Orione. Trad. Lucas Simone. São Paulo: Sundermman, 2017.

Produtividade e gênero na magistratura trabalhista em tempos de pandemia

No dia 15 de agosto de 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apurou os seguintes dados referentes à Justiça do Trabalho: desde a determinação do trabalho remoto em março deste ano, foram proferidos mais de 1,6 milhões de sentenças e acórdãos, 1,7 milhões de decisões e 6,5 milhões de despachos, com mais de 90 milhões de movimentos processuais e destinados mais de R$ 197 milhões para combate à pandemia. A Justiça do Trabalho se destacou neste período por ter a quase totalidade dos processos em andamento já no formato eletrônico (PJE), o que possibilitou a continuidade da tramitação processual. A despeito da condição privilegiada em termos de segurança sanitária, o trabalho remoto improvisado a que magistrados e servidores tiveram que aderir não se trata juridicamente de teletrabalho, pois, diante da situação de excepcionalidade, não houve o planejamento e a organização para tanto. A mera transposição do trabalho nos fóruns para as residências parece um problema de ordem menor, se comparada com o cenário atual, mas isso não afasta a necessidade real de enfrentar novas situações de fato e demandas (adaptação de um espaço para o trabalho em tempo integral, muitas vezes sem o equipamento, a internet ou as condições de ergonomia necessárias). Nesse contexto, o desafio mental é apreender os efeitos das normas do direito e do processo do trabalho emergencial, ao mesmo tempo em que se aprende a atuar por meio de plataformas de videoconferências, além de rever a forma de organização do trabalho. Se o PJE permitiu que não fosse interrompida a tramitação dos processos, o isolamento de servidores e juízes prejudicou o senso de coletivo e tornou mais pesada a carga mental do trabalho intelectual, agravada pela lógica da produtividade. Vale notar que os números são frequentemente invocados em relação ao judiciário trabalhista, como se a justiça social pudesse ser aferida, por exemplo, com a quantidade de casos novos (aliás, um número sobre o qual a instituição não tem ingerência). A recente interpelação a respeito das audiências telepresenciais parece desconsiderar que 1/4 da população brasileira não tem acesso à internet e que a própria advocacia trabalhista tem manifestado preocupação com as dificuldades técnicas de seus clientes, além de outras questões. Outra questão que permeia o trabalho remoto é o recorte de gênero. Matéria de maio de 2020, publicada em um veículo da mídia, trouxe diversos relatos de homens trabalhadores no sistema de justiça, exaltando o aumento da produtividade no trabalho remoto em razão da pandemia. Os depoimentos afirmaram vantagens no home office: não gastar tempo com deslocamento, possibilidade de trabalhar com roupa casual, rotina de exercícios físicos e maior contato com filhos. O chamado trabalho reprodutivo ficou encoberto na reportagem pretensamente neutra. As narrativas ocultam o trabalho doméstico e de cuidado com crianças, idosos e pessoas doentes, que não preocupa os entrevistados. O machismo naturaliza os papeis de gênero, de modo que a mulher trabalhadora ainda não se libertou do status de “rainha do lar” e o valor social do trabalho doméstico e de cuidado exercido, de forma remunerada ou não, majoritariamente por mulheres, é mascarado. A rotina das magistradas e servidoras (e provavelmente das advogadas) em tempos de trabalho remoto é bem menos glamorosa do que a retratada na referida matéria. O cotidiano é marcado pela (in)conciliação da tripla jornada e pela consequente sobreposição das cargas física, mental e psicológica, acentuadas com o distanciamento social. De uma hora para outra, novos desafios se impuseram: a confusão entre o espaço público e o privado, a falta de limites para o tempo de trabalho profissional, a retirada repentina da rede de apoio diário (escola, babá, trabalhadora doméstica, faxineira etc.), a responsabilidade pelo cuidado de pessoas dependentes, a gestão das necessidades e rotinas de todos que estão confinados em um mesmo espaço residencial, além da organização e da realização de tarefas de limpeza em geral, do cuidado com as roupas, do preparo dos alimentos etc. Tudo isso com o indispensável asseio para controle da propagação do coronavírus. Na pandemia, as antigas demandas outrora terceirizadas (para o mercado ou para outras mulheres) chamam as servidoras e magistradas de volta ao trabalho doméstico e de cuidado, dando a dimensão do quão pouco se avançou em termos de equitativa responsabilidade pela reprodução social da vida. Não há dados do CNJ de apuração da produtividade por gênero. Todavia, a desigualdade de gênero no trabalho remoto pode ser demonstrada pela redução de artigos acadêmicos escritos por mulheres no distanciamento social, como verificou a DADOS Revista de Ciências Sociais. No segundo trimestre de 2020, houve o menor percentual de autoras mulheres assinando artigos científicos submetidos à revista (28%) segundo levantamento realizado desde o primeiro trimestre de 2016. A revista alerta que os dados são preliminares e demandam cautela analítica, mas outros estudos em revistas científicas estrangeiras apontaram esse decréscimo. Ainda em tempos de pandemia, é difícil aferir os impactos do trabalho remoto para a saúde física, psíquica e mental de todos, mas é evidente que o cuidado é central para a vida social. O que fica desta experiência é que a desigualdade de gênero, muitas vezes pensada em termos de participação feminina nas instituições, aparece nitidamente no cotidiano de todos, ainda que seja invisibilizada na perspectiva neutra. Uma ampla discussão sobre o gênero e a divisão sexual (e racial) do trabalho é premissa para uma sociedade livre, igual e democrática. Se é possível falar em “novo normal”, não podemos perder a oportunidade de refletir sobre como a sociedade global se organiza para deixar de priorizar o lucro e a competitividade e passar a escolher a vida e o bem-viver. Patrícia Maeda, juíza do Trabalho Substituta – TRT 15 (Campinas/SP). Doutora em Direito do Trabalho e Seguridade Social (USP). Integrante da Comissão Anamatra Mulheres  Artigo publicado originalmente no site Estadão no dia 19 de outubro de 2020. 

A inversão da realidade racista

“Enquanto os homens exercem seus podres poderes,Morrer e matar de fome de raiva e de sedeSão tantas vezes gestos naturais”(Caetano Veloso) Um defensor público da união entrou com ação contra a iniciativa de seleção de pessoas negras para o trabalho, adotada por uma grande empresa. Pede condenação por dano à coletividade. Curioso, pois o país tem política pública similar (Lei 12.288/2010). Trágico, pois tal política justifica-se na realidade de que embora a maioria das pessoas no Brasil sejam pretas ou pardas, há muito mais pessoas negras sem trabalho, do que brancas. Acima de tudo, vergonhoso. A inversão da realidade, para o efeito de considerar racista a oferta de vagas de emprego a pessoas negras é (mais um) caso emblemático a demonstrar que não servem leis proibindo discriminação ou determinando a promoção de inclusão social, como é o caso – vejam só – da nossa Constituição. Também não servem leis como o Estatuto da Igualdade Racial, se o pacto silencioso de manutenção do racismo estrutural pode ser expressado através do (mau) uso do direito, subvertendo a noção que funda esse conjunto de regras que versam sobre práticas discriminatórias. Aprendemos uma vez mais com esse exemplo que Direito é discurso e, por isso mesmo, pode comportar qualquer coisa, até mesmo a distorção absoluta de um argumento e de tudo o que ele representa, inclusive historicamente. Direito é linguagem, e a linguagem admite que se afirme algo que em realidade se está a negar. Veja-se o caso da recente fala de Bolsonaro na ONU. Ele, na condição de Presidente da República, afirmou que “somos líderes em conservação de florestas tropicais” e reclamou ser vítima “de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal”. Enquanto isso, o número de queimadas bate recorde, comprometendo biomas e espécies ameaçadas de extinção; o governo desmantela o sistema de prevenção e fiscalização ambiental que poderia evitar muitas delas, revoga resoluções que restringiam o desmatamento e a ocupação em áreas de restinga, manguezais e dunas e permite a queima de lixo tóxico. Enquanto mata, diz que protege. As mulheres conhecem bem essa estratégia discursiva, especialmente aquelas vítimas de violência praticada por quem constantemente reafirma seu “amor”. É essa mesma lógica que justifica a alegação de racismo contra quem busca atuar para minimizar uma desigualdade histórica de acesso e oportunidade, essa sim reprodutora de práticas racistas. Uma desigualdade traduzida em números que revelam não apenas a diferença nos salários praticados, mas também nas possibilidades de manutenção do emprego. A PNAD Contínua do IBGE em 2020 mostrou, por exemplo, que a taxa de desemprego de pessoas pretas está em 17,8%; a das brancas em 10,4%. É verdade que não deveria mesmo existir uma empresa que precisasse, num país em que a maioria das pessoas é negra ou parda, destinar vagas que permitam colorir seus espaços de atuação e reduzir os efeitos do racismo. Mas ainda não chegamos lá. E, para isso, será preciso bem mais do que a lei. Será preciso mudar a racionalidade. É disso que falam Lélia Gonzales, Sueli Carneiro, Silvio Almeida: o racismo está nas estruturas sociais, que condicionam a subjetividade de quem, sendo racista, não consegue suportar ações de inclusão social. O fato de que a iniciativa tenha sido adotada por um agente público, faz refletir também sobre para que serve afinal o Estado, pois, se for para perseguir e ameaçar quem resolve agir para corrigir desigualdades históricas, talvez não faça sentido. Ainda bem que se trata de um ato isolado. A NOTA TÉCNICA Nº 3 – DPGU/SGAI DPGU/GTPE DPGU prova isso. O Estado existe para fazer valer a Constituição, inclusive quando propõe a eliminação da discriminação e a redução das desigualdades sociais, sobretudo aquelas que nos assombram, porque recalcadas em quase 400 anos de escravização institucionalizada. Agir contra ações afirmativas, utilizando-se da estrutura estatal, mostra um desejo bem maior do que aquele ligado ao resultado do processo. Desejo de transmitir um recado: o de que a parte mais pálida e conservadora da sociedade brasileira resiste com unhas, dentes e peças processuais absurdas, contra os pequenos avanços na desconstrução do pacto narcísico da branquitude. Basta pensarmos que se trata de um defensor público branco insurgindo-se contra ação afirmativa que alcança pessoas negras. É o fato de a população negra ocupar as periferias das cidades, os piores trabalhos e a maior parte do contingente excluído das possibilidades de vida digna, o que permite a reprodução do racismo estrutural. Os corpos negros servem para manter os privilégios materiais e imateriais das pessoas brancas. É por isso que programas pensados para promover o trabalho de grupos não marcados pela raça, não causam esse tipo de reação. Só nos resta seguir em frente, sabendo que “enquanto os homens exercem seus podres poderes, índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes fazem o carnaval” da diversidade e da inclusão.    Artigo publicado originalmente no site  https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-inversao-da-realidade-racista/?fbclid=IwAR0mtoHPpilG3uDFI592TU9Xk2eGiNv8Eg6icITdWQFs9YdGCQCDpRI   no dia 07 de outubro de 2020. 

Lei de Segurança Nacional e o medo de ver emergir o Monstro da Lagoa

Quando falamos em nostalgia há uma tendência em romantizar esse sentimento, considerando-o muitas vezes como algo inofensivo, como de fato, geralmente o é. A nostalgia, entretanto, como qualquer outro sentimento, pode ensejar combinações perigosas, notadamente quando embala as crenças de um governo autoritário. Nesse caso, como adverte Svetlana Boym, “O perigo da nostalgia é que ela tende a confundir o lar verdadeiro com o imaginário”.[1] Para a autora, aliás, essa perigosa nostalgia pode ser encontrada nas “revivificações nacionais e nacionalistas do mundo todo, as quais se empenham na fabricação de mitos antimodernos de história, por meio de um retorno a símbolos e mitos nacionais e, ocasionalmente, com teorias intercambiáveis da conspiração”.[2] Não é preciso muito esforço para que possamos identificar o momento pelo qual estamos passando em nosso país, onde uma perigosa nostalgia pretende levar-nos ao lar imaginário da ditadura militar de 1964, paraíso no qual não haviam torturas, mortes e desaparecimentos forçados. Essa crença negacionista do passado, em uma perigosa combinação de autoritarismo e nostalgia, permite lembrar-nos acerca do risco que corre a nossa democracia, porque “O animal está à espreita, pronto a eliminar a camada terrivelmente fina de decoro convencional, antes destinada a ocultar o feio que a subjugar e conter o sinistro e sanguinário”.[3] Essa nostalgia, no caso brasileiro, nunca foi disfarçada. Pelo contrário, é explícita, tanto que ao soberano de plantão tudo é possível, desde a adoração de um torturador – o único reconhecido como tal por decisão judicial –, até o ato de incentivar que instituições de Estado, no caso as Forças Armadas, comemorem o golpe de 64. Esse escárnio oficial praticado pelo Estado brasileiro se passa, infelizmente e para perplexidade geral, a despeito do sofrimento imposto às vítimas e aos familiares das vítimas da ditadura militar e da circunstância de nossa Constituição consagrar a dignidade da pessoa humana e o respeito aos Direitos Humanos. Diante desse caldo de cultura, não deixa de ser temerário que tenhamos entre nós, em pleno vigor, o entulho autoritário representado pela Lei de Segurança Nacional, ou seja, a Lei n. 7.170/83, que herdamos da ditadura militar. Se o autoritarismo nostálgico está no ar, começo por versos de uma resistência nostálgica que só poderiam vir do talento de Chico Buarque para dizer que “Esse silêncio todo me atordoa, atordoado eu permaneço atento, na arquibancada pra a qualquer momento, ver emergir o monstro da lagoa”. Não custa lembrar que esse entulho autoritário, vigente e ainda aplicado em pleno 2020, se prestava, na época da ditadura militar, em nome de uma Doutrina de Segurança Nacional, à perseguição dos inimigos políticos. Essa finalidade, mal disfarçada de “proteção à segurança” nacional, não mais se justifica em um Estado Democrático de Direito, tanto que o art. 5º, XLIV, de nossa Constituição Federal estabelece que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”. Soa evidente, nesse contexto, o descompasso entre a Lei de Segurança Nacional, concebida durante a ditadura militar, e a proteção da ordem constitucional e do Estado Democrático. A esse respeito, Luís Roberto Barroso, atual Ministro do Supremo Tribunal Federal, aponta não apenas a inconstitucionalidade de vários dispositivos contidos na LSN, mas, também, que seus valores se afastam “dos princípios e conceitos que inspiraram a reconstrução democrática do país[4] Essa lei, portanto, há muito já deveria ter sido retirada de nosso ordenamento jurídico. Não cabe discutir, a essa altura, se isso ocorreu por descuido ou ingenuidade, pois a realidade é que não fizemos adequadamente o nosso dever de casa. Por essa razão, passados 32 anos da promulgação da Constituição de 88, deixamos passar, e foi ficando entre nós, em pleno vigor e com renovada utilização, esse odioso entulho autoritário. Coincidência ou não, em uma realidade de nostalgia autoritária, a utilização da Lei de Segurança Nacional para a instauração de inquéritos policiais vem experimentando um crescimento. Possível constatar, a partir de notícia veiculada pelo site de notícias Brasil de Fato, não repercutida pela grande mídia, a informação de que, em 20 anos, a Lei de Segurança Nacional foi utilizada 155 vezes para a instauração de inquéritos.[5] Desse total, como informa o Brasil de Fato a partir de dados obtidos mediante o uso da Lei de Acesso à informação, 41 inquéritos foram abertos após decorridos 18 meses do governo do Presidente Jair Bolsonaro, o que equivale a 26% dos procedimentos policiais que tem por objeto supostos crimes contra a segurança nacional.[6] A pergunta que se impõe é se seria possível colocar na conta do atual Presidente da República esse considerável aumento na utilização da LSN. Por contraditório que possa parecer, a resposta que podemos dar é sim e não. No caso, quem pode provocar a atuação da Polícia Federal, a quem cabe investigar os crimes da LSN, são o Ministério da Justiça, o Ministério Público Federal e o Supremo Tribunal Federal. Assim, sem um mergulho nas informações disponibilizadas, não é possível saber se todos os inquéritos tiveram origem em solicitação do Ministro da Justiça e, portanto, podem ser atribuídos ao governo. Isso não nos impede, entretanto, de considerar que o governo atual incentiva, desde antes de sua posse, um caldo de cultura nostálgico e autoritário em relação à ditadura militar (1964-1985). Veja-se, a propósito, não apenas a referência do atual Presidente da República, tão logo eleito, ao envio de seus opositores à ponta da praia, sabidamente um local de tortura e morte no período da ditadura militar[7], a insistência em comemorar março de 64 nos quartéis e o culto à figura do único torturador assim reconhecido pelo Judiciário brasileiro. Volto ao exame do noticiário para apontar dois fatos que refletem a utilização da Lei de Segurança Nacional pelo Ministério da Justiça durante o governo atual. O primeiro diz respeito à manifestação do atual Ministro da Justiça acerca da solicitação da abertura de inquérito policial com base na LSN, em razão de charge elaborada por Renato Aroeira.[8] O segundo corresponde à efetiva instauração de inquérito policial com base na LSN contra o jornalista Hélio Schwartsman, em razão de requisição do Ministro da Justiça, diante de crítica que teria sido endereçada à Bolsonaro.[9] Aliás, a suspensão desse inquérito foi determinada liminarmente pelo Ministro Jorge Mussi, do STJ, por não constatar a presença de “motivação política, tampouco a lesão real ou potencial à integridade territorial, à soberania nacional, ao regime representativo e democrático, à Federação ou ao Estado de Direito”.[10] O que se constata, sem qualquer pretensão de adentrar no exame do conteúdo dos atos que ensejaram as requisições do Ministro da Justiça, é que o governo está lançando mão desse expediente de utilização da Lei de Segurança Nacional[11] em face atos que podem configurar ou não críticas endereçadas ao atual ocupante do Planalto Central. Nesse passo, a retomada dessa prática sempre que matérias jornalísticas ou charges possam desagradar ao soberano de plantão, representa um perigoso retorno a um passado autoritário que traduz afrontoso desrespeito à Constituição.  Por outro lado, ao buscar a caracterização de um crime contra a segurança nacional em face do exercício da liberdade de expressão, o que por si só já seria descabido, esquecem os asseclas do soberano, bem como o próprio, deliberadamente ou por ignorância, que a Constituição Federal determina a proteção da ordem constitucional e do Estado Democrático, no que não se insere, por evidente, a honra do ocupante do cargo. Atingir a honra do Presidente da República, portanto, não representa uma conduta que importe em ameaça à ordem constitucional ou ao Estado Democrático e, dessa forma, não justifica a utilização da ultrapassada (para dizer o mínimo), Lei de Segurança Nacional. Isso não significa que o Presidente da República não mereça a proteção penal, mas sim que esta, ao menos em relação aos delitos contra a honra, deve ser buscada na legislação penal comum. Com efeito, em uma democracia, na qual o Estado e a pessoa do soberano não se confundem, a proteção penal da honra do Presidente não difere muito daquela alcançada aos demais cidadãos.  A legislação penal comum, aliás, já prevê que é mais grave o ato de atingir a honra do Presidente da República, tanto que o Código Penal brasileiro estabelece a possibilidade de uma pena mais elevada em tal hipótese, ao contemplar uma causa de aumento de 1/3.[12] Por certo que a opção pela Lei de Segurança Nacional, com toda carga simbólica que ela carrega e com a possibilidade de uma pena ainda mais elevada do que aquela estabelecida no Código Penal, indica a opção por aquela hipótese que detém maior poder de intimidação, dada a possibilidade de alcançar uma pena de quatro anos de reclusão. Isso, evidentemente, em um contexto de nostalgia autoritária, não surpreende. Afinal, não custa nada, repetindo o passado venerado, experimentar uma tentativa de silenciar jornalistas e humoristas e eventuais dissidências pela intimidação decorrente da instauração de um processo com base na Lei de Segurança Nacional. Essa tentativa é, contudo, além de antidemocrática, autoritária, situando-se, assim, muito próxima daqueles atos outrora patrocinados pela ditadura militar. Já passou da hora, portanto, antes que tornemos a ver emergir o monstro da lagoa, enquanto aguardamos pela elaboração de uma legislação afinada com a Constituição, de estancar essa tendência autoritária. É necessário, pois, buscar uma interpretação desse entulho autoritário chamado Lei de Segurança Nacional que obste a sua utilização para a intimidação daqueles que ousem pensar diferente ou criticar o ocupante do poder, seja ele quem for. A democracia, embora combalida, agradece.  *Luiz Antônio Alves Capra é juiz de Direito- TJRS, membro da AJD e Professor de Direito Penal.  Artigo publicado originalmente no site Justificando  no dia 21 de outubro de 2020. 

O espólio das MPs na Covid-19 — o Direito do Trabalho de exceção ou de emergência

O mundo inteiro passa por um momento único. Uma pandemia assombra a humanidade. Trata-se de situação jamais imaginada, ainda que, há pouco mais de um século — com a gripe espanhola —, a população tenha vivido algo semelhante (porém sem que seus efeitos tenham sido sentidos pelas gerações mais recentes). Nesse viés, é importante pensar como reagiremos para além desse cenário catastrófico. E o Direito do Trabalho tem papel relevantíssimo. É curioso pensar que há pouquíssimo tempo o Direito do Trabalho tenha passado por um grave "momento de crise" — acentuado pela Lei 13.467/2017. E agora ele se vê como um Direito do Trabalho para resolver "a crise". A famigerada reforma, é certo, retirou direitos, sob a promessa de criar empregos e reduzir a litigiosidade — promessas que não se concretizaram. Afinal, passados três anos, o nível de desemprego aumentou e o represamento da distribuição — inflado pelo temor de o empregado sair, ao final, devendo (por ter que pagar custas e honorários) — começa a dar sinais de retorno aos patamares de outrora. E agora, no cenário atual, ele, o Direito do Trabalho, volta com força total para dar soluções aos problemas ingentes que surgem e surgirão. Nessa linha, seus operadores terão de aprender a lidar com o regramento normativo que se apresenta durante a pandemia, sem se olvidar dos preceitos constitucionais vigentes e de seus princípios que, conquanto venham sendo solapados, ainda permanecem como fundamentos desse ramo do Direito. Até o presente momento, foram editadas várias medidas provisórias tratando de matérias relativas à temática trabalhista. Podemos citar as MPs 927, 928, 936, 944 e 946, sendo certo que, dessas, a 936 foi convertida na Lei 14.020/2020 e a 927 — para surpresa de muitos — não o foi, tendo "caducado" no último dia 19 de julho. Pode-se dizer que esses dois diplomas (a MP 927 e agora a Lei 14.020) constroem o arcabouço normativo mais consistente deste período de pandemia — adjetivados por muitos como "Direito do Trabalho de exceção ou de emergência". A MP 927 trouxe um rol de medidas "aptas" ao enfrentamento da pandemia, sob o pretexto de manutenção dos postos de trabalho. No entanto, seu artigo 18 foi deveras polêmico ao criar a figura da suspensão contratual para qualificação profissional, sem o pagamento de nenhuma contrapartida obrigatória (salvo de forma facultativa) e pelo extenso prazo de quatro meses. Ora, dessa forma era melhor ao trabalhador, de verdade, ser dispensado, pois pelo menos conseguiria obter benefícios por sua inatividade forçada, como o seguro-desemprego. A grita foi tamanha — por diversos setores da sociedade — que o indigitado artigo 18 não sobreviveu nem 24 horas, tendo sido revogado, de forma sui generis (por outra MP, a 928) — o que não encontra amparo pela jurisprudência do STF (a discussão não necessitará progredir quanto à forma de revogação, pois a própria MP 927 acabou perdendo sua eficácia). Além da malsinada suspensão contratual, a MP 927 trouxe outras várias medidas de enfrentamento, das quais se destacam o teletrabalho, a antecipação de férias individuais e coletivas e feriados e o banco de horas com prazo mais elastecido (18 meses após o fim da pandemia que, pelo DL 6, irá até 31 de dezembro de 2020). E nem se alegue desnecessário tratar desta MP — pelo fato de ela não ter sido convertida em lei. Assim não é, pois seus efeitos irradiarão por muito tempo ainda, já que nela havia medidas que extrapolavam em demasia seu período de vigência (o banco de horas com o prazo elástico de 18 meses após o fim da pandemia é um deles). Nessa seara, faz-se mister relembrar o disposto no artigo 62, §11, da CRFB/88, no sentido de que — inexistindo decreto legislativo editado pelo Congresso Nacional (o que não aconteceu) — as medidas provisórias conservarão sua eficácia pelo tempo em que vigeram, de modo que se torna imperioso o estudo de tal norma para a resolução de diversos problemas que poderão ocorrer no futuro. A primeira grande controvérsia gerada pela MP 927 estava em seu artigo 2º, uma vez que tal norma dava poderes ilimitados aos acordos individuais entre empregado e empregador, ressalvando apenas as normas previstas na Constituição. A referida MP manteve algumas inconsistências e inconstitucionalidades perpetradas pela reforma e trouxe outras, como a exclusão das horas extras aos teletrabalhadores (retirando-lhes o direito à desconexão, quando se sabe que só não fazem jus a tais horas se a fiscalização do labor for faticamente impossível de se realizar), a desnecessidade de exames admissionais e periódicos aos trabalhadores em momento crucial, potencializando os riscos de contaminação pelo coronavírus no ambiente de trabalho — o que se revela de todo inconstitucional, pois em confronto ao inciso XXII da Constituição, entre outras. A audácia do Poder Executivo foi tanta que retirou da fiscalização do trabalho seu poder de autuar — deixando-o com feição meramente orientadora, além de excluir a Covid-19 como doença ocupacional (salvo se com comprovação do nexo causal). Esses dois artigos (31 e 29 da MP 927) acabaram tendo sua eficácia suspensa pelo STF em decisão do ministro Alexandre de Moraes, que vislumbrou inconstitucionalidades formais (fugiam ao escopo da MP — preservação do emprego e não se revestiam de urgência e relevância), embora as materiais também sejam evidentes (afronta ao inciso XXII do artigo 7º da CRFB/88 — redução dos riscos) e até mesmo inconvencionalidades (afronta à Convenção 155 da OIT). Ainda sobre a MP 927, causa espanto o tratamento dado aos profissionais de saúde, permitindo-se a eles jornadas superiores à já malfadada escala de 12 x 36 — sufragada pela reforma —, o que se afigura, evidentemente, inconstitucional. A situação piora inclusive porque se permitiu o labor extraordinário em ambiente insalubre, em plantões de até 24 horas trabalhadas — respeitando-se apenas o repouso semanal. Relembre-se, a propósito, que além da MP 927, outras MPs em matérias trabalhistas recentes não foram convertidas em lei, como as 808 (reforma da reforma) e 905/2019 (contrato de trabalho Verde Amarelo), tampouco sobrevieram decretos legislativos editados pelo Congresso Nacional regulando seus efeitos. A constatação de sua não conversão em lei, ao mesmo tempo que gera certo alívio (o balão de ensaio para uma eventual permanência das medidas, ainda que depois da pandemia), traz também a sensação de enorme insegurança jurídica. Visto isso, passemos à MP 936. Tal norma acabou sendo convertida na Lei 14.020/2020 e surgiu em razão da revogação do artigo 18 da MP 927. Ela criou o programa emergencial para manutenção do emprego e renda, baseado em três elementos: a concessão de um benefício emergencial (calculado de acordo com os valores do seguro-desemprego), a redução salarial e de jornada e a suspensão contratual. Assim como a MP 927, a 936 também eclode com várias polêmicas. A maior delas, com certeza, é a relativa à possibilidade de acordo individual para redução salarial e de jornada e suspensão contratual, uma vez que o artigo 7º, VI da CRFB/88 apenas permite essas modalidades em caso de crise aguda e com a participação obrigatória do sindicato. Nesse aspecto, apesar de o STF — instado a se manifestar via diversas ações — ter rejeitado a inconstitucionalidade, faz-se necessário relembrar que não se pode admitir exceções ao regramento jurídico. Ora, não estamos sob estado de defesa ou de sítio e, nem mesmo nessas hipóteses, a Carta Magna autoriza a redução salarial. Assim, parece-me flagrante a inconstitucionalidade. Feitas essas considerações acerca do arcabouço legislativo até esse momento da pandemia, registro que é com esse cenário de incerteza e insegurança jurídica constante (relembrando o problema que advém da não conversão em lei das medidas provisórias) que o Direito do Trabalho emergirá no cenário pós-pandemia. Seus operadores precisarão contornar os diversos imbróglios trazidos pela legislação de modo a assegurar a melhor interpretação, dando-lhe sobrevida. Mas não é só. A política de enfrentamento do governo brasileiro à pandemia não traz paralelismo àquelas efetivadas por outras nações. A injeção de dinheiro público para manutenção dos contratos de trabalho não encontrou ressonância no Brasil, a despeito de ter ocorrido em outros países. Como ressaltei, o governo pretendeu afastar o trabalhador por quatro meses, deixando-o à míngua de qualquer contraprestação. Só depois de muito estardalhaço, inclusive na mídia, é que recuou e, com a MP 936 resolveu implementar o benefício emergencial com valores que não alcançam o salário, pois fixados de acordo com os patamares do seguro-desemprego. Assim, a crise que já se desenhava antes da pandemia tende a se agravar. O Direito do Trabalho, sempre apontado como um agravador das crises (de todas?), será indispensável. Nessa linha, deve-se olhar com preocupação para a gama enorme de trabalhadores mais vulneráveis. Mesmo os que manterão seus empregos encontrarão dificuldades. Torna-se impositivo começar a se pensar no conceito de renda universal garantida, de modo a prover uma gama enorme da população, desvinculada do conceito de trabalho, mas de renda — como já existe em outros países (Canadá, por exemplo). Por sua vez, a gig economy está aí, atraindo uma multidão de prestadores de serviços que não encontram amparo no alcance restritivo dos artigos 2º e 3º da CLT. É urgente alargar-se o conceito de subordinação, deslocando-se o viés subjetivo para o objetivo (estrutural), de modo a contemplar, assim, trabalhadores que prestam serviços a empresas-aplicativo (Uber, Loggi, Rappi etc.), por exemplo. Para além disso, já que o processo proposto pode ser demasiado lento, devem-se abrir as lentes para o disposto no rol de direitos previstos no artigo 7º da Lex Legum, relembrando-se que os direitos ali previstos não se restringem aos empregados (que se enquadrem no modelo celetista dos artigos 2º e 3º), mas a todos os trabalhadores urbanos e rurais. É importante, portanto, que a força in fieri do Direito do Trabalho — conceito da saudosa professora Alice Monteiro de Barros — surja com força total. Ou seja, expanda-se para um leque maior de trabalhadores, como já o fez para os avulsos, domésticos e temporários. São essas situações, portanto, que o Direito do Trabalho deverá estar preparado para enfrentar e, com certeza, enfrentará; rechaçando, veementemente, os prenúncios apocalípticos de autores contemporâneos sobre o fim do próprio conceito de emprego que temos hoje. A tendência é que o Direito do Trabalho se aproxime ainda mais do Direito da Seguridade Social e do Direito Ambiental, possibilitando abarcar mais sujeitos até mesmo de forma transindividual.  *Ronaldo Callado - é juiz do Trabalho, titular da 38ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, especialista em Poder Judiciário pela FGV/RJ (Fundação Getúlio Vargas) e diretor de comunicação da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho.  Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 15 de outubro de 2020. 

Trabalhadores do mundo, uni-vos!

As transformações operadas no processo produtivo a partir da década de 1970, com reflexos diretos no mundo laboral, foram decorrências das necessidades do capital de preservar o seu ciclo de reprodução, que apresentava sinais de esgotamento diante de crises estruturais próprias do sistema capitalista. Os avanços tecnológicos foram centrais nas mudanças ocorridas no mundo do trabalho, seja porque induziram uma alteração fisionômica na classe trabalhadora, com o labor fabril cedendo espaço ao chamado setor de serviços, seja pela expansão do desemprego estrutural decorrente da robotização e das novas formas comunicacionais, que abriu espaço para a intensificação do trabalho e a precarização dos elos contratuais. É esse o modus operandi do sistema capitalista: criar e recriar formas de aprofundar a exploração do trabalho humano, de modo que o motor acumulativo não sofra descontinuidade no seu funcionamento.  O que assistimos hoje é o mundo sucumbido à força danosa do capital e à sua lógica desumana, que se apresentam não apenas nas ações predatórias da natureza e na destruição dos afetos e dos valores culturais, mas principalmente na mercadorização do trabalho e na deturpação de seu verdadeiro sentido emancipatório e produtor de intersubjetividades e de sociabilidade.¹ A sociedade precisa melhor compreender esse processo de desvalorização do trabalho enquanto atividade humana vital e as suas consequências deletérias para a efetivação do objetivo civilizatório de igualdade; e identificar, sobretudo, os interesses reais escusos que gravitam em torno do discurso ideológico da imperiosidade dessa nova morfologia precarizada. Esse chamado “novo mundo do trabalho”, que se apresenta com uma embalagem que sugere modernidade, progresso, avanço, nada tem de diferente ou de inovador. Quando se retira o invólucro, vê-se o mesmo mundo de apropriação de mais valia pela exploração da força humana, intrínseca ao modo de produção capitalista, como já advertido por Marx no século XIX. No mundo mercantilizado do trabalho, há os que compram a força de trabalho alheia e aqueles que a vendem, os que exploram e os que são explorados, os que detêm o capital e aqueles que dele são dependentes para garantir a sobrevivência. Portanto, povoam o mesmo espaço subalterno todos os que vivem do trabalho, independentemente dos rótulos que lhes são impostos: empregados, parassubordinados, autônomos, informais, uberizados, empreendedores individuais, etc. Essa é a classe trabalhadora que produz a riqueza da qual o capital se apropria. A doutrina do individualismo, que passa a ser prevalecente na nova ordem globalizada, bem identificada nos processos de gestão produtiva baseada no trabalho flexível, torna o trabalhador refém do sistema e da lógica da competição intraclasse, trazendo como consequência a quebra do solidarismo e a destruição da consciência de classe, que sempre foram a espinha dorsal e força motora da luta coletiva. São os tempos de barbárie que se apropriam do mundo real, ocultados pela massificação de discursos proselitistas engendrados para obscurecer a razão e construir um ambiente de despertencimento de classe, de modo a permitir que a onda avassaladora de destruição dos direitos sociais avance sem percalços reativos, e, até mesmo, com o adesismo acrítico de parte do segmento trabalhador. É esse o retrato do trabalho no mundo contemporâneo do capital, resultado da adesão incondicional ao ideário neoliberal: precarizado, flexível e fragmentado; e ainda refém do desemprego estrutural, que possibilita o aprofundamento da exploração pela intensificação do trabalho e o barateamento de seu custo. Não é preciso dizer que esse modelo tem trazido empobrecimento e agravado as desigualdades sociais em todo o mundo, em especial nos países capitalistas periféricos dependentes. Mas o Brasil, em 2017, sob a batuta dos “invisíveis” interesses do mercado, decidiu fazer uma ampla reforma na sua moldura legal de relações trabalhistas para se adequar ao receituário mundial. E assim o fez pautado no discurso apológico da modernidade e da necessidade da criação de empregos. Entretanto, o ardil dessa propaganda artificiosa de que o afrouxamento das redes de proteção ao trabalho seria a redenção para a retomada do emprego, logo se desmascarou pelos indicadores progressivos da desocupação/subocupação, pelo crescimento dos desalentados, pelo aumento da informalidade desprotegida, enfim, pelos índices de empobrecimento da classe trabalhadora brasileira, apontados no período pós-reforma de 2017.² O lema de “menos direitos e mais empregos” transformou-se, em curtíssimo tempo, em “menos direitos e menos empregos”, ou seja, o príncipe virou sapo no conto de fadas que embalou o sono dos incautos. E não havia como ser diferente. “Proletários de todos os países, uni-vos!”, conclamaram Marx e Engels no Manifesto Comunista de 1848. Passados mais de 170 anos da edição desse documento político, que foi, certamente, um dos escritos mais importantes para a compreensão da sociedade industrial burguesa emergente, sobretudo pela clareza profética com que desvendou as contradições e os descaminhos do capitalismo e a necessidade de sua superação, o apelo final proferido para união da classe trabalhadora nunca esteve tão vivo e necessário como nos tempos atuais. Há em curso um projeto bem desenhado para erosão do sentido emancipador do trabalho, a partir da desconstrução da identidade coletiva da classe trabalhadora e da estrutura que a sustenta, com o objetivo de miná-la na sua capacidade de resistência. E isso vem sendo feito por uma imposição massificada de “novos valores” provenientes da cultura neoliberal, que criminalizam a ideologia de classe, enaltecem o individualismo, pulverizam os nichos de pertencimento e, assim, definham e deformam a luta social.  É preciso não cair nessas armadilhas diversionistas de culto aos valores hedonistas do capitalismo globalizado, que buscam seduzir o trabalhador pela ideologia da prosperidade, apresentada sob a forma de promessas ilusórias de sucesso pessoal, de dinheiro fácil, de possibilidades de consumo, de autorrealização profissional, mas que não passam de estratagemas para promover a intensificação e a exploração do trabalho humano. As transformações no mundo do trabalho não trouxeram para os trabalhadores nenhum ganho qualitativo, ao contrário, impuseram-lhes mais tempo de trabalho, mais insegurança, mais empobrecimento e ausência de futuro. Precarizaram as suas vidas e confiscaram o seu direito de sonhar. Ainda é tempo de lutar. Uni-vos!  Francisco Luciano de Azevedo Frota é Juiz do Trabalho – TRT 10ª Região. Membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD  Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 01 de outubro de 2020. 

Quando conciliar não é legal: o caso da conversão da dívida em trabalho forçado

O trabalho forçado já foi, em tempo pretérito, utilizado como forma de punição. A escravidão por dívida era vista como normal e admitida juridicamente. Tínhamos, porém, a sensação de haver superado essa lógica. Uma sensação, aliás, sustentada no fato de termos uma ordem constitucional que proíbe expressamente o trabalho forçado como pena, garante a liberdade, institui o direito fundamental à relação de emprego e tem na preservação da dignidade humana sua razão de existência, além de reconhecer a fundamentalidade dos direitos sociais. Estamos, porém, aprendendo com muita tristeza que, diante de nossa história, garantias formalmente fixadas na Constituição não bastam. É preciso real vontade de mudança. Afinal, somos um país construído sobre os corpos indígenas e negros sacrificados de modo institucional e continuado. É, então, indispensável acertar contas com o passado, superar nosso ranço escravista. Como diz Lélia Gonzalez em "Lugar de Negro", é preciso compreender que o processo de construção da nossa identidade como país está atravessado pelo racismo que se direciona a pessoas negras e pobres, para as quais o Estado não é o mesmo, a Justiça não é a mesma. Pessoas cujos corpos estão à disposição para serem desfrutados. As pessoas que são alvo do Direito Penal. que dependem da venda da força de trabalho para sobreviver e para as quais o Estado não se apresenta, senão sob a forma de repressão. A criação da Justiça do Trabalho, de certo modo, busca romper com essa tradição histórica. Serve para conferir lugar de fala à classe trabalhadora e fazer valer direitos sem os quais não é possível, em uma sociedade capitalista, sobreviver com dignidade. A Constituição, reconhecendo isso, descreve os direitos trabalhistas entre aqueles considerados fundamentais. E fixa regra estabelecendo o dever de assistência judiciária gratuita e integral a quem não tem condições de buscar justiça sem prejuízo da própria subsistência. Nada disso tem validade material se direitos trabalhistas não são satisfeitos; se permitimos a aprovação de (e aplicamos) lei que autoriza a condenação de pessoas pobres ao pagamento de custas ou honorários, punindo-as por exercer um direito fundamental. Sobre isso, aliás, resta o silêncio do STF, que, tendo já examinado e julgado demandas propostas recentemente, como a ADI 6363, cuja decisão considera lícita a redução de salário por acordo individual, até hoje não examinou a ADI 5766, que enfrenta justamente a questão da inconstitucionalidade da alteração inserida na CLT e que passa a autorizar cobrança de custas e honorários de trabalhador(a) pobre. Nossa dificuldade de honrar a Constituição se revela na negação sistemática do direito fundamental ao vínculo de emprego para categorias inteiras de pessoas que vendem sua força de trabalho em troca da remuneração com a qual sobrevivem. Pessoas que estão simplesmente alijadas dos direitos trabalhistas e, portanto, da possibilidade de viver com um mínimo de estabilidade e decência, em uma sociedade na qual o trabalho é a forma de obter os meios materiais de existência. Em tal contexto, é preciso refletir um pouco mais sobre o recente caso do senhor Alessandro Borges, compelido a realizar trabalho não pago em razão de "acordo" devidamente chancelado pelo Poder Judiciário trabalhista. Alessandro buscou a Justiça do Trabalho para pleitear a declaração de existência de vínculo de emprego. Segundo a sentença, ele trabalhou como segurança na empresa demandada de março de 2014 a janeiro de 2018, recebendo R$ 100 por dia trabalhado. Não fruiu férias, nem recebeu gratificação natalina. Não teve o FGTS depositado e, quando perdeu o trabalho, não teve acesso ao seguro-desemprego. O trabalho não foi negado pela empresa. A compreensão da Justiça do Trabalho foi de que Alessandro era autônomo. E, como tal, não tinha mesmo direito algum. A demanda foi julgada improcedente e Alessandro foi condenado a pagar R$ 9.738,62 de honorários aos advogados da empresa. No processo, há expressa manifestação do juízo acerca da miserabilidade do reclamante. Alessandro, que trabalhou quase quatro anos como segurança, recebendo R$ 100 por dia, é um miserável. Mesmo assim, seu processo foi incluído em pauta de conciliação, a pedido dos credores. Na audiência, sem que Alessandro estivesse presente, pois ele teve "problemas com o link de acesso", registrou-se que "as partes se conciliaram através da prestação de serviços comunitários pelo autor, em instituições assistenciais que serão indicadas pelo escritório exequente". Alessandro, que trabalha como segurança, que não teve vínculo de emprego reconhecido pela Justiça do Trabalho, que foi condenado a pagar honorários à advogada da empresa, terá de trabalhar de modo gratuito para pagar sua dívida. Pagará com seu corpo. Seu trabalho estará à disposição dos advogados da empresa. Eles escolheram quando e onde será prestado. Segundo a petição de "acordo": "Os trabalhos sociais serão realizados uma vez por semana pelo Alessandro, por no mínimo duas horas semanais às quintas-feiras, iniciando as atividades em 9 de julho de 2020 e terminando em 24 de setembro de 2020. Mensalmente, fica responsável de comprovar junto à Fass a realização das atividades junto à Fundação Beneficente Praia do Canto".   Enquanto prestar esses serviços, Alessandro não estará trabalhando como empregado ou "autônomo". Não estará, portanto, recebendo salário, com o qual poderia alimentar sua família ou pagar suas contas. E note-se: não se trata de trabalho voluntário, é importante que se perceba. O local e a frequência do trabalho estão impostos. No termo de acordo, há assinatura da advogada do reclamante, mas não a dele. Alessandro também não estava presente na audiência em que noticiada a solução dada ao processo. Há muitas questões envolvidas nessa "solução conciliada", noticiada como algo positivo. Há, sobretudo, o desvelamento de um sintoma social: a escravidão que nos habita [1https://www.conjur.com.br/2020-out-01/valdete-severo-quando-conciliar-nao-legal?fbclid=IwAR3yE0lzWTaR82tKrALVFmEuq97to-bWdvq3ZowEInVdlNwbyy-df1qSUdU#_ftn2" style="color: purple; text-decoration: underline;" title="" name="_ftnref2">[2https://www.conjur.com.br/2020-out-01/valdete-severo-quando-conciliar-nao-legal?fbclid=IwAR3yE0lzWTaR82tKrALVFmEuq97to-bWdvq3ZowEInVdlNwbyy-df1qSUdU#_ftn3" style="color: purple; text-decoration: underline;" title="" name="_ftnref3">[3], dos quais o Brasil é signatário, que estabelecem a quem teve um direito fundamental violado, a garantia da devida proteção jurídica mediante recurso simples, rápido e eficaz contra a violação sofrida, incompatível com a disciplina de cobrança de custas e honorários inserida na CLT pela Lei 13.467/2017. Ou seja, essa legislação não passa pelo filtro da constitucionalidade ou da convencionalidade. Diante disso, resta o sentimento de que, em algum momento, ao longo desses anos que nos separam do processo de abertura democrática e de construção de uma ordem constitucional comprometida com a solidariedade, a justiça e a dignidade, perdemos o rumo. Já não é mais suficiente negar efetividade aos direitos trabalhistas, alterar a legislação para precarizar as condições de trabalho, negar o direito de greve, promover a retórica da falsa escolha entre ter emprego ou ter direitos ou atribuir à classe trabalhadora a culpa por opções econômicas e políticas que concentram cada vez mais a riqueza nas mãos de poucos, multiplicando a miséria e a exclusão social. Há radicalidade na ruptura da ordem constitucional que aí se insinua, pois não há limite para um caminho como esse. Talvez daqui a algum tempo, a seguir por essa trilha, teremos acordos ou decisões determinando a doação de órgãos como forma de pagamento de dívida. O fato é que agora está instituída uma ameaça velada a quem praticar o ato de coragem que é ajuizar uma ação trabalhista, num país que ignora a garantia constitucional contra a despedida arbitrária e tem mais de 13 milhões de pessoas desempregadas. Há um imperativo de gozo perverso que se apresenta como realidade: um homem que vive do trabalho prestará serviços não remunerados em favor da entidade escolhida pelos advogados da empresa para a qual ele vendeu sua força de trabalho por quatro anos, sem reconhecimento de vínculo de emprego e, portanto, sem direitos fundamentais. Alessandro apenas ajuizou ação trabalhista. E, a manter-se tal decisão, será compelido a pagar por isso, com trabalho forçado imposto sob uma falsa áurea de consensualidade. -  [1https://www.jorgesoutomaior.com/blog/a-escravidao-que-nos-habita">https://www.jorgesoutomaior.com/blog/a-escravidao-que-nos-habita. [2http://www.tst.jus.br/documents/18640430/ea7b6ee4-c781-081e-1ed3-5a071aeb061f">http://www.tst.jus.br/documents/18640430/ea7b6ee4-c781-081e-1ed3-5a071aeb061f. [3] A Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturas e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.  * Valdete Souto Severo - é juíza do Trabalho do TRT-4, presidenta da AJD (Associação Juízes para a Democracia), doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/RS) e pós-doutoranda do programa de Ciências Políticas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS). Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 01 de outubro de 2020. 

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