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Punição como (falsa) solução para nossos problemas sociais: algumas reflexões sobre a (im)possibilidade de justa causa por recusa à vacinação

A justa causa, disciplinada nos artigos 482 e 483 da CLT supostamente permite que ambas as partes ponham fim a uma relação jurídica de emprego, quando a outra pratica ato grave que impossibilita sua continuidade. Já há aí uma mentira, que vem sendo repetida há quase um século desde a criação dessas regras jurídicas. É verdade que o empregador pode despedir sob alegação de justa causa, sem pagar a quem vive do trabalho as parcas verbas previstas como forma de viabilizar a subsistência em situação de desemprego. Quem trabalha e falha em algum dos deveres de conduta descritos no artigo 482 não perde apenas o emprego. Perde o direito de acesso ao seguro-desemprego e aos valores que lhe pertencem e foram depositados junto ao FGTS; perde o tempo e o valor que corresponde ao período de prévio aviso. Pela literalidade da CLT, perde inclusive o direito ao pagamento de férias proporcionais, algo já superado pela incorporação da Convenção 132 da OIT ao nosso ordenamento, mas que precisa ser relembrado para que a lógica da punição fique clara: há múltiplas perdas para quem, dependendo do trabalho para sobreviver, cometa uma justa causa. Não há, porém, punição alguma para o empregador que pratica um dos atos descrito no artigo 483 da CLT. Na verdade, o empregador que cometer uma das condutas previstas nesse dispositivo ganha o tempo do processo, a possibilidade de convencer o juiz de que nada de grave ocorreu e o benefício de, comprovada a justa causa, efetuar o pagamento das verbas resilitórias apenas ao final do procedimento judicial. Relembro isso para situar a questão: a disciplina da justa causa é avessa à noção de proteção que orienta e justifica a existência do Direito do Trabalho. É assimétrica, favorecendo claramente o empregador. É punitiva, para uma relação jurídica que insistimos em tratar como contratual. Não tem correspondência, rompendo com o sinalagma que – diz a doutrina –informa as relações contratuais, mesmo da perspectiva civilista. Não resiste ao exame constitucional, pois há um direito fundamental à relação de emprego (art. 7º, inciso I). Há, ainda, a proibição da discriminação. O artigo 5º chega a estabelecer que “XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”, dentre os quais (o artigo 7º não deixa dúvida) está o direito à relação de emprego. A Constituição ainda garante, como direito fundamental, que “LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Mas na relação de emprego, quando se trata de justa causa para a despedida, não há defesa nem contraditório. Tudo isso deveria estar fazendo com que refletíssemos seriamente a necessidade de superação da possibilidade de despedida por justa causa, pois três décadas já nos separam da promulgação de um texto constitucional inspirado por valores claramente avessos a essa ânsia punitivista. Vivemos em uma sociedade na qual trabalhar por conta alheia é a condição para a sobrevivência física. Nesse cenário, perder o emprego pode significar ser condenado à penúria, ao endividamento e, no limite, à morte. Pois é justamente a morte que nos assombra com ainda mais força nesse um ano de pandemia. Desde fevereiro de 2020 até agora são mais de 233 mil pessoas mortas e milhões de pessoas contaminadas em nosso país, muitas das quais convivem com sequelas que limitam e dificultam a fruição da vida. A vacina não traz a cura, mas a promessa de que conseguiremos administrar a situação caótica em que, no caso específico do Brasil também por escolhas políticas, estamos imersos. E eis que surge então o debate sobre a obrigatoriedade de vacinar-se e as consequências de uma eventual recusa. Um tema fundamental, pois estamos diante de uma ameaça concreta à continuidade da vida humana. O vírus já apresentou mutações e nada nos garante que, mesmo imunizados, não teremos de lidar com efeitos ainda mais nocivos e fatais sobre o corpo humano, caso as novas cepas se disseminem com a mesma força e fúria daquela que originalmente causa a COVID19. Um tema que nos convoca a repensar as diferenças e as imbricações entre o âmbito público e o privado. E mais, que nos confronta com toda a incoerência de nossos discursos libertários. A suposta liberdade individual de não se vacinar poderá implicar o fracasso coletivo na luta contra essa terrível doença. Vimos como a existência da vacina gerou, inicialmente, o efeito tão bem trabalhado por Saramago, em várias de suas obras: a bestialização das condutas humanas, desde uma perspectiva desesperada de salvar-se do terror da morte por asfixia. Às notícias de pessoas que “furaram a fila” da vacinação, somaram-se informes sobre países ricos e sua pretensão de obter preferência na aquisição das doses e sobre entidades e instituições que publicamente defenderam argumentos que traduzidos claramente significam uma convicção egoísta de que suas vidas valem mais do que as das outras pessoas. De outro lado, a resistência em vacinar-se. Uma resistência amplamente motivada pela verdadeira campanha pública feita por quem ocupa a chefia do poder executivo. São inúmeras as suas manifestações referindo que não irá vacinar-se ou atribuindo à vacina consequências fantasiosas ao organismo humano. Não espanta, portanto, que haja resistência, a qual deve ser inclusive compreendida da perspectiva do pânico social que se instaurou com a necessidade de isolamento, com a perda de tantas pessoas próximas, com o desconhecimento sobre os efeitos reais da doença. Compreendida da perspectiva social, a resistência em vacinar-se deve ser enfrentada também sob esse prisma, percebendo, inclusive, a semelhança de postura entre aqueles que querem o privilégio de vacinar-se primeiro e aqueles que não querem se vacinar. Tais atitudes têm em comum o fato de refletirem uma postura egoísta e equivocada. “Furar a fila” prejudicará toda a campanha de imunização, que é necessariamente pública e social, sob pena de ineficácia. Por consequência, prejudicará também quem, acreditando-se melhor que os outros, vacinou-se antes mesmo da imunização das pessoas dos grupos de risco. Negar-se a tomar a vacina é, igualmente, colocar em risco a sua vida e a vida de toda a coletividade, sob uma perspectiva de (falsa) segurança que, caso a doença se torne incontrolável, implicará a morte física também desses resistentes. O corpo não é um espaço privado; é um território político, pois somos antes de tudo seres sociais, como tão bem refere Marx em seus Manuscritos e como nos ensinam as autoras que tratam do feminismo negro na América Latina. Dessa perspectiva, trabalhar pela vacinação de todas as pessoas é um desafio ético-político, ao mesmo tempo em que se qualifica como uma urgência sanitária. Fato é que tais condutas não serão resolvidas pelo Direito, o que não significa que deixe de haver matéria jurídica a ser discutida nesse caso. Qualquer solução dada pelo Direito, para o enfrentamento de tais condutas, será paliativa, insuficiente. As melhores sugestões já estão colocadas por Jorge Luiz Souto Maior em seu texto “Trabalhador que se recusar a vacinar não pode ser dispensado por justa causa”. Como ele tão bem aponta, é possível adotar condutas que evitem a despedida, “sem se chegar à violência e ao arbítrio da justa causa, que, ademais, da forma como regrada na CLT, trazendo traços de reprimenda moral e disciplinamento, é um instituto jurídico incompatível com a atual ordem jurídica constitucional democrática". Claro, é bem mais fácil pretender uma solução que passe pela punição, afinal somos uma sociedade ainda completamente atravessada por uma lógica de senhor e escravo. O problema é que essa “solução” nada soluciona. Temos mais de 14 milhões de pessoas desempregadas, enfrentando uma crise econômica e sanitária aguda, com um custo de vida que se eleva a cada dia. A sobrevivência é um desafio constante, inclusive para quem tem emprego, em uma realidade na qual o salário mínimo está fixado em R$1.100,00 e a cesta básica, em uma cidade como Porto Alegre, custa em torno de R$ 800,00. A despedida, com ou sem alegação de justa causa, não implicará a vacinação de quem está resistindo e aprofundará esse quadro de miséria. Ao contrário, é possível presumir que sem emprego o estímulo para a imunização será ainda menor, pois essa pessoa precisará ativar-se para conseguir outra fonte de subsistência. Então, o efeito público desejado não será alcançado. Mas haverá, na linha do que tem ocorrido especialmente desde a “reforma” trabalhista, um estímulo cada vez maior para a despedida “sem custo”. E o que é pior, da perspectiva estritamente jurídica, legitimar a possibilidade de uma punição não prevista no texto da CLT, alargando as hipóteses do artigo 482, é abrir uma porta pela qual outras hipóteses certamente entrarão, até chegarmos ao momento em que será a doutrina, o empregador (ou quem sabe o MPT?) a definir situações não previstas em lei, nas quais será possível extinguir um vínculo sob a lógica do completo desamparo social. Ora, há decisão do STF referindo-se à possibilidade de recusa à vacinação. E mesmo que não houvesse, seria possível, sob prisma invertido, pensar a dispensa (mesmo com o integral pagamento das verbas e, pois, sem alegação de justa causa) em razão da recusa, como uma hipótese de despedida discriminatória. De tudo isso se extrai a convicção de que tentar resolver a questão sob a perspectiva punitivista é apenas mais um equívoco, nessa triste sucessão de erros que estamos cometendo, como sociedade, desde que a pandemia da COVID19 teve início. Se hoje discutimos os efeitos da resistência à vacinação é porque não tivemos, e seguimos não tendo, campanha pública de esclarecimento sobre a sua importância. Eis aí uma urgência. Se na relação de trabalho é do empregador o dever de “XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (art. 7º), que se exija dele a realização de campanhas de estímulo à vacinação, bem como a adoção de atitudes, como a dispensa ao trabalho e mesmo o pagamento de um bônus, como forma de viabilizar e estimular a busca pela vacina. Se nossos empregadores têm dinheiro para comprar vacinas e assumir a função estatal de imunização da sociedade, como algumas empresas recentemente anunciaram, que o utilizem para fomentar a vacinação pública e para investir no Serviço Único de Saúde, a fim de que mais doses sejam colocadas ao alcance da população no menor tempo possível. E que não despeçam! Pois, se há algo urgente e necessário, que deveríamos assumir como condição para o enfrentamento dessa crise sanitária desde o seu início, é a necessidade de manter empregos e, com eles, a possibilidade de comer, vestir, morar e ter acesso aos medicamentos necessários para viver com saúde. Em lugar de criar novas hipóteses de punição para quem vive do trabalho, é a proibição da despedida enquanto perdurar a pandemia o melhor caminho para o enfrentamento e a superação dessa tragédia social.  * Presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD), é juíza do Trabalho do TRT-4 (Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região – Rio Grande do Sul), doutora em Direito do Trabalho pela USP e Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC-RS.

Constitucionalismo, hiperpresidencialismo y desequilibrio de poderes en Brasil en tiempos de la pandemia de COVID-19*

RESUMO A pandemia do coronavírus é resultadode um modelo político e econômico quegera degradação ambiental, econômica esocial, que, por sua vez, agrava as crisesque ele mesmo gera, em um círculovicioso. Sua ocorrência revelou problemasestruturais da política e da economia eserve para explicitar os grandes desafiosque a humanidade, em geral, e a AméricaLatina, em particular, precisam enfrentarpara superar o modelo atual. O Brasilrepresenta um caso paradigmático paradiscutir os efeitos perversos do modelopolítico e econômico para a democracia e aefetividade dos direitos econômicos, sociais,culturais e ambientais (DESCA) em um paíscujo desenho institucional dos três poderese a cultura jurídica e política não favorecema proteção dos direitos fundamentais, oque ficou evidenciado pela forma como apandemia foi enfrentada por um governoautocrático e pelas dificuldades dos demais poderes em conter os efeitos perversos daspoderes em conter os efeitos perversos daspráticas abusivas do atual dirigente. * Doctora en Derecho por la Universidad Externado de Colombia, en cotutela internacional y doble titulación con la Uni- versidad Federal de Minas Gerais. Magistrada Laboral en Brasil, desde 1997. Segue artigo publicado na íntegra: ART-5-Constitucionalismo_hiperpresidencialismo_y_desequilibrio_de_poderes_en_Brasil_en_tiempos_de_la_pandemia_de_COVID-19.pdf

CNJ julga na terça juiz que ‘solta muito’ por decisões com ‘viés curiosamente garantista*

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) julga na próxima terça-feira, 1, o pedido de revisão disciplinar apresentado pelo juiz Roberto Luiz Corcioli Filho, que foi punido pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo por proferir decisões ‘com viés ideológico’ e por ‘soltar muito’. A Corte paulista entendeu que as decisões do magistrado tinham viés ‘curiosamente vinculadas à ideia de garantismo’ e que a inclinação teria trazido insegurança para a população do município de Itapevi, na região metropolitana de São Paulo, onde o juiz atuava. Os advogados do magistrado, Igor Sant’Anna Tamasauskas, Débora Cunha Rodrigues e Luísa Weichert, levaram o caso ao CNJ argumentando que o juiz teria sido punido exclusivamente por aplicar posições jurídicas minoritárias no Tribunal, ainda que respaldadas por jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). “Empreendeu-se no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo inaceitável perseguição ideológica contra um magistrado digno. Trata-se de estranho cenário”, diz um trecho do pedido de revisão. “Punir um Juiz por seu entendimento, além de obviamente ferir a independência funcional inerente à Judicatura, aniquila a noção consagrada em sede constitucional de que o Estado Democrático brasileiro se ergue sobre uma sociedade pluralista”, completam os advogados. A defesa do magistrado diz que espera que o CNJ aplique o mesmo entendimento usado em 2017 no julgamento da desembargadora aposentada Kenarik Boujikian, também punida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo por soltar presos que já estavam cumprindo pena além do prazo estipulado nas sentenças. No julgamento em questão, o conselho anulou a condenação, absolvendo a desembargadora. Juristas se manifestaram, alguns por meio de pareceres, em defesa de Roberto Luiz Corcioli Filho, entre eles Dalmo Dallari e o ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Celso Limongi. “Fico espantado, com todas as vênias do Tribunal de Justiça, que amo intransitivamente, e por isso dói-me com mais intensidade, em ver que o juiz Roberto Luiz Corcioli Filho foi punido, em face de representação assinada por 23 promotores, acusando-o de conceder, com extrema liberalidade, a liberdade para presos”, diz o trecho de uma manifestação de apoio publicada por Limongi, que faleceu pouco depois, no portal jurídico Conjur na ocasião da condenação de Corcioli na Corte paulista. O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) também divulgou nota em apoio ao magistrado. Na manifestação, a entidade acusa uma ‘criminalização da prática do garantismo penal no âmbito judicial’ e um ‘um precedente gravíssimo’ na decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo. “Um magistrado foi condenado pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça paulista única e exclusivamente pelo conteúdo jurídico de suas decisões, conteúdo este que, conforme se pode apurar da leitura dos autos, reflete posições consagradas tanto na jurisprudência — especialmente nos Tribunais Superiores no Brasil — quanto em doutrina do mais alto relevo, não se tratando, portanto, de decisório temerário ou teratológico” alerta o instituto. Em 2013, 0 Tribunal de Justiça de São Paulo chegou a afastar Corcioli da área criminal a pedido do Ministério Público. Para os promotores, ele era um juiz que soltava muito e prendia pouco. Nesse meio tempo, o magistrado ficou alocado nas áreas cível e de família, mas recorreu ao Conselho Nacional de Justiça que, no ano seguinte, determinou sua volta à vara criminal. Pouco tempo depois, em entrevista ao Estadão, Corcioli, que é ex-defensor público, resumiu sua conduta: “Não sou contra a punição, mas acho que ela deve se manter em parâmetros razoáveis”. Na mesma decisão que anulou o afastamento do magistrado, o CNJ determinou que o Tribunal de Justiça de São Paulo criasse uma regulamentação para as designações de juízes. No entanto, Corte paulista recorreu ao Supremo Tribunal Federal e o ministro Ricardo Lewandowski concedeu liminar suspendendo a decisão do conselho. COM A PALAVRA, O IBCCRIM Diante do iminente julgamento de pedido revisional junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em razão de punição disciplinar sofrida pelo juiz Roberto Luiz Corcioli Filho, decorrente única e exclusivamente de sua atuação na esfera jurisdicional, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) vem manifestar sua extrema preocupação com o cerceamento da independência funcional de um magistrado e daquilo que se pode entender como a criminalização da prática do garantismo penal no âmbito judicial. Conforme amplamente noticiado pela imprensa especializada, e também conforme notas divulgadas pelas mais diversas instituições e organizações ligadas ao sistema de justiça, a eventual reversão de tal censura aplicada ao juiz Roberto Corcioli é uma questão de suma importância para o Estado Democrático de Direito. A perpetuação da referida punição disciplinar representará um precedente gravíssimo, na medida em que um magistrado foi condenado pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça paulista única e exclusivamente pelo conteúdo jurídico de suas decisões, conteúdo este que, conforme se pode apurar da leitura dos autos, reflete posições consagradas tanto na jurisprudência — especialmente nos Tribunais Superiores no Brasil — quanto em doutrina do mais alto relevo, não se tratando, portanto, de decisório temerário ou teratológico. Nessa medida, pelos seus compromissos estatutários de “defender o respeito incondicional aos princípios, direitos e garantias fundamentais que estruturam a Constituição Federal”, bem como “defender os direitos das minorias e dos excluídos sociais, para permitir a todos os cidadãos o acesso pleno às garantias do Direito Penal e do Direito Processual Penal, de forma a conter o sistema punitivo dentro dos seus limites constitucionais” (art.4º, incisos I e III do Estatuto do Instituto), o IBCCRIM acredita que o CNJ reverterá a referida condenação evitando-se, portanto, a criação de um precedente inédito no mais alto grau de controle da atividade judicial, o qual representará um retrocesso imenso na garantia dos direitos humanos fundamentais e na independência dos magistrados. Tal garantia não é dos próprios juízes, mas de todos os cidadãos e cidadãs que podem, com ela, ter a esperança de serem julgados por juízes que não se sintam pressionados a seguirem tal ou qual linha de atuação em razão das bandeiras e sinalizações de seus próprios tribunais.   Artigo publicado originalmente no site Estadão no dia 25 de novembro de 2020.

Independência do juiz e ânsia punitiva do Ministério Público*

O retrocesso político e civilizatório brasileiro parece não pretender deixar pedra sobre pedra nas instituições da República. A última dessas etapas ameaça ruir e levar consigo a confiança derradeira na democracia e nas liberdades. Trata-se da independência judicial, garantidora da liberdade que têm os juízes de interpretar a ordem jurídica segundo a sua convicção, motivadamente, ao amparo da lei e da Constituição. Em que pese essa garantia, dois casos gravíssimos de decisões judiciais no Estado de São Paulo foram recentemente deslocados, de forma inaceitável, do debate processual para as instâncias disciplinares. No primeiro deles, o juiz de direito Roberto Luiz Corcioli Filho foi punido, com a pena de censura, pelo TJ-SP, por alegada “atuação com viés ideológico”, por “soltar muito” os presos sob sua jurisdição; por ser “progressista” demais. Um outro ponto da “acusação” é a interpretação do artigo 240 do CPP e a ilegalidade de busca pessoal feita pelas guardas metropolitanas. Essa ânsia punitiva do Ministério Público diz respeito, evidentemente, à interpretação da lei, sendo escandalosamente incabível ser transportada qualquer discussão nessa seara para a vertente disciplinar com o evidente objetivo de intimidar não só o juiz punido, mas todos os outros que verão em seu exemplo o que pode lhes acontecer de prejudicial, caso sigam o mesmo caminho. Mas o avanço contra a independência judicial não fica apenas no caso do juiz Roberto Corcioli. Neste dia 25.nov.2020, às 14h, tem-se notícia de que o Órgão Especial do TRF-3 também julgará processo disciplinar aberto contra o juiz Edevaldo de Medeiros, igualmente instaurado a pedido de nove Procuradores da República. As “acusações” não são substancialmente distintas. Ambas dizem respeito a decisões judiciais proferidas pelo magistrado ao longo de uma década, tidas como “desfavoráveis” ao MPF. As alegações dos procuradores, nesse caso, são no sentido de que o juiz teria um tal de perfil “ético-psicológico arbitrário” que o lavaria, por “razões ideológicas”, a rejeitar denúncias do órgão ministerial, de modo que a via disciplinar seria mais eficiente do que a recursal para inibir essas decisões. Reclamam até que o juiz concede liberdades provisórias não compatíveis com o entendimento que acham o correto. Semelhante ao caso do juiz Corcioli, no caso do juiz Edevaldo Medeiros, o que pretende também o MPF, por divergências interpretativas, é eliminar progressivamente da magistratura inimigos imaginários, os que cogitam ser os inimigos da sanha punitivista que tomou conta de uma banda da magistratura e do MP. Curioso é que, no caso do juiz Edvaldo Medeiros, nenhum dos oito procuradores trabalha ou trabalhou com o magistrado. O único procurador que atua junto à vara do magistrado foi arrolado como testemunha, mas em juízo admitiu que “corrigiu” a peça acusatória, parecendo tudo isso ser uma espécie de artimanha para viabilizar a prova. São casos até então sem precedentes, que emulam no Brasil o Macarthismo reinante nos EUA nos anos cinquenta, caracterizado por uma forte repressão política a adversários, com formação das chamadas “listas negras”, demissões dos indesejáveis, naquilo que se chamou de “caça às bruxas”. Tenta-se agora, no Poder Judiciário brasileiro, em estágio inicial, por demanda do Ministério Público, copiar esses métodos nefastos e de triste memória. Não se pode, todavia, colocar uma camisa de força disciplinar naqueles que não pensam em harmonia com o pensamento único do Ministério Público. A independência judicial aparente e concreta não comporta tutela às decisões dos juízes por órgãos disciplinares, sob pena de naufragar a ideia e a existência de um Judiciário livre no Brasil. Segundo constou do “Bangalore Principles Of Judicial Conduct”, documento editado sob os auspícios das Nações Unidas, é “(..) importante que o Judiciário seja visto como independente e que a análise da independência inclua essa percepção”. (fls.58). É urgente e necessário, portanto, que os tribunais assegurem as garantias da magistratura e que o Conselho Nacional de Justiça reveja eventuais decisões equivocadas das cortes locais, restaurando a independência judicial e do próprio funcionamento do Poder Judiciário. Sem essa garantia o Poder Judiciário não tem serventia democrática; será apenas expressão do arbítrio sob o enganoso verniz do Estado Democrático de Direito.  * Germano Siqueira, juiz do Trabalho de Fortaleza.  Artigo publicado originalmente no site Folha de São Paulo no dia 25 de novembro de 2020.

CNJ decide sobre censura em caso que envolve independência do magistrado

O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) deverá julgar nesta terça-feira (24) pedido de revisão para reverter a condenação de censura aplicada em agosto de 2018 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo ao juiz Roberto Luiz Corcioli Filho. (*) O caso envolve polêmica sobre o garantismo penal e a independência dos magistrados. O relator é o conselheiro Emmanoel Pereira. O processo administrativo começou com uma representação em que 17 promotores acusavam Corcioli Filho de promover, nos plantões judiciais, a “soltura maciça de indivíduos cujo encarceramento é imprescindível”. No pedido de revisão ao CNJ, os advogados do juiz –Igor Sant’Anna Tamasauskas e Débora Cunha Rodrigues–, sustentam que o TJ-SP promoveu “inaceitável perseguição ideológica contra um magistrado digno”. A defesa vê na iniciativa o “intuito de intimidação de juiz que adota posições jurídicas plenamente fundamentadas e defensáveis apenas por destoarem daquelas adotadas e defendidas, em geral, pelos promotores subscritores”. “Trata-se de estranho cenário, em que respeitado Juiz de Direito é prejudicado, por exemplo, ao seguir a orientação jurisprudencial de Tribunais Superiores no âmbito penal, sabidamente ignorada pela Corte de que faz parte e que o condenou.” Segundo os advogados, Corcioli “foi punido pelo teor das suas decisões, em patente violação ao art. 41 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN, a estabelecer que “salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir”. “Infelizmente, não se trata de fato inédito na Justiça de São Paulo. Pelo contrário: mais uma vez, a exemplo do que fizera com a desembargadora Kenarik Boujikian, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu de forma contrária à legislação e à evidência dos autos”. A defesa pede a absolvição de Corcioli “assim como fez exemplarmente no histórico julgamento da Revisão Disciplinar proposta por Kenarik Boujikian e acolhida em 29 de agosto de 2017 por dez votos a um”. Entre as peças juntadas a título de confirmar a “conduta profissional impecável” de Corcioli, há uma manifestação conjunta de oito juízes que atuavam no mesmo fórum em que ele desempenhava suas funções, testemunhos de juristas, profissionais do direito e agentes relacionados à área da segurança. Acusações ao magistrado Eis algumas alegações dos promotores que representaram contra o juiz: – “O representado [Corcioli Filho] possui ideologia contra o modelo de Sistema Penal vigente e favorável ao desencarceramento e absolvições, especialmente nos casos de tráfico de entorpecentes.” – “(…) O representado relaxou a prisão em flagrante dos indiciados por crime de tráfico de drogas que estavam com 74 tijolos de maconha”, (…) “fundamentou no sentido de que a palavra de policiais civis não é válida e que não havia sido realizada audiência de custódia.” – “Utiliza-se de premissas indefensáveis” (…), tais como ‘a palavra dos policiais, civis ou militares, é insuficiente’ (…) ‘guardas municipais não podem efetuar prisões em flagrante’”. – “Seguindo sua ideologia contra o modelo de Sistema Penal vigente e favorável ao desencarceramento, vários são os casos em que o representado decide contra texto expresso de lei, visando satisfazer aquela ideologia.” Opinião de juristas Nas razões finais, há uma lista de juristas e professores que fizeram declarações e emitiram pareceres –todos em caráter pro bono–, opinando pela improcedência das imputações. A defesa reproduz trechos de manifestações de Dalmo de Abreu Dallari, Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP, e Celso Luiz Limongi, morto em setembro de 2018, ex-Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo e da Associação Paulista de Magistrados (Apamagis). “(…) Não tenho qualquer dúvida em afirmar que a proposta de punição do juiz Roberto Corcioli, aqui examinada, não tem a mínima consistência jurídica. A orientação adotada pelo preclaro magistrado, ainda que influenciada pela teoria do garantismo penal, condiz estritamente com os princípios e as normas da Constituição vigente que regem o direito penal, o direito penal juvenil e o processo penal no Brasil. As decisões do ilustre magistrado Roberto Corcioli, invocadas na proposta de punição, não configuram parcialidade ou desvio politicamente influenciado, estando rigorosamente enquadrados nas normas éticas e jurídicas que devem ser obrigatoriamente respeitadas pelos magistrados de todos os níveis” (Dalmo de Abreu Dallari). “A função do juiz criminal não é a de um vingador implacável. (…) Fico espantado, com todas as vênias do Tribunal de Justiça, que amo intransitivamente, e por isso dói-me com mais intensidade, em ver que o juiz Roberto Luiz Corcioli Filho foi punido, em face de representação assinada por 23 promotores, acusando-o de conceder, com extrema liberalidade, a liberdade para presos” (Celso Luiz Limongi). Também opinaram pela improcedência das acusações os seguintes juristas e professores: Fernando Dias Menezes de Almeida, Professor Titular da Faculdade de Direito da USP Sérgio Salomão Shecaira, Professor Titular da Faculdade de Direito da USP e ex-Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça Calixto Salomão Filho, Professor Titular da Faculdade de Direito da USP e Professor do Institut de Sciences Politiques (Sciences Po, Paris) Brisa Lopes de Mello Ferrão, Ex-Assessora Especial do Supremo Tribunal Federal e Doutora pela Faculdade de Direito da USP Conrado Hübner Mendes, Professor Doutor da Faculdade de Direito da USP Rafael Mafei Rabelo Queiroz, Professor Associado da Faculdade de Direito da USP Luiz Flávio Gomes, Morto em abril deste ano, Doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madri Geraldo Prado, Professor Associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (*) REVISÃO DISCIPLINAR 0004729-35.2019.2.00.0000   Artigo publicado originalmente no site Folha de São Paulo no dia 20 de novembro de 2020.

AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA POR VIDEOCONFERÊNCIA Um grave retrocesso no combate à tortura no Brasil*

Que ninguém se engane. O episódio de espancamento até a morte de João Alberto Silveira Freitas pelos seguranças do supermercado Carrefour tem muito a ver com a recente decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que permitiu as audiências de custódia por videoconferência. Ambos os eventos estão relacionados com a violência institucional praticada por agentes de segurança, sejam públicos ou particulares, contra a população negra do país, o quanto isso nos toca, e o que estamos dispostos a fazer para enfrentar o problema.  No Brasil há prática corriqueira de violência por agentes do Estado contra pessoas custodiadas, pessoas pretas, quase pretas e quase brancas, tratadas como pretas de tão pobres, como diria Caetano.  Após a ditadura não houve apuração e responsabilização de agentes pela prática de tortura. Tal decorreu de uma escolha política de não enfrentamento, referendada até o momento pelo Supremo Tribunal Federal, que considerou os crimes de tortura e desaparecimento forçado praticados durante o regime militar anistiados e prescritos. Esse posicionamento já rendeu ao Brasil duas condenações pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, nos casos Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia), em 2010, e Herzog, em 2018.  O regime militar terminou em 1985. A Constituição de 1988 é o marco de refundação da democracia brasileira. Porém nada mudou. Estão disponíveis na internet diversos relatórios produzidos por órgãos públicos e entidades de defesa de direitos humanos sobre a prática disseminada e sistemática de tortura no Brasil ao longo das três últimas décadas.  O Relatório sobre Tortura no Brasil, produzido pela Comissão de Direitos Humanos e Direito de Minorias da Câmara dos Deputados, em 2005, traz relatos detalhados de tortura praticada principalmente por policiais e agentes de custódia sobre corpos de pessoas encarceradas em diversos estados do país. Dentre as medidas recomendadas para combate à tortura já naquele Relatório constava “a apresentação imediata do preso a uma autoridade judicial no momento da detenção, conforme proposição da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto San Jose da Costa Rica” (Recomendação 12, p.78).  De fato, o art. 7.5 da CADH assegura ao preso o direito de ser conduzido à presença de um juiz no momento de sua detenção. Nessa audiência, o juiz verificará a legalidade da prisão, as circunstâncias em que ocorreu e se foi praticada violência contra o preso, devendo tomar as providências cabíveis.  A Convenção data de 1969, mas o Brasil só aderiu a ela em 1992, após o regime militar. Contudo, ainda foram necessários 23 anos (!) para que a audiência de custódia fosse adotada no Brasil. Tal demora diz muito sobre como as autoridades brasileiras lidam com violações de direitos humanos, mesmo em período democrático. A violência policial contra pessoas presas é tolerada e naturalizada. Não se trata de fatos isolados, desvios de comportamento eventualmente observados, mas de conduta institucionalizada e até mesmo incentivada dentro das corporações policiais.  Apenas em 2015 foi editada a Resolução 213 pelo CNJ, sob presidência do ministro Ricardo Lewandowski, estabelecendo a obrigatoriedade de adoção das audiências de custódia por todos os tribunais brasileiros.  A realização das audiências de custódia representou um avanço significativo no controle efetivo pelo judiciário de eventual violência cometida contra o preso no momento da sua detenção. Até então, o juiz avaliava a legalidade da prisão através da leitura do auto de prisão em flagrante, não havia qualquer contato do acusado com o juiz até a audiência de instrução e julgamento, geralmente realizada meses após sua prisão. A condução do preso à presença do juiz sem demora tem inclusive efeito dissuasório. A possibilidade de o policial ser responsabilizado inibe a ação violenta.  Mas é imperativo que o ato seja presencial! É intuitivo que a audiência de custódia perde sua razão de ser quando realizada por videoconferência. O preso mantido no estabelecimento prisional, sob custódia muitas vezes das próprias pessoas que realizaram sua detenção, não se sentirá seguro para reportar eventual violência que tenha sofrido. O juiz não terá meios de verificar o real estado físico e emocional do preso através de uma tela de computador.  O Supremo Tribunal Federal já afirmou que o direito de presença do acusado às audiências integra a ampla defesa. Curioso que tal direito tenha sido afirmado em habeas corpus concedido a Fernando Beira-Mar (HC 86634), significando que, não importa a gravidade dos crimes imputados, direitos fundamentais são para todas e todos.  O uso de videoconferência só se justifica em situações excepcionais, pois indiscutivelmente presença e videoconferência são coisas distintas. Ainda que se admita a realização de audiências judiciais por videoconferência durante a pandemia Covid-19, essa modalidade não deve ser aplicada a processos com réus presos. Principalmente tratando-se de audiências de custódia.  Não por outro motivo, o CNJ, sob a presidência do ministro Dias Toffoli, vedou expressamente a realização de audiências de custódia por videoconferência, mesmo no ambiente de pandemia (art. 19 da Resolução 329). Contudo, no dia 24 de novembro, tal entendimento foi revisto pelo Conselho com apoio de duas importantes associações de juízes, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação dos Juízes Federais (Ajufe).  Nesse cenário, é que nós, juízas e juízes da Associação Juízes para a Democracia (AJD), estamos nos posicionando, esclarecendo porque somos contrários à realização de audiências de custódia por videoconferência mesmo durante a pandemia. Entendemos que se trata de serviço essencial, e por isso deve ser realizado de forma presencial, adotados os cuidados e protocolos necessários para evitar a contaminação dos atores envolvidos. Embora estejamos em ambiente de pandemia, em nenhum momento foi decretado lockdown no Brasil. Serviços essenciais continuam funcionando com as adaptações necessárias e, diga-se de passagem, serviços nem tão essenciais assim também não foram interrompidos.  A juíza presidente da AMB, na sessão do CNJ em que foi aprovada a audiência de custódia por videoconferência, afirmou que as audiências criminais virtuais vinham sendo realizadas de forma exitosa, tratando-se de um case de sucesso. Ressaltou que não havia nenhuma notícia de problemas na realização dessas audiências. Ponderou ainda que nas audiências de custódia virtuais haveria possibilidade de aferição de maus tratos, pelo fato de ser garantida a presença de defensores públicos e advogados ao lado dos presos.  Por sua vez, ao acolher o argumento, o ministro Luiz Fux afirmou que seriam instaladas câmeras de 360 graus nos estabelecimentos prisionais, câmeras externas para monitorar a entrada dos presos nas salas de custódia, e que ficaria facultada a presença de advogados, podendo ainda o preso pedir a presença de promotores de justiça para reportar abusos. Discordamos da viabilidade e eficácia dessas medidas. Em primeiro lugar, é de se ponderar que a situação excepcional que justificaria a realização da audiência de custódia por videoconferência é a pandemia. A ideia é evitar a circulação de pessoas. Chegou-se a argumentar que havia risco de os juízes contaminarem as pessoas encarceradas e que a medida visava assim assegurar a integridade física dos próprios presos. Mas a sugerida presença física de defensores, advogados e promotores nos locais de custódia, como forma de minimizar os riscos de tortura contra presos, implica na circulação de pessoas nos presídios. Ao que parece, garantida mesmo a presença de defensores e promotores no ambiente prisional, apenas os juízes seriam poupados e poderiam realizar o ato no conforto de suas casas.  A proposta é de que a fiscalização da situação do preso pelo juiz seja substituída pelo reporte do defensor. Contudo, é materialmente impossível que o juiz verifique, do outro lado da tela do computador, se eventual alegação de maus tratos, formulada pelo defensor ou pelo próprio preso, procede. Vê-se assim que a presença física do defensor na carceragem não substitui o contato pessoal do preso com o juiz.  Além disso, “facultar” ao preso a presença de um defensor não é o mesmo que impor a presença de um defensor na carceragem para que o ato seja realizado. Não há absolutamente essa garantia, pelo contrário. A Resolução aprovada afirma que o preso permanecerá sozinho na sala, “ressalvada a possibilidade de presença física de seu advogado ou defensor no ambiente”.  Contudo, as defensorias públicas de todo o Brasil não estão aparelhadas para estar presentes nos estabelecimentos prisionais para participação in loco das audiências de custódia. Na prática, a maioria dos presos não possui advogado e dificilmente haverá defensores suficientes para acompanhar o ato. O que se espera dos presos é que sozinhos, diante do computador, comunicando-se com defensores, promotores e juízes situados em outros ambientes, tenham expediente, segurança e iniciativa para reportarem as circunstâncias de sua prisão e se sofreram abusos. Acreditar que isso seja possível é, com todas as vênias, ignorar a realidade.  A instalação de câmeras nos estabelecimentos prisionais e de equipamento suficiente para as audiências virtuais demanda investimentos. É muito mais econômico, racional e eficiente que todos os atores envolvidos no ato estejam na sala de audiência, separados por divisórias de acrílico, com máscaras e demais equipamentos de proteção para evitar o contágio.   A assertiva de que as audiências virtuais são um “case” bem sucedido traz implícita a ideia de que, revelando-se uma experiência exitosa, poderá ser adotada de forma definitiva, e não apenas durante a pandemia. O discurso de que o Judiciário está adaptado aos meios digitais, funcionando bem e a pleno vapor, reforça a ideia de que o contato humano é dispensável. Também a afirmação de que não há notícias de problemas na condução das audiências criminais virtuais deve ser recebida com cautela. A “não notícia” faz acender um sinal de alerta, justamente porque o método adotado não permite a identificação dos problemas. Como já se procurou demonstrar, a violência é institucionalizada. Não tomar conhecimento dela é a questão crucial aqui.  Um dos efeitos deletérios dessa realidade é a banalização de práticas de tortura, por parte de agentes privados. João Alberto foi espancado por mais de 5 minutos até morrer asfixiado. A sessão de tortura foi praticada por dois trabalhadores contratados para atuarem como “leões de chácara” no supermercado. Algo, aliás, muito comum nesse tipo de estabelecimento. A tortura e a morte foram filmadas por uma terceira pessoa, uma trabalhadora do local, que em momento algum cogitou dar ordem para que parassem com o espancamento.  A crise sanitária, econômica e humana que estamos vivendo não tem precedentes. A banalização da tortura, em larga medida determinada pela ausência de um verdadeiro acerto de contas com a experiência da ditadura civil-militar, faz com que situações como essa se multipliquem, dentro e fora das prisões. A situação é emergencial, sem dúvida. Contudo, momentos excepcionais exigem a intensificação da proteção dos direitos fundamentais dos mais vulneráveis e não o inverso.  É urgente que os mecanismos de controle para prevenção e repressão da prática de tortura no Brasil sejam aprimorados. A experiência das audiências de custódia é ainda muito recente, não se tem sequer exata dimensão dos resultados obtidos. Nesse contexto, é lamentável que tão rapidamente ocorra a desfiguração e esvaziamento do instituto, sob qualquer pretexto.  Realizar audiências de custódia por videoconferência é retroceder no controle judicial da prática da tortura no Brasil. * Valdete Souto Severo é professora de Direito e Processo do Trabalho, juíza do trabalho e presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD). ** Simone Schreiber é professora de Direito Processual Penal da UNIRIO, desembargadora federal e associada da AJD.  Artigo publicado originalmente no site  Le Monde Diplomatique Brasil no dia 17 de dezembro de 2020.  

2020: ano para descobrir que o corpo do indesejável pode ser o seu*

Há muito eu tento me preparar para o abismo que a minoria dominante do planeta, as grandes corporações, os bilionários que arrancaram suas fortunas da natureza, os governantes e os executivos que os servem, cavaram para todos nós. Mas eu nunca me preparei para o que está acontecendo no Brasil agora. E é com isso que não consigo lidar. Eu não consigo lidar com a indiferença. Há dois acontecimentos simultâneos e conectados no Brasil, o que o torna diferente de outros países do mundo nesta pandemia. Um é a covid-19, que aqui atingiu proporções de catástrofe, tornando o Brasil um dos países mais afetados do mundo. O outro é a ação deliberada de Jair Bolsonaro e de pessoas, militares e civis, que ocupam cargos no seu Governo para, por um lado, deixar a covid-19 avançar e matar, por outro ampliar as condições para que ela mate mais. A covid-19 e a suspeita de crimes contra a humanidade praticados por Bolsonaro e por seu Governo estão intimamente relacionadas no Brasil e não há como dissociá-las em qualquer análise sem promover o apagamento de fatos documentados. O que eu não imaginava é que, diante das evidências de um genocídio, a maior parte da sociedade silenciaria. O que eu não imaginava era ouvir: “Você está banalizando a palavra genocídio”. Não seria você que estaria banalizando a morte?, eu respondo. A dos outros, claro. São sempre os outros os que podem ser sacrificados. (Eliane Brum, para o El Pais) 2020. Brasil. Covid-19. Pandemia, mais de 180 mil mortes. Fome voltando a ser um problema social grave. Trabalho escravo. Ódio. Indiferença. Gestão política perversa. O aumento da fortuna dos bilionários. As florestas em chama ou abaixo. A população em risco e atrás das telas. O mundo do descaso. O fim da solidariedade social. O mundo acabou, mas ainda estamos aqui.  Se somos um povo forjado na ilusão de uma cordialidade que nunca existiu, numa insistência em silenciamento e esquecimento constantemente reeditada para que não houvesse espaço de resistência possível a perfurar esse vazio de não pertencimento, de uma democracia que sempre serviu e só existe para a mesma minoria de privilegiados, deveria ter sido óbvio para nós que em 2020 seríamos esse país de extermínio, horror e covardia. Ainda estamos aqui, mas será que estamos existindo? O que estamos escolhendo fazer com o nosso descontentamento, com o nosso medo, além de paralisar e tentar sobreviver a catástrofe sem que consigamos reagir para além de nossos muros? Basta falarmos e escrevermos repetidamente que não somos mais uma democracia, sendo que aliás nunca fomos uma democracia, porque deixamos que grande parte de nossa população fosse sempre sacrificada, assassinada, explorada, como se isso estivesse muito distante e fosse algo fora do nosso controle.  Desde quando as balas continuam encontrando os mesmos corpos negros, periféricos, as mesmas crianças e desde quando não fizemos nada fora escrever, usar nossas telas, nossos nomes, nossos cargos de autoridade, para fazer o mínimo e tentar dormir à noite em nossos condomínios? O que vivemos hoje é algo que ultrapassou o chamamos necropolítica, como tem defendido o professor Vladimir Safatle, um Necroestado sempre fomos. Isso aqui que o ano de 2020 nos trouxe foi algo de uma outra ordem de horror e indiferença.  A questão é quem somos e como sobreviveremos se deixarmos que isso passe como tem passado, sem luto e sem luta, o que faremos com o nosso descontentamento antes de que eles nos matem de tristeza, doença e violência é a pergunta que agora deveria nos pautar. Traçamos diagnósticos da realidade e chegamos a um ponto histórico de esgotamento ao mesmo tempo em que desaprendemos a usar a força do descontentamento.  Afinal, quem somos nós para mudarmos a realidade posta? O ativismo da nossa omissão é cúmplice do sangue das vítimas. É também cúmplice dos escombros do país. A política fascista que hoje nos mata – e não se iludam, essa política está aí para matar a todos – já que o retorno do recalcado e a sua tomada de poder, ainda que vá alcançar de forma mais violenta e rápida os corpos mais vulneráveis, é uma gestão de morte que torna todos e todas que se opõe à condição de indesejáveis. Tivemos a chance de corrigir as deformidades e aberrações que construíram o Brasil, depois de tantos corpos escravizados e mortos, mas escolhemos ser cordiais e perdoar uma ditadura militar. Não há como sobreviver de modo digno a isso. Não havia democracia possível com perdão indiscriminado ao horror e, mais do que isso, com a manutenção, e o crescimento, da militarização da polícia que continuou a se sustentar sob um gozo de eliminação de seu próprio povo. É indefensável tocarmos a vida. Não haverá perdão possível e não haverá estrutura psíquica a nos livrar da nossa própria destruição se aceitarmos tocar a vida, se continuarmos tocando a vida, quando somos governados para morrermos e enterrarmos os nossos.  Precisamos ter coragem de levantar da cama e fazer dessas palavras que tanto escrevemos, tanto dizemos em lives, durante esse ano, de algum jeito encontrem as ruas, Eliane Brum tem razão quando diz não acreditar que “temos um povo, no sentido de uma massa de pessoas com a mesma nacionalidade que luta por valores comuns”. “Talvez não tenhamos um povo. Mas temos povos. Nas periferias e favelas urbanas deste país há gente se organizando e lutando e criando possibilidades de viver apesar de todas as formas de morte. Se ainda existe a Amazônia é porque camponeses e povos da floresta lutam, mesmo sendo abatidos a tiros ― e agora também pela Covid-19. Nas cidades, os movimentos de sem-teto se organizam pelo direito da ocupação da cidade para a vida e não para a especulação imobiliária. No campo, os agricultores familiares insistem em alimentar o país sem agrotóxicos enquanto Bolsonaro libera mais de um veneno por dia. Há homens e mulheres barrando a destruição da natureza com seus corpos em cada dobra do país. Há rebeliões por todos os Brasis, avançando nas fissuras, pelas bordas” (Eliane Brum). Voltando a Saflatle e sua afirmação de que estamos vivendo um momento de transformações no exercício do poder soberano através dos modos de gestão da morte e do desaparecimento, mais uma vez começando na periferia do sistema capitalista, sendo essas modificações pressionadas pela explicitação contemporânea da dimensão profundamente autoritária de modelos de gestão neoliberal e a sua incapacidade de preservar a macroestrutura de proteção social e de redistribuição. Para ele, o Brasil supostamente estaria funcionando como uma espécie de laboratório mundial para dessa forma de neoliberalismo autoritário, o que parece estar cada dia mais claro. Então, se seguirmos repetindo a catástrofe ela nos matará a todas e todos e também exterminará todas as formas de vida nesse planeta. Mas há saída, devemos começar a nos articularmos e organizarmos para uma luta que vai ser longa e talvez a gente mesmo não consiga ver seu fim, mas escolhemos trabalhar com perspectiva de emancipação, para além de uma vida fascista, por um novo dimensionamento ético, que não prescinda de considerar a violência com elemento do gozo mortífero que é componente irrecusável das pulsões que habitam o sujeito político – fruto do processo cultural civilizatório, torne possível um novo discurso social para além das dimensões de poder e de exclusão.  Já escrevi em outro texto, que se o inimigo está se o inimigo está em todo lugar, talvez o desafio seja entender que este inimigo que vemos em todo lugar somos nós mesmos. Então penso que se escrevi isso há mais de um ano e ainda estamos aqui é hora de repetir: a luta contra o fascismo, assim como a luta contra a violência social, não é uma luta a ser travada contra pessoas determinadas, mas sim contra uma ideia, um discurso, que vem nos definindo há séculos em categorias de raça e gênero, de maneira cada vez mais articulada. Talvez essa seja a nossa missão de 2021. O ano novo não está dado. 2021 só será novo se nossa resistência for capaz de resgatar o nosso presente das mãos dos tiranos. Cada um de nós precisa refletir, agir e se responsabilizar pela indiferença ao horror do nosso tempo.  E ouso repetir também, especialmente para as mulheres, em especial às mulheres negras, às mulheres periféricas e às mulheres trans, que apesar de todos esses séculos de misoginia, do patriarcado nos definindo como inimigas de nossos corpos e de todos os outros corpos femininos, precisamos tomar o protagonismo nessa subversão necessária da lógica da inimiga, com os nossos corpos brancos ao lado e se preciso a frente dos seus, como proteção. Se os descontentes e os indesejáveis não acordarem depois desse massacre deixado por 2020 e que não dá sinais de que irá parar por aqui, não haverá saída, mas apenas retorno. Ou melhor, não haverá mais vida, seremos um povo que toca a vida para a morte. - Referências BRUM, Eliane. Os humanos que o vírus descobriu no Brasil https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-09-16/os-humanos-que-o-virus-descobriu-no-brasil.html BRUM, Eliane. 7 de setembro: morte https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-09-03/7-de-setembro-morte.html RAMOS, Ana Carolina Bartolamei. E quando o inimigo é tudo mundo? https://www.cartacapital.com.br/blogs/sororidade-em-pauta/e-quando-o-inimigo-e-todo-mundo/ SAFATLE, Vladimir. Para Além da Necropolitica. https://www.n-1edicoes.org/textos/191   * Ana Carolina Bartolamei Ramos é juíza de Direito Substituta do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná com atuação na Vara de Execução Penal, Medidas Alternativas e Corregedoria dos Presídios e supervisora da Central de Medidas Socialmente Úteis – CEMSU do CEJUSC do Fórum Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba. Membra da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e mestranda em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUC-PR. ** Laís Gorski é mestre em Direito e Sociedade pela Universidade LaSalle. Especialista em Direitos Humanos e Políticas Criminais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Consultora em audiência de Custódia no Programa Fazendo Justiça (CNJ/UNODC).  Artigo publicado originalmente no site  Justificando no dia 16 de dezembro de 2020.  

Ruptura: antirracismo x banalização*

“Não chego armado de verdades categóricas. Minha consciência não está permeada de fulgurações precípuas. No entanto, com toda a serenidade, acho que seria bom que certas coisas fossem ditas. Essas coisas, eu as direi, não as gritarei. Pois há muito o grito saiu da minha vida. E fez tão distante…” (Frantz Fanon) À Emily Victória Silva dos Santos (In memoriam) À Rebeca Beatriz Rodrigues dos Santos (In memoriam) Em 25.5.2020, em Minneapolis, Minnesota, EUA, George Perry Floyd Jr, negro, foi fria e covardemente assassinado por um policial branco, por suspeita de ter utilizado nota falsificada na aquisição de um produto. Por 11 vezes George disse “Eu não consigo respirar”, apelo dolosamente ignorado pelo policial branco. No dia seguinte ao assassinato de George, os jogadores da equipe do Milwaukee Bucks da NBA (liga profissional do basquetebol, nos EUA) se recusaram a entrar em quadra, boicote que foi seguido por outras equipes, jogadores, técnicos e dirigentes. O ato antirracista do mundo do basquetebol, em repúdio ao assassinato de George Floyd, repercutiu em todas as cidades dos EUA, durante semanas. O policial branco foi solto, após pagar fiança, e responderá ao homicídio doloso em liberdade. Em 8.12.2020, um ato racista contra o ex-jogador e membro da comissão técnica do time turco Istanbul Basaksehir, o camaronês Pierre Webo, negro, durante partida de futebol da Champions League da UEFA (liga profissional européia de futebol), provocou revolta em todos os jogadores e dirigentes da equipe turca e da equipe francesa Paris Saint Germain. A partida foi paralisada aos 13 minutos do primeiro tempo, após a iniciativa de Demba Ba, jogador negro e senegalês do time turco: os jogadores, a comissão técnica e os dirigentes de ambas as equipes se recusaram a permanecer em campo na presença do 4º árbitro, acusado de proferir a ofensa. O ato repugnante do 4º árbitro e a resposta imediata de repúdio de ambas as equipes europeias de futebol estamparam as manchetes da mídia esportiva em todo o mundo.  O ex-técnico do Flamengo, porém, entrevistado sobre o cancelamento do jogo da Champions League disse: “está muito na moda isso de racismo”. O mundo esportivo de grande representatividade concedeu duas respostas antirracistas contundentes. Por outro lado, atitudes de indiferença e escárnio estão constantemente presentes, parte da realidade estrutural da sociedade. No Brasil, o mito da “democracia racial” segue sendo vocalizado[1] por autoridades, denotando a persistência ideológica e a radicalidade histórica do racismo institucional e estrutural.  As violências plúrimas sofridas pela população negra, contudo, escancaram que a “democracia racial” não passa de uma quimera da branquitude[2]: recebemos os piores salários; ocupamos prioritariamente os empregos subalternos e raramente os postos de comando ou chefia; somos a maior parte dos presos e custodiados, no sistema prisional; compomos a menor parcela nos cargos públicos; somos raríssimas personagens nos cargos de cúpula do Poder Judiciário e do Ministério Público. É possível questionar se o mito da “democracia racial” não seria fruto das teorias eurocêntricas e eugênicas, anteriores à Proclamação da República, que desejavam o “branqueamento” da população negra brasileira, por meio do epistemicídio[3] da cultura africana, ou da legislação estatal que privilegiou a posse de terra do branco e relegou ao negro liberto a fome e o morro. Há muito mais a questionar e, convenhamos, a estrutura econômica é ainda mais racista do que as teorias “científicas” dos novecentos. Ainda hoje, o samba-enredo antológico[4] desnuda a realidade das vidas negras: Pergunte ao criador, quem pintou essa aquarela Livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela A Rede de Observatórios da Segurança[5] divulgou dados em que a letalidade policial é muito maior entre os negros. Em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Ceará e Pernambuco, por exemplo, os estudos apontaram que a população negra é a que mais morre pela polícia, seja em números absolutos ou proporcionalmente. Na Bahia, 97% dos mortos em confronto com a polícia eram negros.  Por outro lado, segundo dados oficiais do CNJ (2018), o percentual de juízes negros e de juízas negras era de 18% (1,6% pretas e pretos e 16,5% pardas e pardos). Segundo o IBGE, em 2018, a população negra brasileira representava 55% do total. Depois das surpreendentes reações antirracistas dos atletas profissionais do basquetebol e do futebol, há expectativa – e sinceramente espero que não seja (mais) uma ingênua ilusão – de que o Poder Judiciário e todo o sistema de Justiça, no Brasil, sejam contagiados por essa perspectiva. Recentemente, no dia 11.11.2020, a 2ª Turma do TST, no julgamento do AIRR- 1000390-03.2018.5.02.0046, em abordagem objetiva sobre o tema do racismo institucional, reformou a decisão ordinária e condenou a empregadora no pagamento de indenização dos danos morais à trabalhadora negra que foi dispensada por usar cabelo estilo “black power”, o que desrespeitaria o “guia de padronização individual” imposto às empregadas mulheres. Aqui, trecho do voto da Ministra Relatora Doutora Delaíde Miranda Arantes: “Cumpre destacar que no atual estágio de desenvolvimento de nossa sociedade, toda a forma de discriminação deve ser combatida, notadamente aquela mais sutil de ser detectada em sua natureza, como a discriminação institucional ou estrutural, que ao invés de ser perpetrada por indivíduos, é praticada por instituições, sejam elas privadas ou públicas, de forma intencional ou não, com o poder de afetar negativamente determinado grupo racial. É o que se extrai do caso concreto em exame, quando o guia de padronização visual adotado pela reclamada, ainda que de forma não intencional, deixa de contemplar pessoas da raça negra, tendo efeito negativo sobre os empregados de cor negra, razão pela qual a parte autora faz jus ao pagamento de indenização por danos morais.” (grifos nossos) Alvissareira a decisão da 2ª Turma do TST, sobretudo por modificar a decisão ordinária (tanto do juiz de primeiro grau, quanto do tribunal regional), que não vislumbrara o racismo do “guia de padronização”, mesmo ausente qualquer imagem de mulheres negras como referência ou modelo “padrão”. 55% da população brasileira é negra! 55% da população brasileira é negra! Será preciso repetir isso sempre:  55% da população brasileira é negra!!! Por mais que presenciemos o crescimento de atos antirracistas, por mais que  aumente a representatividade da população negra em diversas atividades profissionais e lúdicas, ainda haverá longo caminho a percorrer. “É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.” (O avesso da pele, Jeferson Tenório). A nossa sobrevivência sempre foi árdua e dificultada pelo racismo estrutural. E a luta antirracista apenas se iniciou, não há retorno. A origem do racismo não é responsabilidade da população negra; os privilegiados e os beneficiários dessa perversidade histórica que o desarmem. - Notas: [1] https://www.dw.com/pt-br/hamilton-mour%C3%A3o-diz-que-n%C3%A3o-existe-racismo-no-brasil/a-55682037: – recentemente, no dia da Consciência Negra, o vice-presidente da República afirmou “racismo é uma questão que querem importar para o país, mas só ocorre no exterior” [2] A Doutora Lia Vainer Schucman, no Brasil, é uma excelente referência sobre o tema. Entre outros: “Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo”, Ed. Veneta. [3] “estrangeiras são nossas instituições, mal e intempestivamente enxertadas, avessas aos nossos costumes e naturais tendências e em desacordo com a vastidão de um território sem tamanho e diferenças de classes”, Domingos José Gonçalves de Magalhães, em 1848, apud, “O espetáculo das Raças, cientistas, instruções e questão racial no Brasil, Lilia Moritz Schwarcz [4] 100 Anos de Liberdade: realidade ou ilusão (GRES – Estação Primeira da Mangueira – RJ) [5] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/12/09/letalidade-policial-e-muito-maior-entre-negros-diz-estudo-na-bahia-e-de-97.htm  *José Antonio Correa Francisco é juiz do trabalho substituto da 11ª Região (AM/RR) e membro da AJD (Associação Juízes para a Democracia).  Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 21 de dezembro de 2020.  

Justiça brasileira viola direitos de mulheres e outras minorias*

Para a juíza aposentada Kenarik Boujikian, responsável pela condenação de Roger Abdelmassih, em 2010, o judiciário ainda é muito machista, racista e discrimina populações vulneráveis O Judiciário brasileiro, em seu cotidiano, ainda legitima a discriminação contra as mulheres. É o que diz a desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), Kenarik Boujikian. A reflexão da desembargadora soma-se ao forte desabafo que ela fez nas redes sociais como reação ao recente caso de Mariana Ferrer. A jovem catarinense que, além de ter sido fortemente destratada, humilhada, em uma sessão de julgamento no Tribunal de Santa Catarina, viu seu agressor sexual ser absolvido por não possuir o dolo de a estuprar, o que rendeu jocosamente na imprensa a tese do Estupro Culposo. Boujikian sabe bem o que é ser mulher num Judiciário estruturalmente machista. Ela foi a juíza responsável pela condenação de Roger Abdelmassih, em 2010, a 278 anos de prisão por mais de 50 estupros e tentativas de abuso de pacientes de sua clínica de fertilização. A sentença proferida por Kenarik completou dez anos no último dia 23 de novembro. Kenarik era, então, a juíza responsável pelo caso. “Nunca tinha fixado uma pena tão alta”, diz ela, ao revelar ter até se assustado com a somatória, muito embora tenha se fixado no mínimo previsto em lei. Na conversa a seguir, ela faz uma forte reflexão sobre como a Justiça no Brasil, que nas palavras dela mesma é “violadora dos direitos das mulheres” e, em geral, também com outras minorias. “Minha hipótese é que nem todos os juízes sabem qual é o seu papel no Estado Democrático de Direito. O juiz deve ser o instrumento da Constituição na defesa incondicional e na garantia efetiva dos direitos fundamentais da pessoa humana”, afirma. Nascida em uma aldeia de armênios, na Síria, Kenarik chegou ao Brasil com seus pais aos três anos de idade. Passou a infância em São José do Rio Preto, onde seu pai trabalhava como comerciante, em São Paulo, onde estudou na Escola Armênia e mais tarde num colégio salesiano. Foi voluntária no presídio do Carandiru. Trabalhou também na Procuradoria de Assistência Judiciária (PAJ). Atualmente, aos 61 anos, milita pelos direitos humanos. Ela foi co-fundadora da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Em 2002 recebeu 19º Prêmio Franz de Castro Holzwarth de Direitos Humanos, da OAB/SP Extra Classe – Sobre o recente caso Mariana Ferrer, a senhora fez uma manifestação emocionada. Para começar, disse que “Passa ano, entra ano e o Judiciário e o Sistema de Justiça continuam a ser grandes violadores dos direitos das mulheres”. Pode nos falar mais sobre isto?Kenarik Boujikian – Aquela audiência, no trecho que circulou nas redes sociais, é de uma tristeza sem tamanho. É dantesco, pois coloca à nu o quanto o Estado é violador dos direitos humanos  que,  sabemos, se dá pela ação dos poderes de Estado. Com o Judiciário, evidentemente, incluído. O que se observa do cotidiano é que o Judiciário ainda legitima a discriminação contra as mulheres, ainda que haja esforços, especialmente na última década, para superação. EC – E como essa legitimação discriminatória se dá?Kenarik – Há uma importante pesquisa, antiga, realizada por Silvia Pimentel, Ana Lucia Pastore Schritzmeyer e Valéria Pandjairdian, chamada Crime ou Cortesia? Abordagem Sociojurídica de Gênero, que analisou processos judiciais de estupro, referentes ao período de 1985 a 1994.  As autoras concluíram que estereótipos, preconceitos e discriminações em relação às mulheres interferem negativamente na realização da Justiça, na qual prevalece um “julgamento moral da vítima em detrimento de um exame mais racional e objetivo dos fatos” e que os “comportamentos da vítima, referentes à sua vida pregressa, são julgados durante o processo, em conformidade com os papéis tradicionalmente determinados a homens e a mulheres”. Ou seja, a pesquisa revelou a “ideologia patriarcal machista em relação às mulheres, verdadeira violência de gênero, perpetrada por vários operadores do Direito”. EC – Além do caso de Mariana Ferrer, a senhora poderia citar outro exemplo importante desse tipo de violação de direitos?Kenarik – Se olharmos os casos em que o Brasil foi demandado na  esfera da Organização dos Estados Americanos (OEA), seja  na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, seja na Corte Interamericana de Direitos Humanos, veremos que em todos eles o Judiciário teve um papel muito significativo na perpetração da violação. No tema mais próximo da audiência, caso de violência contra a mulher, temos o caso da Maria da Penha, no qual o Brasil  foi condenado por negligência e omissão em relação à violência doméstica, pois, em síntese, o Brasil não garantiu um processo justo contra o agressor em um prazo razoável e descumpriu  dois tratados internacionais dos quais é signatário: a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra Mulher, conhecida como Convenção de Belém.Os dois acordos estabelecem obrigações para os estados partes para as mulheres vítimas de violência. EC – Ou seja, a leniência não se dá somente nos casos de violência sexual.Kenarik – O substrato da violência doméstica é o mesmo da violência sexual contra as mulheres: uma sociedade essencialmente patriarcal, na qual as mulheres e seus corpos ainda são considerados objetos de poder e controle dos homens. Nesta perspectiva, entra ano e sai ano, e o patriarcado se faz presente em decisões judiciais, no qual a mulher vítima de violência é que passa a ser julgada. Cansei de ouvir em julgamentos na segunda instância considerações sobre a vítima. Se a pesquisa que falei antes se repetisse na última década, certamente não se apresentaria um quadro tão diferente do que as pesquisadoras encontraram lá atrás. EC – Em seu desabafo no caso da Mariana, a senhora questiona como um juiz pode permitir que uma pessoa seja humilhada da forma como ela foi; como um promotor pode se calar diante de uma postura de completa “subtração de dignidade humana”; e como um advogado pode vilipendiar uma vítima.Kenarik – Pois é! Um juiz jamais pode permitir uma agressão na audiência contra a vítima ou seja contra quem for. Todos os que estão presentes num julgamento, réu, testemunha, vítima, advogado, defensor, funcionário, policial, defensor têm que ser tratados com dignidade. Se um juiz permanece omisso diante de um desrespeito à dignidade da mulher, ele acaba compactuando e exacerbando a agressão, pelo seu silêncio. E o Ministério Público também ficou omisso. Ouviu a agressão como se nada estivesse acontecendo. Nenhuma insurgência. É assustador pensar que isto não é fato isolado, que as mulheres e jovens que sofrem violência sexual são constantemente violentadas sob o manto do Judiciário, que deveria dar acolhimento. EC – Pobres não têm o mesmo tratamento de ricos, e negros, já entram em um júri muitas vezes como suspeitos. Afinal, do que padece o sistema judicial brasileiro em sua opinião?Kenarik – Seria bom lembrar que a sociedade tem um olhar muito específico sobre o Judiciário, que é bom registrar, a propósito de sua pergunta. Uma pesquisa da Datafolha indica a percepção majoritária do povo brasileiro, em todas as variáveis demográficas: 92% da população avalia que a Justiça brasileira trata melhor os mais ricos do que os pobres. Em uma outra pesquisa, da Fundação Getúlio Vargas, há indicação que o Judiciário veio perdendo a confiança da população de 2013 a 2017, em percentual aproximado de 10%. Minha hipótese é que nem todos os juízes sabem qual é seu papel no Estado Democrático de Direito. O juiz deve ser o instrumento da Constituição na defesa incondicional e na garantia efetiva dos direitos fundamentais da pessoa humana. Se você não cumpre este papel, certamente torna o sistema disfuncional. EC – Quais as soluções, em sua opinião, para isso?Kenarik – A pergunta é muito complexa e no pouco espaço que temos só vou dizer que passa, ao menos, pelo conhecimento, consciência e sensibilização acerca da realidade brasileira do projeto de país que se encontra na Constituição Federal. EC – Não podemos conversar com a senhora sem se referir que nesse 23 de novembro um caso, que passou por suas mãos e teve forte impacto na sociedade, completa dez anos. A condenação do então médico Roger Abdelmassih por estupro e atentado violento ao pudor. Pelo fato de na época a senhora ser a juíza do caso, houve ilações de que a dura condenação, 278 anos, teria ocorrido porque a juíza do caso era mulher?Kenarik – Não sei dizer se isto de fato ocorreu. É possível. Mas não acredito que uma pena pode ser maior pelo fato da sentença ser de uma mulher.  Inclusive, meu pensar é que aumentar a quantidade de pena, por si só, não traz nenhum benefício social e não é necessário. Acho as penas brasileiras altas. No caso do Roger Abdelmassih, eu me assustei quando vi a somatória. Nunca tinha fixado uma pena tão alta. Mas só poderia dar aquele resultado, pois, embora fixada a pena de cada um dos crimes no mínimo legal, o fato é que eram muitos crimes cometidos pelo réu. Nunca vi num mesmo processo um indivíduo ser acusado de tantos delitos. Praticamente meia centena e foi condenado em quase todos. Eu limitei o tempo de cumprimento da pena, para todos os efeitos, em 30 anos, mas o tribunal reduziu o total da pena para 181 anos e tirou esta limitação. EC – Na sentença do caso Abdelmassih a senhora fez constar um trecho do relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre Acesso à Justiça para as mulheres vítimas de violência nas Américas. Em síntese, ele apontava já naquela época a baixa utilização do sistema de justiça por parte das mulheres vítimas de violência por desconfiança em relação às autoridades judiciárias. Por que praticamente nada mudou desde então?Kenarik – Não mudou porque o sistema continua o mesmo, estruturalmente. Os atores do sistema de justiça, em grande percentual, continuam com pensamentos e com práticas discriminatórias e machistas. A audiência do caso Ferrer retratou o que acontece em muitas salas de audiência Brasil afora. O Relatório da CIDH mostrava a baixa utilização do sistema de justiça por parte das mulheres vítimas de violência. Quem quer passar por um estupro e chegar na audiência e ser destratada? Quem quer ir para uma delegacia e ser desrespeitada? Se não há um mínimo de confiança sobre o tratamento que vai receber, a situação se torna mais dolorosa ainda. Por este motivo, muitas vítimas sequer registram ocorrência. A sociedade machista perpetua a violência contra as mulheres e o Judiciário machista retroalimenta este quadro. EC – Chama a atenção a senhora dizer que não tem ilusões com o nosso sistema de justiça e que “o esgarçamento democrático atinge tudo e todos”. A senhora pode falar sobre esse esgarçamento e as razões desse pessimismo?Kenarik – Não é pessimismo. Todos que me conhecem sabem que sou, ao contrário, uma pessoa super otimista. Para ser mais clara, estava me referindo a duas questões. Primeiro sobre o papel do Judiciário no Estado Democrático de Direito e, não ter ilusões, me remete ao tempo que ingressei na magistratura, que, por diversos fatores, me faziam crer num potencial transformador. Com o tempo de exercício da judicatura, com a experiência e uma melhor compreensão, nos dias de hoje, entendo melhor o funcionamento deste poder e sei dos limites estruturais e sociais. Tenho clareza que o Judiciário referenda inúmeras violações, porém, também consigo ver os avanços que o Judiciário pode fazer e muitas vezes faz. EC – Limites de que tipo?Kenarik – Veja, por exemplo, no tema da eleição do Bolsonaro. Até hoje o Judiciário não deu uma decisão à altura dos fatos referentes às fake news, e todo mundo sabe do desvirtuamento da democracia que ocorre com este expediente. Outro aspecto que está contido neste esgarçamento democrático diz respeito ao período que o Brasil vive, o pós-golpe chamado de impeachment, no qual se implementa um projeto de país que se distancia do projeto  da nossa Constituição Federal. Atinge todos os aspectos da democracia e, por consequência, todas as pessoas. Veja no tocante ao princípio da igualdade. Não é que tínhamos a igualdade material implementada, na questão de gênero, mas tínhamos um fazer para caminhar neste sentido. EC – Tínhamos? Não temos mais?Kenarik – Há na presidência do Brasil um machista, preconceituoso, homofóbico. Ele e toda sua equipe só fazem destilar posturas de retrocessos. Deve lembrar que ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, em junho de 2019, justificou o abuso sofrido pelas meninas da Ilha de Marajó, no Pará, dizendo que era por falta de calcinhas. O ex-ministro Sergio Moro, na solenidade dos 13 anos da Lei Maria da Penha, que criou mecanismos para coibir a violência contra a mulher , declarou que homens se sentem “intimidados pelas mulheres”. Segundo ele, por conta disso, parte dos homens “recorre, infelizmente, à violência”. Moro reproduziu e reverberou o discurso da violência contra as mulheres  ao impingir a elas a violência praticada pelos homens. EC – Realmente são atitudes absurdas.Kenarik – Gravíssima também a política deste governo, na órbita internacional, pois o Brasil passou a rejeitar na ONU o termo “igualdade de gênero” ou “educação sexual” em resoluções e textos oficiais. Algumas ONGs solicitaram, sob o manto da Lei de Acesso à Informação, documentos que explicassem o motivo, a autoria direta etc., porque o governo brasileiro tomou esta postura. E a informação que receberam é: não receberão nenhuma informação, pois todos os documentos estão censurados até 2024. As razões para rejeitar o acesso foi, pasme, risco à segurança nacional e risco para a posição negociadora do Brasil. Organizações tiveram que ingressar no Judiciário para ter informações. EC – Como diria um ministro do Supremo Tribunal Federal, tempos estranhos, não?Kenarik – E não é só o governo federal que, por certo, faz reverberar em outras instâncias e esferas. Importante lembrar de fatos que estão nesta mesma lógica. O governador do estado de São Paulo, João Doria , em setembro de 2019, mandou recolher das escolas estaduais material didático que tratava de identidade de gênero, em apostila de Ciências destinada aos alunos do 8º ano do ensino fundamental, que têm cerca de 13 anos. O material explica os conceitos de sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual, além de trazer orientações sobre gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. E o governador bradou que puniria os responsáveis. A determinação do governador foi cassada e uma juíza do Tribunal de Justiça de São Paulo determinou a devolução do material. EC – Teve o caso da Bienal do Rio de Janeiro tambémKenarik – Sim. No mesmo mês e ano, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, ordenou a apreensão de uma História em Quadrinhos na Bienal do Livro que trazia o desenho de dois personagens homens se beijando. Esta determinação acabou por ser cassada em uma instância do Judiciário, que inicialmente referendou a ação do prefeito. Nesses dois últimos exemplos, o Judiciário atuou de forma a fazer o avanço democrático. EC – Falamos de Mariana Ferrer, Maria da Penha, das violações de seus direitos. O que diria para finalizar?Kenarik – De todo este quadro, uma coisa é certa, é a luta das mulheres, das feministas, que conseguiu os avanços obtidos até hoje, na esfera da dignidade humana. Artigo publicado originalmente no site Extra Classe no dia 07 de dezembro de 2020.  

Lawfare contra o Direito do Trabalho*

Depois da leitura dos ensaios publicados na série “Trabalho Além da Barbárie”  com assento semanal no irrequieto eletrônico Justificando, fiquei a refletir sobre qual seria a novidade a ser apresentada, considerando o fato de ter a vanguarda juslaboralista descortinado os movimentos empreendidos pelo capital para solapar as diminutas mas relevantes conquistas sociais alcançadas pela classe trabalhadora, no plano jurídico-normativo sob o espectro da democracia formal burguesa. Tentarei contribuir com o debate revelando que na cotidiana luta de vida e morte do Direito do Trabalho, cumprindo o seu papel histórico classista, o Judiciário agarra-se sem cerimônias à morte do juslaboralismo em nome da condensação dos interesses materiais da burguesia[1].  E assim me conduzirei sob a perspectiva da existência de uma guerra jurídica no Brasil contra o Direito Constitucional do Trabalho, lente crítica objeto de pesquisa minha em curso perante à Faculdade de Direito da UFMG.  Não é novidade que o Judiciário, como regra geral do modo peculiar de atuação nos momentos de embates econômico-políticos mais significativos entre o capital e o trabalho, assume inegável protagonismo no desmantelamento impiedoso da essência de normas trabalhistas aptas a impedir mortes e mutilações obreiras. Isso acontece desde a atuação dos juízes de paz ingleses, no  auge da II no Revolução Industrial, até chegar aos dias atuais no Brasil de lawfare contra o Direito do Trabalho. Aliás, aqui, diga-se de passagem, o Judiciário sempre teve enorme dificuldades para fazer cumprir garantias e direitos assegurados aos segmentos mais frágeis, diante do contínuo esvaziamento interpretativo das normas jurídicas. A teoria crítica da história sociológica chega a descrever o direito oficial, quase sempre boicotado, e o direito não-oficial, o direito das elites respeitado pelos órgãos da Justiça, a exemplo da manutenção do tráfico negreiro durante décadas, no século XIX, após a sua proibição legal, bem como a tortura, o açoite e outras formas de violência praticadas contra seres humanos, por via de regra, contando com o mais absoluto silêncio quando não o respaldo da Justiça[2].  Não se ignora o fato de que Justiça Política e Lawfare estejam associados originariamente ao uso de procedimentos legais para fins políticos, na aplicação desvirtuada ou manipulada do direito e do processo penal[3]. A justiça política é configurada a partir de uma série de procedimentos judiciais supostamente amparados no ordenamento jurídico para, ao fim e ao cabo, derrotar os inimigos incômodos do sistema ou de governos, com a violação de direitos e garantias fundamentais.  Essa compreensão lato sensu mostra-se apropriada para apontar peculiar forma de justiça política assim caracterizada por intermédio de sucessivos e sincronizados atos de qualquer Suprema Corte voltados para, no exercício judicante da interpretação constitucional e em atendimento aos anseios burgueses, inverter, de maneira sistemática e organizada[4], a aplicação do Direito do Trabalho. Nesse sentido, é razoável cogitar que todo e  qualquer movimento jurisprudencial tendente a inverter o juslaboralismo para, na prática, negá-lo vigência, fundado em iguais ou semelhantes premissas materiais e procedimentais àquelas adotadas no âmbito penal configuradoras do Lawfare, traz ao cenário brasileiro a justiça política do capital contra o trabalho e o Direito do Trabalho.  Lembremos que o STF, entre 2007 e 2020, proferiu mais de três dezenas  de decisões aniquiladoras dos fundamentos do Direito do Trabalho, revisando substancialmente a sua jurisprudência moderada construída após a vigência da Constituição(1988 a 2006). Entre tantas outras sentenças demolidoras de direitos do trabalho, o Tribunal de maior expressão no Brasil emitiu os seguintes pronunciamentos, entre 2007 e 2020:1)autorizou a terceirização generalizada;2)respaldou a prevalência do negociado sobre o legislado para liquidar direitos obreiros;3)suspendeu o texto constitucional em tempos de pandemia do coronavírus para admitir a renúncia de direitos pelos empregados, sem nenhuma assistência sindical, incluindo a redução salarial e a suspensão do contrato de trabalho; 4)autorizou a jornada extravagante de 12 horas por dia; 5) liquidou praticamente todas as fontes de sustentação material dos entes sindicais obreiros;6)limitou o alcance da substituição processual pelos sindicatos;7)mitigou os direitos dos empregados e ex-empregados das empresas em regime de recuperação judicial ou falência;8)reduziu parte substancial da expressão monetária do adicional de insalubridade;9)interferiu decisivamente, durante vários anos, em política governamental de combate ao trabalho escravo, em atendimento à  pretensão de entidade empresarial, quanto à ausência de formação e  divulgação da “lista suja”; 10) exaltou a terceirização na atividade fim como mecanismo de redução dos custos com o trabalho, inviabilizando inclusive qualquer isonomia entre empregados de atribuições iguais;11)suprimiu em até 25 anos o direito obreiro ao FGTS não recolhido pelas empresas; 12)podou praticamente o exercício do direito fundamental de greve por servidores públicos; 13)criou a jurisprudência dos direitos fundamentais do capital contra os direitos laborais que “atrapalham o desenvolvimento do país”, com o expresso reconhecimento do mecanismo da terceirização generalizada como direito fundamental constitucional da burguesia, sendo a ADPF instrumento constitucional de natureza processual adequado para se voltar contra decisões limitadoras da terceirização, assim como a ADPF serve para proteger o direito de empresas estatais contra os seus empregados, quanto ao pagamento das dívidas trabalhistas por precatório, além de admitir a ADPF patronal para discutir a política governamental de combate ao trabalho escravo;14)fez do julgamento da via estreita processual de embargos declaratórios a porta aberta para a terceirização generalizada e para reduzir as garantias de empregados públicos contra as dispensas imotivadas; 15) consagrou a espoliação da competência da Justiça do Trabalho como fator consequencialista de inefetividade dos fundamentos do juslaboralismo;16) anunciou que deve transformar em pó os créditos trabalhistas objeto de debate judicial, com o fim dos juros de mora, embora esta última matéria sequer integre o objeto de julgamento no âmbito das ações respectivas, bem como apontou para a consagração da redução  drástica da correção monetária; 17) indicou o extermínio da ultratividade das normas coletivas e 18) e apontou que  seguirá adiante em sua contrarreforma trabalhista, quando examinará outras ações judiciais em curso capazes de exponenciar o grau de extermínio do direito do trabalho e de seu processo, incluindo a negação de acesso à Justiça do Trabalho pela classe trabalhadora e o aval ao selvagem contrato intermitente.  Tais decisões judiciais, se não bastasse o caráter destrutivo do Direito do Trabalho contido em cada pronunciamento, influenciaram na ação do Executivo e do  Legislativo para aprofundar os níveis de desregulação das relações de trabalho, a partir das Leis13.429/2017,13.467/2017,13.874/2019 14.020/2020 e de medidas provisórias.  Essa guerra jurídica contra o Direito do Trabalho, aprofundada entre 2016 e 2020, contudo, viola a Constituição da República  e toda a ordem jurídica.  Sob o olhar crítico dos Direitos Humanos, referidas decisões judiciais realizam o distrato do pacto celebrado no processo constituinte de 1986-1988 quanto aos direitos  do trabalho e aos seus princípios, sem a existência de quadro jurídico apto a autorizar a inegável façanha.  Não se sugere que seja algo completamente inesperado ver o Judiciário flexibilizar conquistas civilizatórias da classe trabalhadora, salvo se acreditássemos no idealismo da teoria do “direito a ter direitos” como fato consumado do processo de acúmulo jurídico. Ao contrário, os direitos do trabalho como direitos humanos de caráter econômico, social e cultural, inegavelmente, são construídos, mantidos, destruídos ou ampliados como produtos culturais resultantes de lutas políticas classistas[5]. Para além da revelação dos sintomas de uma grave crise de deficit da democracia constitucional, a jurisprudência do STF em matéria trabalhista expõe a necessidade de recorrer urgentemente à Constituição para corrigir os equívocos, quanto à interpretação de seu texto e, por conseguinte, dar máxima efetividade aos direitos fundamentais da classe trabalhadora contra o ideário neoliberal. Sabemos como se desenvolvem as lutas permanentes entre o capital e o trabalho, no histórico confronto entre maximização de lucros e dignidade laboral. Necessitamos, na atual quadra, enfrentar a metodologia judicial tendente a liquidar o Direito do Trabalho, a guerra jurídica estruturada para o retorno das relações de trabalho no Brasil ao século XIX, agora se processando sob roupagem social adequada ao desenvolvimento das forças produtivas desses tempos de capitalismo guiado pela financeirização, pela robótica e pelo insaciável apetite por acumulação de riquezas. - Notas: [1] MASCARO, A. L. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013. [2]COMPARATO, F. K. O Poder Judiciário no Brasil. 16 jun. 2015. Disponível em: https://reformapolitica.org.br/2015/06/19/o-poder-judiciario-no-brasil-por-fabio-konder-comparato/. Acesso em: 4 dez. 2020. [3] KIRCHHEIMER, Otto. Empleo del procedimento legal para fines políticos. Granada: Comares, S.L, 2001. [4] BERCOVICCI, G.; MASSONETTO; L.F. A constituição dirigente invertida: a blindagem da constituição financeira e a agonia da constituição econômica. Coimbra: Separata do Boletim de CE da Univ. Coimbra, 2006.  [5]HERRERA FLORES, J. El processo cultural – materiales para la criatividad humana -. Sevilla: Aconcagua Libros, 2005.  * Grijalbo Fernandes Coutinho é desembargador do trabalho do TRT 10(DF e TO), membro da AJD.  Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 03 de dezembro de 2020.

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