Área do associado

  • Associe-se!
  • Esqueci a minha senha

AJD Portal
  • Início
  • Sobre nós
    • Quem somos
    • Estatuto da AJD
    • Aplicativo AJD
  • Notícias
  • Podcasts
  • Documentos
    • Atividades do Conselho
    • Cidadania
    • Voto e Cidadania
  • Decisões
    • Eleitoral
    • Penal
    • Trabalho
    • Administrativo
    • Cível
    • Consumidor
    • COVID-19
    • Povos indígenas e comunidades tradicionais
    • Juros e correção monetária na JT
  • Artigos
  • Publicações
    • Jornal
    • Revista
  • Eventos

Artigos

  1. Início
  2. Artigos

Produtividade e gênero na magistratura trabalhista em tempos de pandemia

No dia 15 de agosto de 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apurou os seguintes dados referentes à Justiça do Trabalho: desde a determinação do trabalho remoto em março deste ano, foram proferidos mais de 1,6 milhões de sentenças e acórdãos, 1,7 milhões de decisões e 6,5 milhões de despachos, com mais de 90 milhões de movimentos processuais e destinados mais de R$ 197 milhões para combate à pandemia. A Justiça do Trabalho se destacou neste período por ter a quase totalidade dos processos em andamento já no formato eletrônico (PJE), o que possibilitou a continuidade da tramitação processual. A despeito da condição privilegiada em termos de segurança sanitária, o trabalho remoto improvisado a que magistrados e servidores tiveram que aderir não se trata juridicamente de teletrabalho, pois, diante da situação de excepcionalidade, não houve o planejamento e a organização para tanto. A mera transposição do trabalho nos fóruns para as residências parece um problema de ordem menor, se comparada com o cenário atual, mas isso não afasta a necessidade real de enfrentar novas situações de fato e demandas (adaptação de um espaço para o trabalho em tempo integral, muitas vezes sem o equipamento, a internet ou as condições de ergonomia necessárias). Nesse contexto, o desafio mental é apreender os efeitos das normas do direito e do processo do trabalho emergencial, ao mesmo tempo em que se aprende a atuar por meio de plataformas de videoconferências, além de rever a forma de organização do trabalho. Se o PJE permitiu que não fosse interrompida a tramitação dos processos, o isolamento de servidores e juízes prejudicou o senso de coletivo e tornou mais pesada a carga mental do trabalho intelectual, agravada pela lógica da produtividade. Vale notar que os números são frequentemente invocados em relação ao judiciário trabalhista, como se a justiça social pudesse ser aferida, por exemplo, com a quantidade de casos novos (aliás, um número sobre o qual a instituição não tem ingerência). A recente interpelação a respeito das audiências telepresenciais parece desconsiderar que 1/4 da população brasileira não tem acesso à internet e que a própria advocacia trabalhista tem manifestado preocupação com as dificuldades técnicas de seus clientes, além de outras questões. Outra questão que permeia o trabalho remoto é o recorte de gênero. Matéria de maio de 2020, publicada em um veículo da mídia, trouxe diversos relatos de homens trabalhadores no sistema de justiça, exaltando o aumento da produtividade no trabalho remoto em razão da pandemia. Os depoimentos afirmaram vantagens no home office: não gastar tempo com deslocamento, possibilidade de trabalhar com roupa casual, rotina de exercícios físicos e maior contato com filhos. O chamado trabalho reprodutivo ficou encoberto na reportagem pretensamente neutra. As narrativas ocultam o trabalho doméstico e de cuidado com crianças, idosos e pessoas doentes, que não preocupa os entrevistados. O machismo naturaliza os papeis de gênero, de modo que a mulher trabalhadora ainda não se libertou do status de “rainha do lar” e o valor social do trabalho doméstico e de cuidado exercido, de forma remunerada ou não, majoritariamente por mulheres, é mascarado. A rotina das magistradas e servidoras (e provavelmente das advogadas) em tempos de trabalho remoto é bem menos glamorosa do que a retratada na referida matéria. O cotidiano é marcado pela (in)conciliação da tripla jornada e pela consequente sobreposição das cargas física, mental e psicológica, acentuadas com o distanciamento social. De uma hora para outra, novos desafios se impuseram: a confusão entre o espaço público e o privado, a falta de limites para o tempo de trabalho profissional, a retirada repentina da rede de apoio diário (escola, babá, trabalhadora doméstica, faxineira etc.), a responsabilidade pelo cuidado de pessoas dependentes, a gestão das necessidades e rotinas de todos que estão confinados em um mesmo espaço residencial, além da organização e da realização de tarefas de limpeza em geral, do cuidado com as roupas, do preparo dos alimentos etc. Tudo isso com o indispensável asseio para controle da propagação do coronavírus. Na pandemia, as antigas demandas outrora terceirizadas (para o mercado ou para outras mulheres) chamam as servidoras e magistradas de volta ao trabalho doméstico e de cuidado, dando a dimensão do quão pouco se avançou em termos de equitativa responsabilidade pela reprodução social da vida. Não há dados do CNJ de apuração da produtividade por gênero. Todavia, a desigualdade de gênero no trabalho remoto pode ser demonstrada pela redução de artigos acadêmicos escritos por mulheres no distanciamento social, como verificou a DADOS Revista de Ciências Sociais. No segundo trimestre de 2020, houve o menor percentual de autoras mulheres assinando artigos científicos submetidos à revista (28%) segundo levantamento realizado desde o primeiro trimestre de 2016. A revista alerta que os dados são preliminares e demandam cautela analítica, mas outros estudos em revistas científicas estrangeiras apontaram esse decréscimo. Ainda em tempos de pandemia, é difícil aferir os impactos do trabalho remoto para a saúde física, psíquica e mental de todos, mas é evidente que o cuidado é central para a vida social. O que fica desta experiência é que a desigualdade de gênero, muitas vezes pensada em termos de participação feminina nas instituições, aparece nitidamente no cotidiano de todos, ainda que seja invisibilizada na perspectiva neutra. Uma ampla discussão sobre o gênero e a divisão sexual (e racial) do trabalho é premissa para uma sociedade livre, igual e democrática. Se é possível falar em “novo normal”, não podemos perder a oportunidade de refletir sobre como a sociedade global se organiza para deixar de priorizar o lucro e a competitividade e passar a escolher a vida e o bem-viver. Patrícia Maeda, juíza do Trabalho Substituta – TRT 15 (Campinas/SP). Doutora em Direito do Trabalho e Seguridade Social (USP). Integrante da Comissão Anamatra Mulheres  Artigo publicado originalmente no site Estadão no dia 19 de outubro de 2020. 

A inversão da realidade racista

“Enquanto os homens exercem seus podres poderes,Morrer e matar de fome de raiva e de sedeSão tantas vezes gestos naturais”(Caetano Veloso) Um defensor público da união entrou com ação contra a iniciativa de seleção de pessoas negras para o trabalho, adotada por uma grande empresa. Pede condenação por dano à coletividade. Curioso, pois o país tem política pública similar (Lei 12.288/2010). Trágico, pois tal política justifica-se na realidade de que embora a maioria das pessoas no Brasil sejam pretas ou pardas, há muito mais pessoas negras sem trabalho, do que brancas. Acima de tudo, vergonhoso. A inversão da realidade, para o efeito de considerar racista a oferta de vagas de emprego a pessoas negras é (mais um) caso emblemático a demonstrar que não servem leis proibindo discriminação ou determinando a promoção de inclusão social, como é o caso – vejam só – da nossa Constituição. Também não servem leis como o Estatuto da Igualdade Racial, se o pacto silencioso de manutenção do racismo estrutural pode ser expressado através do (mau) uso do direito, subvertendo a noção que funda esse conjunto de regras que versam sobre práticas discriminatórias. Aprendemos uma vez mais com esse exemplo que Direito é discurso e, por isso mesmo, pode comportar qualquer coisa, até mesmo a distorção absoluta de um argumento e de tudo o que ele representa, inclusive historicamente. Direito é linguagem, e a linguagem admite que se afirme algo que em realidade se está a negar. Veja-se o caso da recente fala de Bolsonaro na ONU. Ele, na condição de Presidente da República, afirmou que “somos líderes em conservação de florestas tropicais” e reclamou ser vítima “de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal”. Enquanto isso, o número de queimadas bate recorde, comprometendo biomas e espécies ameaçadas de extinção; o governo desmantela o sistema de prevenção e fiscalização ambiental que poderia evitar muitas delas, revoga resoluções que restringiam o desmatamento e a ocupação em áreas de restinga, manguezais e dunas e permite a queima de lixo tóxico. Enquanto mata, diz que protege. As mulheres conhecem bem essa estratégia discursiva, especialmente aquelas vítimas de violência praticada por quem constantemente reafirma seu “amor”. É essa mesma lógica que justifica a alegação de racismo contra quem busca atuar para minimizar uma desigualdade histórica de acesso e oportunidade, essa sim reprodutora de práticas racistas. Uma desigualdade traduzida em números que revelam não apenas a diferença nos salários praticados, mas também nas possibilidades de manutenção do emprego. A PNAD Contínua do IBGE em 2020 mostrou, por exemplo, que a taxa de desemprego de pessoas pretas está em 17,8%; a das brancas em 10,4%. É verdade que não deveria mesmo existir uma empresa que precisasse, num país em que a maioria das pessoas é negra ou parda, destinar vagas que permitam colorir seus espaços de atuação e reduzir os efeitos do racismo. Mas ainda não chegamos lá. E, para isso, será preciso bem mais do que a lei. Será preciso mudar a racionalidade. É disso que falam Lélia Gonzales, Sueli Carneiro, Silvio Almeida: o racismo está nas estruturas sociais, que condicionam a subjetividade de quem, sendo racista, não consegue suportar ações de inclusão social. O fato de que a iniciativa tenha sido adotada por um agente público, faz refletir também sobre para que serve afinal o Estado, pois, se for para perseguir e ameaçar quem resolve agir para corrigir desigualdades históricas, talvez não faça sentido. Ainda bem que se trata de um ato isolado. A NOTA TÉCNICA Nº 3 – DPGU/SGAI DPGU/GTPE DPGU prova isso. O Estado existe para fazer valer a Constituição, inclusive quando propõe a eliminação da discriminação e a redução das desigualdades sociais, sobretudo aquelas que nos assombram, porque recalcadas em quase 400 anos de escravização institucionalizada. Agir contra ações afirmativas, utilizando-se da estrutura estatal, mostra um desejo bem maior do que aquele ligado ao resultado do processo. Desejo de transmitir um recado: o de que a parte mais pálida e conservadora da sociedade brasileira resiste com unhas, dentes e peças processuais absurdas, contra os pequenos avanços na desconstrução do pacto narcísico da branquitude. Basta pensarmos que se trata de um defensor público branco insurgindo-se contra ação afirmativa que alcança pessoas negras. É o fato de a população negra ocupar as periferias das cidades, os piores trabalhos e a maior parte do contingente excluído das possibilidades de vida digna, o que permite a reprodução do racismo estrutural. Os corpos negros servem para manter os privilégios materiais e imateriais das pessoas brancas. É por isso que programas pensados para promover o trabalho de grupos não marcados pela raça, não causam esse tipo de reação. Só nos resta seguir em frente, sabendo que “enquanto os homens exercem seus podres poderes, índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes fazem o carnaval” da diversidade e da inclusão.    Artigo publicado originalmente no site  https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-inversao-da-realidade-racista/?fbclid=IwAR0mtoHPpilG3uDFI592TU9Xk2eGiNv8Eg6icITdWQFs9YdGCQCDpRI   no dia 07 de outubro de 2020. 

Lei de Segurança Nacional e o medo de ver emergir o Monstro da Lagoa

Quando falamos em nostalgia há uma tendência em romantizar esse sentimento, considerando-o muitas vezes como algo inofensivo, como de fato, geralmente o é. A nostalgia, entretanto, como qualquer outro sentimento, pode ensejar combinações perigosas, notadamente quando embala as crenças de um governo autoritário. Nesse caso, como adverte Svetlana Boym, “O perigo da nostalgia é que ela tende a confundir o lar verdadeiro com o imaginário”.[1] Para a autora, aliás, essa perigosa nostalgia pode ser encontrada nas “revivificações nacionais e nacionalistas do mundo todo, as quais se empenham na fabricação de mitos antimodernos de história, por meio de um retorno a símbolos e mitos nacionais e, ocasionalmente, com teorias intercambiáveis da conspiração”.[2] Não é preciso muito esforço para que possamos identificar o momento pelo qual estamos passando em nosso país, onde uma perigosa nostalgia pretende levar-nos ao lar imaginário da ditadura militar de 1964, paraíso no qual não haviam torturas, mortes e desaparecimentos forçados. Essa crença negacionista do passado, em uma perigosa combinação de autoritarismo e nostalgia, permite lembrar-nos acerca do risco que corre a nossa democracia, porque “O animal está à espreita, pronto a eliminar a camada terrivelmente fina de decoro convencional, antes destinada a ocultar o feio que a subjugar e conter o sinistro e sanguinário”.[3] Essa nostalgia, no caso brasileiro, nunca foi disfarçada. Pelo contrário, é explícita, tanto que ao soberano de plantão tudo é possível, desde a adoração de um torturador – o único reconhecido como tal por decisão judicial –, até o ato de incentivar que instituições de Estado, no caso as Forças Armadas, comemorem o golpe de 64. Esse escárnio oficial praticado pelo Estado brasileiro se passa, infelizmente e para perplexidade geral, a despeito do sofrimento imposto às vítimas e aos familiares das vítimas da ditadura militar e da circunstância de nossa Constituição consagrar a dignidade da pessoa humana e o respeito aos Direitos Humanos. Diante desse caldo de cultura, não deixa de ser temerário que tenhamos entre nós, em pleno vigor, o entulho autoritário representado pela Lei de Segurança Nacional, ou seja, a Lei n. 7.170/83, que herdamos da ditadura militar. Se o autoritarismo nostálgico está no ar, começo por versos de uma resistência nostálgica que só poderiam vir do talento de Chico Buarque para dizer que “Esse silêncio todo me atordoa, atordoado eu permaneço atento, na arquibancada pra a qualquer momento, ver emergir o monstro da lagoa”. Não custa lembrar que esse entulho autoritário, vigente e ainda aplicado em pleno 2020, se prestava, na época da ditadura militar, em nome de uma Doutrina de Segurança Nacional, à perseguição dos inimigos políticos. Essa finalidade, mal disfarçada de “proteção à segurança” nacional, não mais se justifica em um Estado Democrático de Direito, tanto que o art. 5º, XLIV, de nossa Constituição Federal estabelece que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”. Soa evidente, nesse contexto, o descompasso entre a Lei de Segurança Nacional, concebida durante a ditadura militar, e a proteção da ordem constitucional e do Estado Democrático. A esse respeito, Luís Roberto Barroso, atual Ministro do Supremo Tribunal Federal, aponta não apenas a inconstitucionalidade de vários dispositivos contidos na LSN, mas, também, que seus valores se afastam “dos princípios e conceitos que inspiraram a reconstrução democrática do país[4] Essa lei, portanto, há muito já deveria ter sido retirada de nosso ordenamento jurídico. Não cabe discutir, a essa altura, se isso ocorreu por descuido ou ingenuidade, pois a realidade é que não fizemos adequadamente o nosso dever de casa. Por essa razão, passados 32 anos da promulgação da Constituição de 88, deixamos passar, e foi ficando entre nós, em pleno vigor e com renovada utilização, esse odioso entulho autoritário. Coincidência ou não, em uma realidade de nostalgia autoritária, a utilização da Lei de Segurança Nacional para a instauração de inquéritos policiais vem experimentando um crescimento. Possível constatar, a partir de notícia veiculada pelo site de notícias Brasil de Fato, não repercutida pela grande mídia, a informação de que, em 20 anos, a Lei de Segurança Nacional foi utilizada 155 vezes para a instauração de inquéritos.[5] Desse total, como informa o Brasil de Fato a partir de dados obtidos mediante o uso da Lei de Acesso à informação, 41 inquéritos foram abertos após decorridos 18 meses do governo do Presidente Jair Bolsonaro, o que equivale a 26% dos procedimentos policiais que tem por objeto supostos crimes contra a segurança nacional.[6] A pergunta que se impõe é se seria possível colocar na conta do atual Presidente da República esse considerável aumento na utilização da LSN. Por contraditório que possa parecer, a resposta que podemos dar é sim e não. No caso, quem pode provocar a atuação da Polícia Federal, a quem cabe investigar os crimes da LSN, são o Ministério da Justiça, o Ministério Público Federal e o Supremo Tribunal Federal. Assim, sem um mergulho nas informações disponibilizadas, não é possível saber se todos os inquéritos tiveram origem em solicitação do Ministro da Justiça e, portanto, podem ser atribuídos ao governo. Isso não nos impede, entretanto, de considerar que o governo atual incentiva, desde antes de sua posse, um caldo de cultura nostálgico e autoritário em relação à ditadura militar (1964-1985). Veja-se, a propósito, não apenas a referência do atual Presidente da República, tão logo eleito, ao envio de seus opositores à ponta da praia, sabidamente um local de tortura e morte no período da ditadura militar[7], a insistência em comemorar março de 64 nos quartéis e o culto à figura do único torturador assim reconhecido pelo Judiciário brasileiro. Volto ao exame do noticiário para apontar dois fatos que refletem a utilização da Lei de Segurança Nacional pelo Ministério da Justiça durante o governo atual. O primeiro diz respeito à manifestação do atual Ministro da Justiça acerca da solicitação da abertura de inquérito policial com base na LSN, em razão de charge elaborada por Renato Aroeira.[8] O segundo corresponde à efetiva instauração de inquérito policial com base na LSN contra o jornalista Hélio Schwartsman, em razão de requisição do Ministro da Justiça, diante de crítica que teria sido endereçada à Bolsonaro.[9] Aliás, a suspensão desse inquérito foi determinada liminarmente pelo Ministro Jorge Mussi, do STJ, por não constatar a presença de “motivação política, tampouco a lesão real ou potencial à integridade territorial, à soberania nacional, ao regime representativo e democrático, à Federação ou ao Estado de Direito”.[10] O que se constata, sem qualquer pretensão de adentrar no exame do conteúdo dos atos que ensejaram as requisições do Ministro da Justiça, é que o governo está lançando mão desse expediente de utilização da Lei de Segurança Nacional[11] em face atos que podem configurar ou não críticas endereçadas ao atual ocupante do Planalto Central. Nesse passo, a retomada dessa prática sempre que matérias jornalísticas ou charges possam desagradar ao soberano de plantão, representa um perigoso retorno a um passado autoritário que traduz afrontoso desrespeito à Constituição.  Por outro lado, ao buscar a caracterização de um crime contra a segurança nacional em face do exercício da liberdade de expressão, o que por si só já seria descabido, esquecem os asseclas do soberano, bem como o próprio, deliberadamente ou por ignorância, que a Constituição Federal determina a proteção da ordem constitucional e do Estado Democrático, no que não se insere, por evidente, a honra do ocupante do cargo. Atingir a honra do Presidente da República, portanto, não representa uma conduta que importe em ameaça à ordem constitucional ou ao Estado Democrático e, dessa forma, não justifica a utilização da ultrapassada (para dizer o mínimo), Lei de Segurança Nacional. Isso não significa que o Presidente da República não mereça a proteção penal, mas sim que esta, ao menos em relação aos delitos contra a honra, deve ser buscada na legislação penal comum. Com efeito, em uma democracia, na qual o Estado e a pessoa do soberano não se confundem, a proteção penal da honra do Presidente não difere muito daquela alcançada aos demais cidadãos.  A legislação penal comum, aliás, já prevê que é mais grave o ato de atingir a honra do Presidente da República, tanto que o Código Penal brasileiro estabelece a possibilidade de uma pena mais elevada em tal hipótese, ao contemplar uma causa de aumento de 1/3.[12] Por certo que a opção pela Lei de Segurança Nacional, com toda carga simbólica que ela carrega e com a possibilidade de uma pena ainda mais elevada do que aquela estabelecida no Código Penal, indica a opção por aquela hipótese que detém maior poder de intimidação, dada a possibilidade de alcançar uma pena de quatro anos de reclusão. Isso, evidentemente, em um contexto de nostalgia autoritária, não surpreende. Afinal, não custa nada, repetindo o passado venerado, experimentar uma tentativa de silenciar jornalistas e humoristas e eventuais dissidências pela intimidação decorrente da instauração de um processo com base na Lei de Segurança Nacional. Essa tentativa é, contudo, além de antidemocrática, autoritária, situando-se, assim, muito próxima daqueles atos outrora patrocinados pela ditadura militar. Já passou da hora, portanto, antes que tornemos a ver emergir o monstro da lagoa, enquanto aguardamos pela elaboração de uma legislação afinada com a Constituição, de estancar essa tendência autoritária. É necessário, pois, buscar uma interpretação desse entulho autoritário chamado Lei de Segurança Nacional que obste a sua utilização para a intimidação daqueles que ousem pensar diferente ou criticar o ocupante do poder, seja ele quem for. A democracia, embora combalida, agradece.  *Luiz Antônio Alves Capra é juiz de Direito- TJRS, membro da AJD e Professor de Direito Penal.  Artigo publicado originalmente no site Justificando  no dia 21 de outubro de 2020. 

O espólio das MPs na Covid-19 — o Direito do Trabalho de exceção ou de emergência

O mundo inteiro passa por um momento único. Uma pandemia assombra a humanidade. Trata-se de situação jamais imaginada, ainda que, há pouco mais de um século — com a gripe espanhola —, a população tenha vivido algo semelhante (porém sem que seus efeitos tenham sido sentidos pelas gerações mais recentes). Nesse viés, é importante pensar como reagiremos para além desse cenário catastrófico. E o Direito do Trabalho tem papel relevantíssimo. É curioso pensar que há pouquíssimo tempo o Direito do Trabalho tenha passado por um grave "momento de crise" — acentuado pela Lei 13.467/2017. E agora ele se vê como um Direito do Trabalho para resolver "a crise". A famigerada reforma, é certo, retirou direitos, sob a promessa de criar empregos e reduzir a litigiosidade — promessas que não se concretizaram. Afinal, passados três anos, o nível de desemprego aumentou e o represamento da distribuição — inflado pelo temor de o empregado sair, ao final, devendo (por ter que pagar custas e honorários) — começa a dar sinais de retorno aos patamares de outrora. E agora, no cenário atual, ele, o Direito do Trabalho, volta com força total para dar soluções aos problemas ingentes que surgem e surgirão. Nessa linha, seus operadores terão de aprender a lidar com o regramento normativo que se apresenta durante a pandemia, sem se olvidar dos preceitos constitucionais vigentes e de seus princípios que, conquanto venham sendo solapados, ainda permanecem como fundamentos desse ramo do Direito. Até o presente momento, foram editadas várias medidas provisórias tratando de matérias relativas à temática trabalhista. Podemos citar as MPs 927, 928, 936, 944 e 946, sendo certo que, dessas, a 936 foi convertida na Lei 14.020/2020 e a 927 — para surpresa de muitos — não o foi, tendo "caducado" no último dia 19 de julho. Pode-se dizer que esses dois diplomas (a MP 927 e agora a Lei 14.020) constroem o arcabouço normativo mais consistente deste período de pandemia — adjetivados por muitos como "Direito do Trabalho de exceção ou de emergência". A MP 927 trouxe um rol de medidas "aptas" ao enfrentamento da pandemia, sob o pretexto de manutenção dos postos de trabalho. No entanto, seu artigo 18 foi deveras polêmico ao criar a figura da suspensão contratual para qualificação profissional, sem o pagamento de nenhuma contrapartida obrigatória (salvo de forma facultativa) e pelo extenso prazo de quatro meses. Ora, dessa forma era melhor ao trabalhador, de verdade, ser dispensado, pois pelo menos conseguiria obter benefícios por sua inatividade forçada, como o seguro-desemprego. A grita foi tamanha — por diversos setores da sociedade — que o indigitado artigo 18 não sobreviveu nem 24 horas, tendo sido revogado, de forma sui generis (por outra MP, a 928) — o que não encontra amparo pela jurisprudência do STF (a discussão não necessitará progredir quanto à forma de revogação, pois a própria MP 927 acabou perdendo sua eficácia). Além da malsinada suspensão contratual, a MP 927 trouxe outras várias medidas de enfrentamento, das quais se destacam o teletrabalho, a antecipação de férias individuais e coletivas e feriados e o banco de horas com prazo mais elastecido (18 meses após o fim da pandemia que, pelo DL 6, irá até 31 de dezembro de 2020). E nem se alegue desnecessário tratar desta MP — pelo fato de ela não ter sido convertida em lei. Assim não é, pois seus efeitos irradiarão por muito tempo ainda, já que nela havia medidas que extrapolavam em demasia seu período de vigência (o banco de horas com o prazo elástico de 18 meses após o fim da pandemia é um deles). Nessa seara, faz-se mister relembrar o disposto no artigo 62, §11, da CRFB/88, no sentido de que — inexistindo decreto legislativo editado pelo Congresso Nacional (o que não aconteceu) — as medidas provisórias conservarão sua eficácia pelo tempo em que vigeram, de modo que se torna imperioso o estudo de tal norma para a resolução de diversos problemas que poderão ocorrer no futuro. A primeira grande controvérsia gerada pela MP 927 estava em seu artigo 2º, uma vez que tal norma dava poderes ilimitados aos acordos individuais entre empregado e empregador, ressalvando apenas as normas previstas na Constituição. A referida MP manteve algumas inconsistências e inconstitucionalidades perpetradas pela reforma e trouxe outras, como a exclusão das horas extras aos teletrabalhadores (retirando-lhes o direito à desconexão, quando se sabe que só não fazem jus a tais horas se a fiscalização do labor for faticamente impossível de se realizar), a desnecessidade de exames admissionais e periódicos aos trabalhadores em momento crucial, potencializando os riscos de contaminação pelo coronavírus no ambiente de trabalho — o que se revela de todo inconstitucional, pois em confronto ao inciso XXII da Constituição, entre outras. A audácia do Poder Executivo foi tanta que retirou da fiscalização do trabalho seu poder de autuar — deixando-o com feição meramente orientadora, além de excluir a Covid-19 como doença ocupacional (salvo se com comprovação do nexo causal). Esses dois artigos (31 e 29 da MP 927) acabaram tendo sua eficácia suspensa pelo STF em decisão do ministro Alexandre de Moraes, que vislumbrou inconstitucionalidades formais (fugiam ao escopo da MP — preservação do emprego e não se revestiam de urgência e relevância), embora as materiais também sejam evidentes (afronta ao inciso XXII do artigo 7º da CRFB/88 — redução dos riscos) e até mesmo inconvencionalidades (afronta à Convenção 155 da OIT). Ainda sobre a MP 927, causa espanto o tratamento dado aos profissionais de saúde, permitindo-se a eles jornadas superiores à já malfadada escala de 12 x 36 — sufragada pela reforma —, o que se afigura, evidentemente, inconstitucional. A situação piora inclusive porque se permitiu o labor extraordinário em ambiente insalubre, em plantões de até 24 horas trabalhadas — respeitando-se apenas o repouso semanal. Relembre-se, a propósito, que além da MP 927, outras MPs em matérias trabalhistas recentes não foram convertidas em lei, como as 808 (reforma da reforma) e 905/2019 (contrato de trabalho Verde Amarelo), tampouco sobrevieram decretos legislativos editados pelo Congresso Nacional regulando seus efeitos. A constatação de sua não conversão em lei, ao mesmo tempo que gera certo alívio (o balão de ensaio para uma eventual permanência das medidas, ainda que depois da pandemia), traz também a sensação de enorme insegurança jurídica. Visto isso, passemos à MP 936. Tal norma acabou sendo convertida na Lei 14.020/2020 e surgiu em razão da revogação do artigo 18 da MP 927. Ela criou o programa emergencial para manutenção do emprego e renda, baseado em três elementos: a concessão de um benefício emergencial (calculado de acordo com os valores do seguro-desemprego), a redução salarial e de jornada e a suspensão contratual. Assim como a MP 927, a 936 também eclode com várias polêmicas. A maior delas, com certeza, é a relativa à possibilidade de acordo individual para redução salarial e de jornada e suspensão contratual, uma vez que o artigo 7º, VI da CRFB/88 apenas permite essas modalidades em caso de crise aguda e com a participação obrigatória do sindicato. Nesse aspecto, apesar de o STF — instado a se manifestar via diversas ações — ter rejeitado a inconstitucionalidade, faz-se necessário relembrar que não se pode admitir exceções ao regramento jurídico. Ora, não estamos sob estado de defesa ou de sítio e, nem mesmo nessas hipóteses, a Carta Magna autoriza a redução salarial. Assim, parece-me flagrante a inconstitucionalidade. Feitas essas considerações acerca do arcabouço legislativo até esse momento da pandemia, registro que é com esse cenário de incerteza e insegurança jurídica constante (relembrando o problema que advém da não conversão em lei das medidas provisórias) que o Direito do Trabalho emergirá no cenário pós-pandemia. Seus operadores precisarão contornar os diversos imbróglios trazidos pela legislação de modo a assegurar a melhor interpretação, dando-lhe sobrevida. Mas não é só. A política de enfrentamento do governo brasileiro à pandemia não traz paralelismo àquelas efetivadas por outras nações. A injeção de dinheiro público para manutenção dos contratos de trabalho não encontrou ressonância no Brasil, a despeito de ter ocorrido em outros países. Como ressaltei, o governo pretendeu afastar o trabalhador por quatro meses, deixando-o à míngua de qualquer contraprestação. Só depois de muito estardalhaço, inclusive na mídia, é que recuou e, com a MP 936 resolveu implementar o benefício emergencial com valores que não alcançam o salário, pois fixados de acordo com os patamares do seguro-desemprego. Assim, a crise que já se desenhava antes da pandemia tende a se agravar. O Direito do Trabalho, sempre apontado como um agravador das crises (de todas?), será indispensável. Nessa linha, deve-se olhar com preocupação para a gama enorme de trabalhadores mais vulneráveis. Mesmo os que manterão seus empregos encontrarão dificuldades. Torna-se impositivo começar a se pensar no conceito de renda universal garantida, de modo a prover uma gama enorme da população, desvinculada do conceito de trabalho, mas de renda — como já existe em outros países (Canadá, por exemplo). Por sua vez, a gig economy está aí, atraindo uma multidão de prestadores de serviços que não encontram amparo no alcance restritivo dos artigos 2º e 3º da CLT. É urgente alargar-se o conceito de subordinação, deslocando-se o viés subjetivo para o objetivo (estrutural), de modo a contemplar, assim, trabalhadores que prestam serviços a empresas-aplicativo (Uber, Loggi, Rappi etc.), por exemplo. Para além disso, já que o processo proposto pode ser demasiado lento, devem-se abrir as lentes para o disposto no rol de direitos previstos no artigo 7º da Lex Legum, relembrando-se que os direitos ali previstos não se restringem aos empregados (que se enquadrem no modelo celetista dos artigos 2º e 3º), mas a todos os trabalhadores urbanos e rurais. É importante, portanto, que a força in fieri do Direito do Trabalho — conceito da saudosa professora Alice Monteiro de Barros — surja com força total. Ou seja, expanda-se para um leque maior de trabalhadores, como já o fez para os avulsos, domésticos e temporários. São essas situações, portanto, que o Direito do Trabalho deverá estar preparado para enfrentar e, com certeza, enfrentará; rechaçando, veementemente, os prenúncios apocalípticos de autores contemporâneos sobre o fim do próprio conceito de emprego que temos hoje. A tendência é que o Direito do Trabalho se aproxime ainda mais do Direito da Seguridade Social e do Direito Ambiental, possibilitando abarcar mais sujeitos até mesmo de forma transindividual.  *Ronaldo Callado - é juiz do Trabalho, titular da 38ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, especialista em Poder Judiciário pela FGV/RJ (Fundação Getúlio Vargas) e diretor de comunicação da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho.  Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 15 de outubro de 2020. 

Trabalhadores do mundo, uni-vos!

As transformações operadas no processo produtivo a partir da década de 1970, com reflexos diretos no mundo laboral, foram decorrências das necessidades do capital de preservar o seu ciclo de reprodução, que apresentava sinais de esgotamento diante de crises estruturais próprias do sistema capitalista. Os avanços tecnológicos foram centrais nas mudanças ocorridas no mundo do trabalho, seja porque induziram uma alteração fisionômica na classe trabalhadora, com o labor fabril cedendo espaço ao chamado setor de serviços, seja pela expansão do desemprego estrutural decorrente da robotização e das novas formas comunicacionais, que abriu espaço para a intensificação do trabalho e a precarização dos elos contratuais. É esse o modus operandi do sistema capitalista: criar e recriar formas de aprofundar a exploração do trabalho humano, de modo que o motor acumulativo não sofra descontinuidade no seu funcionamento.  O que assistimos hoje é o mundo sucumbido à força danosa do capital e à sua lógica desumana, que se apresentam não apenas nas ações predatórias da natureza e na destruição dos afetos e dos valores culturais, mas principalmente na mercadorização do trabalho e na deturpação de seu verdadeiro sentido emancipatório e produtor de intersubjetividades e de sociabilidade.¹ A sociedade precisa melhor compreender esse processo de desvalorização do trabalho enquanto atividade humana vital e as suas consequências deletérias para a efetivação do objetivo civilizatório de igualdade; e identificar, sobretudo, os interesses reais escusos que gravitam em torno do discurso ideológico da imperiosidade dessa nova morfologia precarizada. Esse chamado “novo mundo do trabalho”, que se apresenta com uma embalagem que sugere modernidade, progresso, avanço, nada tem de diferente ou de inovador. Quando se retira o invólucro, vê-se o mesmo mundo de apropriação de mais valia pela exploração da força humana, intrínseca ao modo de produção capitalista, como já advertido por Marx no século XIX. No mundo mercantilizado do trabalho, há os que compram a força de trabalho alheia e aqueles que a vendem, os que exploram e os que são explorados, os que detêm o capital e aqueles que dele são dependentes para garantir a sobrevivência. Portanto, povoam o mesmo espaço subalterno todos os que vivem do trabalho, independentemente dos rótulos que lhes são impostos: empregados, parassubordinados, autônomos, informais, uberizados, empreendedores individuais, etc. Essa é a classe trabalhadora que produz a riqueza da qual o capital se apropria. A doutrina do individualismo, que passa a ser prevalecente na nova ordem globalizada, bem identificada nos processos de gestão produtiva baseada no trabalho flexível, torna o trabalhador refém do sistema e da lógica da competição intraclasse, trazendo como consequência a quebra do solidarismo e a destruição da consciência de classe, que sempre foram a espinha dorsal e força motora da luta coletiva. São os tempos de barbárie que se apropriam do mundo real, ocultados pela massificação de discursos proselitistas engendrados para obscurecer a razão e construir um ambiente de despertencimento de classe, de modo a permitir que a onda avassaladora de destruição dos direitos sociais avance sem percalços reativos, e, até mesmo, com o adesismo acrítico de parte do segmento trabalhador. É esse o retrato do trabalho no mundo contemporâneo do capital, resultado da adesão incondicional ao ideário neoliberal: precarizado, flexível e fragmentado; e ainda refém do desemprego estrutural, que possibilita o aprofundamento da exploração pela intensificação do trabalho e o barateamento de seu custo. Não é preciso dizer que esse modelo tem trazido empobrecimento e agravado as desigualdades sociais em todo o mundo, em especial nos países capitalistas periféricos dependentes. Mas o Brasil, em 2017, sob a batuta dos “invisíveis” interesses do mercado, decidiu fazer uma ampla reforma na sua moldura legal de relações trabalhistas para se adequar ao receituário mundial. E assim o fez pautado no discurso apológico da modernidade e da necessidade da criação de empregos. Entretanto, o ardil dessa propaganda artificiosa de que o afrouxamento das redes de proteção ao trabalho seria a redenção para a retomada do emprego, logo se desmascarou pelos indicadores progressivos da desocupação/subocupação, pelo crescimento dos desalentados, pelo aumento da informalidade desprotegida, enfim, pelos índices de empobrecimento da classe trabalhadora brasileira, apontados no período pós-reforma de 2017.² O lema de “menos direitos e mais empregos” transformou-se, em curtíssimo tempo, em “menos direitos e menos empregos”, ou seja, o príncipe virou sapo no conto de fadas que embalou o sono dos incautos. E não havia como ser diferente. “Proletários de todos os países, uni-vos!”, conclamaram Marx e Engels no Manifesto Comunista de 1848. Passados mais de 170 anos da edição desse documento político, que foi, certamente, um dos escritos mais importantes para a compreensão da sociedade industrial burguesa emergente, sobretudo pela clareza profética com que desvendou as contradições e os descaminhos do capitalismo e a necessidade de sua superação, o apelo final proferido para união da classe trabalhadora nunca esteve tão vivo e necessário como nos tempos atuais. Há em curso um projeto bem desenhado para erosão do sentido emancipador do trabalho, a partir da desconstrução da identidade coletiva da classe trabalhadora e da estrutura que a sustenta, com o objetivo de miná-la na sua capacidade de resistência. E isso vem sendo feito por uma imposição massificada de “novos valores” provenientes da cultura neoliberal, que criminalizam a ideologia de classe, enaltecem o individualismo, pulverizam os nichos de pertencimento e, assim, definham e deformam a luta social.  É preciso não cair nessas armadilhas diversionistas de culto aos valores hedonistas do capitalismo globalizado, que buscam seduzir o trabalhador pela ideologia da prosperidade, apresentada sob a forma de promessas ilusórias de sucesso pessoal, de dinheiro fácil, de possibilidades de consumo, de autorrealização profissional, mas que não passam de estratagemas para promover a intensificação e a exploração do trabalho humano. As transformações no mundo do trabalho não trouxeram para os trabalhadores nenhum ganho qualitativo, ao contrário, impuseram-lhes mais tempo de trabalho, mais insegurança, mais empobrecimento e ausência de futuro. Precarizaram as suas vidas e confiscaram o seu direito de sonhar. Ainda é tempo de lutar. Uni-vos!  Francisco Luciano de Azevedo Frota é Juiz do Trabalho – TRT 10ª Região. Membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD  Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 01 de outubro de 2020. 

Quando conciliar não é legal: o caso da conversão da dívida em trabalho forçado

O trabalho forçado já foi, em tempo pretérito, utilizado como forma de punição. A escravidão por dívida era vista como normal e admitida juridicamente. Tínhamos, porém, a sensação de haver superado essa lógica. Uma sensação, aliás, sustentada no fato de termos uma ordem constitucional que proíbe expressamente o trabalho forçado como pena, garante a liberdade, institui o direito fundamental à relação de emprego e tem na preservação da dignidade humana sua razão de existência, além de reconhecer a fundamentalidade dos direitos sociais. Estamos, porém, aprendendo com muita tristeza que, diante de nossa história, garantias formalmente fixadas na Constituição não bastam. É preciso real vontade de mudança. Afinal, somos um país construído sobre os corpos indígenas e negros sacrificados de modo institucional e continuado. É, então, indispensável acertar contas com o passado, superar nosso ranço escravista. Como diz Lélia Gonzalez em "Lugar de Negro", é preciso compreender que o processo de construção da nossa identidade como país está atravessado pelo racismo que se direciona a pessoas negras e pobres, para as quais o Estado não é o mesmo, a Justiça não é a mesma. Pessoas cujos corpos estão à disposição para serem desfrutados. As pessoas que são alvo do Direito Penal. que dependem da venda da força de trabalho para sobreviver e para as quais o Estado não se apresenta, senão sob a forma de repressão. A criação da Justiça do Trabalho, de certo modo, busca romper com essa tradição histórica. Serve para conferir lugar de fala à classe trabalhadora e fazer valer direitos sem os quais não é possível, em uma sociedade capitalista, sobreviver com dignidade. A Constituição, reconhecendo isso, descreve os direitos trabalhistas entre aqueles considerados fundamentais. E fixa regra estabelecendo o dever de assistência judiciária gratuita e integral a quem não tem condições de buscar justiça sem prejuízo da própria subsistência. Nada disso tem validade material se direitos trabalhistas não são satisfeitos; se permitimos a aprovação de (e aplicamos) lei que autoriza a condenação de pessoas pobres ao pagamento de custas ou honorários, punindo-as por exercer um direito fundamental. Sobre isso, aliás, resta o silêncio do STF, que, tendo já examinado e julgado demandas propostas recentemente, como a ADI 6363, cuja decisão considera lícita a redução de salário por acordo individual, até hoje não examinou a ADI 5766, que enfrenta justamente a questão da inconstitucionalidade da alteração inserida na CLT e que passa a autorizar cobrança de custas e honorários de trabalhador(a) pobre. Nossa dificuldade de honrar a Constituição se revela na negação sistemática do direito fundamental ao vínculo de emprego para categorias inteiras de pessoas que vendem sua força de trabalho em troca da remuneração com a qual sobrevivem. Pessoas que estão simplesmente alijadas dos direitos trabalhistas e, portanto, da possibilidade de viver com um mínimo de estabilidade e decência, em uma sociedade na qual o trabalho é a forma de obter os meios materiais de existência. Em tal contexto, é preciso refletir um pouco mais sobre o recente caso do senhor Alessandro Borges, compelido a realizar trabalho não pago em razão de "acordo" devidamente chancelado pelo Poder Judiciário trabalhista. Alessandro buscou a Justiça do Trabalho para pleitear a declaração de existência de vínculo de emprego. Segundo a sentença, ele trabalhou como segurança na empresa demandada de março de 2014 a janeiro de 2018, recebendo R$ 100 por dia trabalhado. Não fruiu férias, nem recebeu gratificação natalina. Não teve o FGTS depositado e, quando perdeu o trabalho, não teve acesso ao seguro-desemprego. O trabalho não foi negado pela empresa. A compreensão da Justiça do Trabalho foi de que Alessandro era autônomo. E, como tal, não tinha mesmo direito algum. A demanda foi julgada improcedente e Alessandro foi condenado a pagar R$ 9.738,62 de honorários aos advogados da empresa. No processo, há expressa manifestação do juízo acerca da miserabilidade do reclamante. Alessandro, que trabalhou quase quatro anos como segurança, recebendo R$ 100 por dia, é um miserável. Mesmo assim, seu processo foi incluído em pauta de conciliação, a pedido dos credores. Na audiência, sem que Alessandro estivesse presente, pois ele teve "problemas com o link de acesso", registrou-se que "as partes se conciliaram através da prestação de serviços comunitários pelo autor, em instituições assistenciais que serão indicadas pelo escritório exequente". Alessandro, que trabalha como segurança, que não teve vínculo de emprego reconhecido pela Justiça do Trabalho, que foi condenado a pagar honorários à advogada da empresa, terá de trabalhar de modo gratuito para pagar sua dívida. Pagará com seu corpo. Seu trabalho estará à disposição dos advogados da empresa. Eles escolheram quando e onde será prestado. Segundo a petição de "acordo": "Os trabalhos sociais serão realizados uma vez por semana pelo Alessandro, por no mínimo duas horas semanais às quintas-feiras, iniciando as atividades em 9 de julho de 2020 e terminando em 24 de setembro de 2020. Mensalmente, fica responsável de comprovar junto à Fass a realização das atividades junto à Fundação Beneficente Praia do Canto".   Enquanto prestar esses serviços, Alessandro não estará trabalhando como empregado ou "autônomo". Não estará, portanto, recebendo salário, com o qual poderia alimentar sua família ou pagar suas contas. E note-se: não se trata de trabalho voluntário, é importante que se perceba. O local e a frequência do trabalho estão impostos. No termo de acordo, há assinatura da advogada do reclamante, mas não a dele. Alessandro também não estava presente na audiência em que noticiada a solução dada ao processo. Há muitas questões envolvidas nessa "solução conciliada", noticiada como algo positivo. Há, sobretudo, o desvelamento de um sintoma social: a escravidão que nos habita [1https://www.conjur.com.br/2020-out-01/valdete-severo-quando-conciliar-nao-legal?fbclid=IwAR3yE0lzWTaR82tKrALVFmEuq97to-bWdvq3ZowEInVdlNwbyy-df1qSUdU#_ftn2" style="color: purple; text-decoration: underline;" title="" name="_ftnref2">[2https://www.conjur.com.br/2020-out-01/valdete-severo-quando-conciliar-nao-legal?fbclid=IwAR3yE0lzWTaR82tKrALVFmEuq97to-bWdvq3ZowEInVdlNwbyy-df1qSUdU#_ftn3" style="color: purple; text-decoration: underline;" title="" name="_ftnref3">[3], dos quais o Brasil é signatário, que estabelecem a quem teve um direito fundamental violado, a garantia da devida proteção jurídica mediante recurso simples, rápido e eficaz contra a violação sofrida, incompatível com a disciplina de cobrança de custas e honorários inserida na CLT pela Lei 13.467/2017. Ou seja, essa legislação não passa pelo filtro da constitucionalidade ou da convencionalidade. Diante disso, resta o sentimento de que, em algum momento, ao longo desses anos que nos separam do processo de abertura democrática e de construção de uma ordem constitucional comprometida com a solidariedade, a justiça e a dignidade, perdemos o rumo. Já não é mais suficiente negar efetividade aos direitos trabalhistas, alterar a legislação para precarizar as condições de trabalho, negar o direito de greve, promover a retórica da falsa escolha entre ter emprego ou ter direitos ou atribuir à classe trabalhadora a culpa por opções econômicas e políticas que concentram cada vez mais a riqueza nas mãos de poucos, multiplicando a miséria e a exclusão social. Há radicalidade na ruptura da ordem constitucional que aí se insinua, pois não há limite para um caminho como esse. Talvez daqui a algum tempo, a seguir por essa trilha, teremos acordos ou decisões determinando a doação de órgãos como forma de pagamento de dívida. O fato é que agora está instituída uma ameaça velada a quem praticar o ato de coragem que é ajuizar uma ação trabalhista, num país que ignora a garantia constitucional contra a despedida arbitrária e tem mais de 13 milhões de pessoas desempregadas. Há um imperativo de gozo perverso que se apresenta como realidade: um homem que vive do trabalho prestará serviços não remunerados em favor da entidade escolhida pelos advogados da empresa para a qual ele vendeu sua força de trabalho por quatro anos, sem reconhecimento de vínculo de emprego e, portanto, sem direitos fundamentais. Alessandro apenas ajuizou ação trabalhista. E, a manter-se tal decisão, será compelido a pagar por isso, com trabalho forçado imposto sob uma falsa áurea de consensualidade. -  [1https://www.jorgesoutomaior.com/blog/a-escravidao-que-nos-habita">https://www.jorgesoutomaior.com/blog/a-escravidao-que-nos-habita. [2http://www.tst.jus.br/documents/18640430/ea7b6ee4-c781-081e-1ed3-5a071aeb061f">http://www.tst.jus.br/documents/18640430/ea7b6ee4-c781-081e-1ed3-5a071aeb061f. [3] A Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturas e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.  * Valdete Souto Severo - é juíza do Trabalho do TRT-4, presidenta da AJD (Associação Juízes para a Democracia), doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/RS) e pós-doutoranda do programa de Ciências Políticas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS). Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 01 de outubro de 2020. 

O Poder Judiciário e a análise de áreas de risco

A Lei Federal nº 12.983/14 trouxe relevantes alterações na Lei Federal nº 12.340/2010, a qual trata da prevenção de desastres em áreas de risco. Dentre as inovações há o importante dispositivo que restringe a remoção de moradores e edificações, a qual deve ser usada como último recurso, a ser implementado somente após a realização de vistoria e elaboração de laudo comprovando o risco da ocupação para a integridade física dos moradores ou de terceiros. No entanto, apesar de tal norma estar em vigor a mais de seis anos, sua aplicação tem sido bastante tímida. Em alguns casos, os próprios entes públicos, notadamente os Ministérios Públicos dos Estados e os municípios, costumam ajuizar ações pedindo a remoção pura e simples, isso quando a medida não é implementada pela via administrativa, muitas vezes sem qualquer procedimento com contraditório ou até mesmo aviso aos moradores. Em outros casos, mesmo quando na ação há pedido subsidiário, pertinente a medidas de redução de riscos, o Judiciário tem optado pelo remédio mais drástico da desocupação, atuando muitas vezes como um médico açodado, que amputa a perna do paciente ao mínimo sinal de infecção. Tais remoções acabam por gerar impactos sociais terríveis, com pessoas desalojadas que muitas vezes se veem na perversa situação de sair de uma área de risco para outra, por vezes de nível de risco ainda mais elevado, gerando um fluxo migratório que precariza ainda mais a condição de vulnerabilidade das famílias afetadas, impondo gastos e danos psíquicos a quem já não tem nada ou quase nada. Em 2019, por iniciativa do Lab-Cidade da Faculdade de Habitação e Urbanismo da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Habitação e Urbanismo da Universidade Federal do ABC, foi realizada uma reunião junto à Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado de São Paulo, que aliás tem mostrado uma postura sensível e arrojada no âmbito de sua atribuição, da qual também participaram alguns magistrados do Fórum da Fazenda Pública. Em tal evento, os representantes das entidades acadêmicas externaram toda essa problemática, notadamente quanto ao modo precipitado como as remoções vinham ocorrendo, notadamente no âmbito da Grande São Paulo e da ausência ou insuficiência de respaldo social no pós-remoção. Na sequência a questão foi colocada no âmbito da Cajufa — Centro de Apoio aos Juízes da Fazenda Pública —, tendo então sido determinada a constituição de comissão de peritos para a feitura de documento com diretrizes de análise de áreas de risco, que pudesse servir de guia na atividade jurisdicional. Apesar do estudo ser centrado em aspectos técnicos de engenharia e geologia, ele não perde a dimensão social e a base normativa, notadamente quanto às medidas alternativas de mitigação de risco, as quais, mais que nunca, em vista da crise econômica e sanitária da Covid-19, se mostram prementes. Mais que fornecer parâmetros básicos para as deliberações jurisdicionais, o estudo também abre a oportunidade para dar luz a um gravíssimo problema, mas que é de pouca visibilidade no âmbito da administração pública e do sistema de Justiça. Afinal, os gestores públicos, notadamente no âmbito das administrações municipais, seja para evitar o ônus político, seja para evitar a responsabilidade da Administração Pública, são estruturalmente estimulados para evitar tragédias nas áreas de risco, mas, inversamente, a mesma preocupação não costuma ocorrer para com a outra tragédia decorrente da remoção, ou seja, a tragédia daqueles que ficam sem moradia. Talvez a opção da simples troca de uma tragédia pela outra decorra da pulverização do nexo causal entre os danos pós-remoção e a omissão do poder público, o qual raramente é responsabilizado em tais casos. Em outras palavras, muitas vezes a tônica é de que a pessoa não pode morrer num deslizamento, mas não há problema caso ela morra na rua, seja de fome, frio, violência urbana ou Covid-19. Ainda nesse ponto, cumpre destacar que, não raro, a questão das ocupações em áreas de risco é posta de modo preconceituoso e discriminatório, estigmatizando moradores que detêm justo título ou que simplesmente passaram a exercer seu direito constitucional de moradia em locais destituídos de função social. Outro aspecto do problema concerne à questão processual. As ações não devem ser tratadas como simples "ações de desocupação", mas sim como ações de "manejo em áreas de risco", ampliando o objeto da simples remoção, para incluir outras medidas, notadamente a da mitigação dos riscos, a qual deve ser tida como preferencial. Além disso, o processo de "manejo em áreas de risco" não pode ser tratado como uma simples ação contenciosa. O risco é dinâmico e assim pode mudar dia a dia, o que determina, com o recebimento da inicial, a designação de perícia preliminar com máxima urgência, a qual deverá ser atualizada constantemente ao longo do processo, até a fase de instrução, de modo a possibilitar medidas pontuais. Não é possível imaginar, em tais casos, que se permita um fluxo normal processual, com sentença, recurso/reexame necessário, para, após meses ou anos, haver uma sentença transitada em julgado. Tais casos devem ser tratados dentro do espírito de jurisdição voluntária, em que há convergência de interesses, buscando soluções rápidas e consensuais. Trata-se de um processo artesanal, ao qual o Judiciário deve destinar cuidadosa e terna atenção, não podendo ser tratado na base do "modelão", do tipo linha de montagem. Cabem aos peritos o balizamento técnico, de engenharia e geológico, no entanto, incumbe ao Juízo proceder à amarração transdisciplinar, não perdendo a dimensão humana e social, com responsabilidade e sensibilidade. É muito triste pensar que pessoas morem em barracos, sendo mais triste ainda imaginar que muitos desses barracos foram construídos em áreas de risco. No entanto, é dever máximo do Judiciário lembrar que, muitas vezes, onde de fora se vê um barraco, para quem lá mora se trata de um lar, como a saudosa maloca de Adoniran.  *Antonio Augusto Galvão de França, é juiz de Direito e coordenador do Centro de Apoio aos Juízes do Fórum da Fazenda Pública (Cajufa).  Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 28 de setembro de 2020. 

Além do direito trabalhista: A constitucionalidade em disputa

“Quem quer marchar para o socialismo por um caminho que não seja o da democracia política chegará inevitavelmente a conclusões absurdas e reacionárias, tanto do ponto de vista econômico quanto político.” (Lenin)[1]. A supressão de direitos e a ameaça que paira sob as democracias aguçam as perplexidades contemporâneas. O sistema econômico, calcado na ideologia da nova ordem mundial, com a fleuma da modernidade, manobra para fazer o trabalho retornar à condição de não direito. A precarização no mundo é mais grave ainda em países periféricos, condenados a servir de baias de mão de obra barata. Os freios trazidos pelo século XX, impostos pela Guerra Fria ante a intimidação da proposta socialista de um mundo coletivizado, extraíram do capitalismo uma sofisticada e importante arquitetura jurídica que o neoliberalismo hegemônico no século XXI quer afastar. A morfologia de retrocesso e o abandono do welfare state desfazem avanços civilizatórios e tratam como obstáculo a constitucionalidade moderna. De 2003 a 2016, o Brasil recusou essa prescrição, adotando ações fundamentais e conjugadas de combate à desigualdade. Fortaleceu o setor público da economia, enfrentou os desequilíbrios regionais, investiu em pesquisa e afirmou os elementos de uma política externa soberana, conquistando o respeito das nações do nosso entorno Sul Americano e do Terceiro Mundo em geral. Contudo, após quase 30 anos de vigência da Constituição, entre os quais 12 anos foram de governos progressistas, que marcaram a saída do país do mapa da fome, não foi possível conter o golpe[2] protagonizado pelo Poder Judiciário, que afastou Dilma Rousseff (PT) da presidência e Luís Inácio Lula da Silva (PT) das eleições de 2018. A artimanha foi admitida[3] por um dos mais expressivos representantes da direita brasileira, Aloísio Nunes Ferreira. Segundo o ministro das Relações Exteriores do governo de Michel Temer, “houve manipulação política dos procuradores da Lava Jato e do então Juiz Sergio Moro”[4]. E que agiam “imbuídos de um projeto político, que vai além do processo judicial”.  O ano de 2020 tem revelado as implicações internacionais da trama, com a presença do FBI[5], urdida a pretexto de investigar casos de corrupção na América Latina, obtendo dados de empresas brasileiras, tais como Odebrecht e Petrobras – notórias geradoras de empregos e concorrentes, no mercado internacional, das similares estadunidenses. A nefasta conjuntura brasileira tem flertado com o fascismo na era Bolsonaro e as ameaças de novo golpe sobre as instituições são realidade no Direito do Trabalho. Dilma Rousseff foi deposta da Presidência da República em 31 de agosto de 2016 e já no dia 23 de dezembro do mesmo ano, foi apresentado, ao Congresso Nacional, o Projeto de Lei (PL) nº 6.787/16, seguido da proposta de reformulação na Lei do Trabalho Temporário, para alterar sete artigos da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). A tramitação do PL durou dois meses e três dias (de 09/02 até 12/04 de 2017). As nove páginas iniciais, recheadas de desejos empresariais, atingiram 132 páginas. A alteração incidiu sobre mais de duzentos dispositivos da CLT, com a aprovação por 296 votos contra 177, na Câmara dos Deputados, e 50 a 26, no Senado. A sanção veio em julho de 2017 pelo vice, e substituto de Dilma, Michel Temer, cuja marca é o maior índice de reprovação na história dos Presidentes da República. Assim nasceu a Reforma Trabalhista (lei nº 13.467/17), ponto de consenso entre conservadores e neoliberais, vigente a partir de 11 de novembro de 2017, com trâmite de estranha velocidade a revelar a ausência da participação dos maiores interessados: os trabalhadores. Rito apressado e violador da Convenção 154 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, que exige a consulta prévia às organizações sindicais. A lei justificada pela pretensa capacidade de gerar empregos, na verdade, reflete a desregulação, o retorno à premissa ultrapassada da “liberdade negocial do empregado”, sem a proteção do Estado, e o bloqueio ao acesso à justiça, negadas a gratuidade e a participação sindical, mesmo na hipótese de renúncia. A crise sanitária mundial da Covid-19 desnudou os efeitos caóticos dessa desregulação trabalhista que, por si, já era responsável pela vulnerabilidade das relações laborais. O “empreendedor”, sem a rede estatal de proteção, como “gestor” da sua atividade, perdeu as condições do isolamento, essenciais para a contenção do vírus. A desigualdade social – flagrada no trato do neoliberalismo com os trabalhadores – faz da junção: modelo econômico/pandemia uma tragédia humanitária. Assim, na data em que escrevo este texto, o Brasil conta, infelizmente, 130 mil mortos. Na prática, a informalidade expressa em contratos atípicos precarizou as condições de trabalho. E sob o prisma da doutrina, retirou a especificidade da Disciplina, Direito do Trabalho, ao ignorar o seu objeto de estudo: a relação de emprego. Magda Biavaschi[6], citando Krotoschin, evoca a frase inscrita na Constituição da OIT: “o Trabalho não é mercadoria” – diretriz definitiva para traçar a autonomia do  Direito do Trabalho em face do Direito Civil. O Brasil, na mesma linha, consagra o Direito do Trabalho na sua especificidade ao incluí-lo na condição de direito social, nos termos do Capítulo II, art. 6º da Constituição, e acrescenta, no Caput do art. 7º, a vedação do retrocesso social, confirmando as orientações do Pacto São José da Costa Rica de 1969 (cuja ratificação formal da Convenção, pelo país, ocorreu em 1992). A nossa Carta faz mais: atesta a ordem econômica fundada na valorização do trabalho, art. 170; e declara a ordem social com base no primado do Trabalho, art. 193. A Reforma Trabalhista, de inspiração antirrepublicana, violou as regras constitucionais – normas de ordem pública que o Estado deve velar e proteger –, desprezando o arcabouço jurídico de inserção social, presente no Direito do Trabalho. O panorama acima indica a necessidade da preservação dos Princípios Constitucionais (art. 1.º), que não podem sofrer alterações aleatórias. O valor social do trabalho ocupa o mesmo patamar dos demais fundamentos da Magna Carta: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, livre iniciativa e pluralismo político. Portanto, não há violação aos princípios fundamentais que não arraste consigo a democracia e os pilares do Projeto de Nação. Exigir o respeito aos limites constitucionais é, apenas, o mínimo do que se deseja no enfrentamento ao neoliberalismo, sob o risco de o “Estado pós-democrático de direito”[7], percebido nas violações aos pactos sociais, ganhar vida longa. O cumprimento do regramento jurídico é fundamental e, não à toa, “Uma defesa das regras do jogo” consta do subtítulo do livro de Norberto Bobbio: “O futuro da democracia”[8]. Tal proposta implica a acomodação no Estado Liberal? Em absoluto. A adoção dos limites legais tem o propósito de garantir a efetividade das autonomias judicial e legislativa, que têm sido utilizadas como um “cheque em branco”, dos quais são exemplos: a criminalização da política e o oportunismo das maiorias transitórias do legislativo, haja vista o desmonte da CLT. O Supremo Tribunal Federal tem retardado julgamentos essenciais e, com tibieza, tecido elásticas interpretações das normas constitucionais. A conduta gera dúvida acerca do controle de constitucionalidade que queremos, tamanhos os riscos às harmonias e independência dos poderes, cuja autonomia encontra legitimação quando fundamentada na legalidade, observados os limites constitucionais. Ao término desse texto, a tecla repetida em favor dos valores republicanos deixa a sensação de que venho perdendo para a originalidade. Acredito merecer um desconto, dada a importância do que defendo, quando até o próprio Marx elogiou os avanços da formação social capitalista em relação ao atraso feudal que a antecedeu. Autoriza-me a defesa de institutos da democracia liberal em face do fascismo ideado por Bolsonaro?  *Raquel Rodrigues Braga é Juíza do Trabalho, TRT/RJ, aposentada, com MBA em Poder Judiciário pela FGV e Especialista Crítica em Direitos Humanos pela Universidade Pablo de Olavide Sevilha-ES, integrante da AJD e ABJD.  Artigo publicado originalmente no site   Justificando no dia 17 de setembro de 2020. 

Marx, a mais-valia e o mito da subordinação 4710

Os juristas têm se esforçado em demonstrar tecnicamente a ocorrência da relação de emprego entre trabalhadores e empresas proprietárias de plataformas de serviços (como Uber, iFood etc.).  Esse esforço de hermenêutica jurídica é elogiável, mas algo mais além desse modelo deve ser objeto de reflexão: a de categorias como mercadoria, trabalho assalariado e mais-valia em Karl Marx, e a revisão crítica do conceito de relação de emprego, forjado desde tempos imemoriais para definir o trabalho protegido pelo sistema jurídico.  Meios de produção digitais e plataformas digitais Na velha e boa língua de Camões, o termo plataforma sugere uma área plana, elevada em relação ao nível do solo. No tempo de Machado, designava o espaço erguido ao lado da linha férrea, nas ferroviárias e estações de metrô, destinadas ao embarque e desembarque de passageiros e mercadorias. No discurso contemporâneo, as plataformas tornaram-se ambientes informacionais com características semelhantes. São estruturas de interface de mercadorias e pessoas que, ademais de interação algorítmica, também se constituem como parte integrante dos meios de produção de mercadorias, com predominância para aquelas que se corporificam enquanto serviços. Essas infraestruturas digitais “moldam interações personalizadas entre usuários finais e complementadores, organizadas por meio de coleta sistemática, processamento algorítmico, monetização e circulação de dados” (na definição de Thomas Poell, David B Nieborg e José Van Dijck, em Plataformização). Contrato de emprego e subordinação Dizer que a subordinação é elemento da relação de emprego é falsificação ideológica do real. Ela não é elemento da relação substantiva ou ontologicamente considerada e sim mera característica externa. Via de regra, a subordinação é muito evidente e adiposa, mas em diversos casos mostra-se rarefeita ou quase cognitivamente inapreensível.  Dizer que a subordinação é elemento da relação de emprego é o mesmo que imaginar que a água é em si mesma água por ser um líquido incolor, sem cheiro ou sabor (como aprendemos na escola, e nem isso parece correto, pois as propriedades da água podem fazê-la doce ou salgada, alcalina, ácida). Na realidade, evidentemente, a água é uma substância química cujas moléculas são constituídas por dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio (H2O). Esses são os elementos da água, substantiva ou ontologicamente considerada. O que você vê são suas características externas, não o que ela materialmente é. Com contrato de emprego ocorre algo semelhante. Você vê externamente certas características típicas (pessoalidade, trabalho não eventual, onerosidade e subordinação), mas isso não é a relação de emprego materialmente considerada. Nesse sentido, a subordinação como elemento da relação de trabalho a ser tutelada pelo sistema legal civilizatório é apenas um mito. Marx, mercadoria e mais-valia  Na economia capitalista, os bens “dotados” de valor são produzidos como mercadorias cujo atributo essencial é satisfazer necessidades humanas, “do estômago ou da fantasia”, como disse Marx (O Capital). Nesse sentido, a mercadoria tem um valor de uso. Mas ela incorpora também um valor de troca, no plano das relações jurídicas: um equivalente quantitativo abstrato, materializado na relação de câmbio. Na aparência fetichizada, esse valor de troca aparece como qualidade fantasmagórica da própria mercadoria, ocultando sua relação substantiva verdadeira, que consiste no tempo de trabalho médio socialmente necessário à sua produção. Noutras palavras: bens constituídos enquanto mercadorias têm valor de troca por “encarnarem” trabalho humano socialmente necessário à sua produção. Tal como a subordinação, fetichizada no direito do trabalho, a assombração parece ser real. O valor mostra-se como qualidade ínsita à mercadoria, mas isso é apenas uma miragem. Nas relações capitalistas de produção, o assalariamento do trabalho é o mecanismo pelo qual a mais-valia é extraída. A relação de emprego consubstancia-se enquanto contrato de compra e venda de força de trabalho. As relações jurídicas então fazem o truque ideológico destinado a ocultar a expropriação da força de trabalho: o trabalhador produz a mercadoria, mas fica com o salário, que representa apenas uma parte do valor-trabalho incorporado à mercadoria. Mais-valia e subordinação algorítmica O que deveria interessar ao direito do trabalho, enquanto sistema de “proteção” jurídica, que crava uma cunha civilizatória — e dialeticamente também domesticadora — nessa relação, é a apropriação da mais-valia, por diferentes paradigmas jurídicos, e não exatamente se ocupar sobre se é possível ou não identificar a subordinação, e menos ainda toma-la enquanto elemento constitutivo do contrato objeto da tutela legal. Nas plataformas de serviços, as mais comuns, há produção de mercadorias. O serviço de transporte de pessoas ou coisas, por exemplo, é a mercadoria produzida pelos trabalhadores. Curiosamente, nessas relações, parte dos meios de produção necessários à produção da mercadoria pertence ao próprio operário (o automóvel, a bicicleta ou a moto). Mas outra parte, essencial para ativar o processo de trabalho, pertence ao capitalista: a plataforma digital. Nela atuam também outros trabalhadores, desde sua arquitetura até a gestão, e ela em si mesma é trabalho morto, que é o trabalho acumulado e objetivado para o incremento do capital. No caso, aqui, corporificado nos meios de produção tecnológicos, abstratos e impalpáveis, que incorporam o conhecimento humano historicamente produzido desde a invenção roda até a construção da plataforma digital, passando naturalmente pela maquininha criada por Alan Turing e outros cientistas, o computador. Evidentemente, a subordinação está presente na relação jurídica entre o trabalhador e o capital, dono da plataforma. Já me esforcei muito para tentar compreender sistematicamente a subordinação (coloquei isso no Poder e sujeição, um livrinho de anos atrás). Nele procurei mostrar subordinação — na realidade, o poder do capital e a sujeição do trabalho — como um fenômeno dinâmico, envolvendo (a) fontes primárias ou endógenas e (b) fontes heteronômicas ou secundárias. Não tenho como voltar a tudo isso aqui. Apenas sublinharia a conclusão desses estudos, no sentido de que a subordinação em certas condições sequer pode ser percebida, conquanto esteja sempre presente como resultado da apropriação da capacidade de trabalho do operário. O importante, não obstante, não é se ela aparece e pode ser captada ou não pela reflexão do jurista, mas se a expropriação do trabalho ocorre efetivamente. Panoptismo digital e algoritmocracia Nas plataformas digitais, o resultado final do processo de trabalho é uma mercadoria que não pertence aos trabalhadores que a produzem. O capital, proprietário das plataformas, apropria-se dela e só uma parte desse produto “volta” para o seu produtor, sob a forma de trabalho assalariado. Nas plataformas digitais, sem embargo, ocorre um exercício de prestidigitação a mais: o assalariamento é ocultado sob a aparência do pagamento do preço da mercadoria pelo próprio consumidor, o trabalhador surge como cliente da plataforma digital e a subordinação é obliterada sob a algoritmocracia. Essa forma de gestão, o algoritmo, surge como um novo paradigma de controle do trabalho capaz de (a) rastrear a atuação e avaliar permanentemente a performance do trabalhador, aferindo instantaneamente o resultado do seu trabalho, (b) implementar decisões  automatizadas, inclusive acerca da punições ao prestador de serviços ou mesmo sua exclusão se ele não se “alinha” às políticas da plataforma ou não alcança escore de avaliação positiva  e (c) mostrar-se como um espectro dotado de ubiquidade, que ronda o trabalho onisciente e continuamente, sem que o trabalhador seja capaz de compreender, interferir e defender-se do acervo de normas algorítmicas (Mareike Möhlmann  e Lior Zalmanson, Hands on the wheel: Navigating algorithmic management and Uber drivers’ autonomy). A incitação ao trabalho é feita não apenas pelo direito penal privado das plataformas digitais, capaz de impor sanções sumárias e impiedosas, inclusive com a pena capital da desativação da conta, como também por sanções premiais para atingimento de objetivos, como o tempo semanal ou diário dedicado ao trabalho. O sistema de vigilância configura uma espécie de panoptismo algorítmico, capaz de deixar Jeremy Bentham de boca aberta.  Chegamos até aqui, enfim, para concluir ser a exploração na força de trabalho pelas plataformas digitais mera reprodução hightech, cuspida e escarrada, do velho contrato de emprego assalariado de 200 anos atrás. Nela não importa identificar a subordinação jurídica para concluir pela existência de vínculo de emprego entre os trabalhadores e plataformas digitais. O mesmo deve ocorrer com outros diferentes paradigmas de exploração e apropriação da força de trabalho, que já se desenham e devem surgir com mais frequência num futuro próximo. Neles, é cada vez mais previsível a obnubilação e a opacificação das características tradicionais que o direito do trabalho elegeu como elementos da relação de emprego. Uma maior abrangência do sistema de proteção do direito do trabalho exigirá das classes trabalhadoras fugir desses velhos conceitos. Não obstante, no trabalho por meio de plataformas digitais, a sujeição etérea e abstrata evidencia-se com eloquência pela algoritmocracia e pela chibata do capataz panóptico-digital. É talvez mais intensa do que a subordinação tradicional. Por outro lado, a resposta tradicional do direito do trabalho nesses tempos de retrocesso civilizatório, conquanto importante, levará, no caso das plataformas digitais, quando muito, a uma exploração da mais-valia limitada pelo sistema, que ainda será a exploração do homem pelo homem, este agora disfarçado de algoritmo. Essa proteção não é pouca coisa, mas talvez se possa pensar o problema na perspectiva de experiências de ruptura com o capitalismo e não de sua reprodução, como a do MST, e imaginar os coletivos de trabalhadores plataformizados tomando os meios de produção das suas mercadorias, mediante a constituição de suas próprias plataformas de solidariedade, quiçá, inicialmente, sob a forma de cooperativas insurgentes (como propõe Trevor Scholz, em Cooperativismo de plataforma, e vários outros estudos). Já há uma moçada pensando nesse pulo do gato até no Brasil, mas essa é outra história, e fica para um outro artigo.  * Reginaldo Melhado é membro da Associação Juízes para a Democracia. Doutor em Teoria Geral e Filosofia do Direito pela Universidade de Barcelona (com revalidação pela USP). Professor da UEL. Juiz titular da 6ª Vara do Trabalho de Londrina.   Artigo publicado originalmente no site  Justificando no dia 10 de setembro de 2020. 

Magistratura, racismo e ações ações afirmativas

Correção de distorções é um dever ético e cívico A rede Magazine Luiza anunciou no mês passado a abertura de inscrições para seu programa de trainees com a indicação de que, desta feita, só aceitaria candidatos negros. Algo de uma justiça óbvia para quem se dedica a conhecer os números e a história da negritude tupiniquim. Mas foi o quanto bastou para, nestes tempos estranhos de extremismos e intolerância, explodir a mais surrealista polêmica em todas as agências noticiosas do país. Sob as luzes da ribalta, uma vez mais, o debate sobre o racismo estrutural e as necessárias políticas públicas e corporativas de inclusão social. Não há qualquer dúvida razoável, sustentável em qualquer espaço (acadêmico, político ou judicial), quanto ao fato de que o Brasil é um dos países mais desiguais e injustos do planeta. Também é indene de dúvidas o fato de que, nos quase 200 anos de Brasil, tais iniquidades vitimaram especialmente a população negra e "parda" (com o perdão da expressão, há décadas consagrada nas estatísticas do IBGE). Basta lembrar que a escravidão no Brasil foi abolida em 1888, muito menos pela "indulgência" de uma princesa a que pessoalmente teria poucas condições de confrontar o establishment e muito mais por uma confluência de fatores bem menos românticos: as pressões diplomáticas da Inglaterra, os ruidosos movimentos abolicionistas e as crescentes reações da população oprimida. A abolição, porém, foi antes uma capitulação do que uma redenção. Foi necessária outra metade de século para que a legislação começasse a infletir, ao menos simbolicamente, o recorte cultural racista da sociedade brasileira: a Lei Afonso Arinos, de 1951, convolou o preconceito de raça em contravenção penal (ou seja, um "crime anão", na célebre fórmula de Nelson Hungria). Outro meio século se passou para que finalmente, em 1989, a Lei Alberto de Oliveira Lei Caó tipificasse o racismo como crime (lei nº 7.716, artigos 3º a 20). Cem anos depois da "abolição", negar o atendimento em uma loja ou impedir o acesso a transportes públicos por discriminação ou preconceito de raça passou a ser crime, punido com dois a cinco anos de prisão (artigos 5º e 12). Essa "presteza" legislativa sugere uma sociedade que repulsava o preconceito racial? Negar que os negros foram historicamente discriminados ou compará-los acriticamente a outros grupos não alijados estruturalmente é nada menos que uma bofetada no mundo da vida. A magistratura nacional bem sabe disso. Não por outra razão, em 2015, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) reservou 20% das vagas em concursos públicos para juízes a candidatos negros. Não por outro motivo, em 2017, o STF declarou constitucional a lei 12.990/2014, que reservou aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal. Não por outra causa, enfim, a magistratura do Trabalho aprovou, em plenária de 2004, tese segundo a qual "deve constituir luta da magistratura o combate a todas as formas de discriminação nas relações de trabalho, (...) discutindo e apoiando políticas públicas votadas para a (re)inserção desses trabalhadores ao mundo do trabalho", notadamente em favor de negros, mulheres e idosos. E criar um programa de trainees restrito a negros é praticar "racismo reverso" contra os brancos? Poderíamos responder a isto com outra pergunta: o quão comum terá sido, nos últimos cem anos, negar-se a um branco, por ser branco, o acesso a comércios ou transportes públicos? O racismo estrutural deita raízes nas profundezas da cultura escravista nacional. É um fenômeno social de aspersão coletiva, a que não se podem comparar atos pessoais e isolados de intolerância, ainda se existentes. E a correção histórica dessas distorções é um dever ético e cívico do poder público, das empresas e dos concidadãos. Mas sem sofismas, por favor. Não se abrem guarda-chuvas por segundos de orvalho.   Guilherme Feliciano* é Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté (SP), é professor da Faculdade de Direito da USP e ex-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) no biênio 2017-19 Germano Siqueira** Juiz titular da 3ª Vara do Trabalho de Fortaleza, é ex-presidente da Anamatra no biênio 2015-17

  • Início
  • Anterior
  • 1
  • 2
  • 3
  • 4
  • 5
  • 6
  • 7
  • 8
  • 9
  • 10
  • Próximo
  • Fim
Página 5 de 20

logo horizontal branco

Reunir institucionalmente magistrados comprometidos com o resgate da cidadania do juiz, por meio de uma participação transformadora na sociedade.

Rua Maria Paula, 36 - 11º andar, Conj.B
Bela Vista, São Paulo-SP, CEP: 01219-904
Tel.: (11) 3242-8018 / Fax.: (11) 3105-3611
juizes@ajd.org.br

 

varidelAssessoria de Imprensa:
Varidel Comunicação

varidel@varidelcomunicacao.com

Aplicativo AJD

O aplicativo da AJD está disponível nas lojas para Android e IOs. Clique abaixo nos links e instale:

google

apple

Juízes para a Democracia © 2019 Todos os direitos reservados.

logo

  • Início
  • Sobre nós
    • Quem somos
    • Estatuto da AJD
    • Aplicativo AJD
  • Notícias
  • Podcasts
  • Documentos
    • Atividades do Conselho
    • Cidadania
    • Voto e Cidadania
  • Decisões
    • Eleitoral
    • Penal
    • Trabalho
    • Administrativo
    • Cível
    • Consumidor
    • COVID-19
    • Povos indígenas e comunidades tradicionais
    • Juros e correção monetária na JT
  • Artigos
  • Publicações
    • Jornal
    • Revista
  • Eventos