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CNJ e a novidade do controle administrativo de ato judicial

No dia 23 de maio, o sítio eletrônico do Conselho Nacional de Justiça estampou a seguinte manchete: “Corregedor pede informações sobre decisão em desconformidade com o CNJ” [1]. A manchete, em possível ato falho, entrega juízo de valor já formado: algum magistrado tomou decisão em desconformidade com ato ou decisão do CNJ.Avançando-se na leitura da notícia, constata-se que o Corregedor Nacional de Justiça “determinou a instauração de pedido de providência para que o desembargador Luiz Souto Maior (sic), membro do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT15), preste esclarecimentos sobre possível desconformidade verificada em decisão de sua relatoria contra o que foi decidido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em procedimento de controle administrativo (PCA), que declarou a nulidade dos artigos 7º e 8º do Ato Conjunto TST/CSJT/CGJT 1/2019”. A determinação derivou de provocação do Corregedor do Tribunal Superior do Trabalho que, “apesar do indeferimento de petição inicial de correição parcial (tipo de recurso) (sic) contra decisão do magistrado e diante da relevância do tema, decidiu dar ciência ao corregedor nacional". Tentemos entender.   A Lei nº 13.467/2017 introduziu o § 11 no art. 899 da CLT, para permitir que o depósito recursal possa ser substituído por fiança bancária ou seguro garantia judicial. Em 2019, foi publicado o Ato Conjunto TST/CSJT/CGJT 1/2019, dispondo sobre o uso do seguro garantia judicial e fiança bancária em substituição a depósito recursal e para garantia da execução trabalhista. Os artigos 7.º e 8.º do referido ato dispunham [2]:   Art. 7º O seguro garantia judicial para execução trabalhista somente será aceito se sua apresentação ocorrer antes do depósito ou da efetivação da constrição em dinheiro, decorrente de penhora, arresto ou outra medida judicial. Parágrafo único. Excetuando-se o depósito e a efetivação da constrição em dinheiro decorrente de penhora, arresto ou outra medida judicial, será permitida a substituição, por seguro garantia judicial, de bem penhorado até sua expropriação, desde que atendidos os requisitos deste Ato Conjunto e haja anuência do credor (§ 2º do art. 835 do CPC); Art. 8º Após realizado o depósito recursal, não será admitido o uso de seguro garantia para sua substituição.   Em 27 de março de 2020, o CNJ, nos autos do procedimento de controle administrativo nº 0009820-09.2019.2.00.0000, declarou, por maioria, a nulidade dos arts. 7º e 8ª do Ato Conjunto TST/CSJT/CGJT 1/2019.   O Desembargador Jorge Luiz Souto Maior, do Tribunal Regional do Trabalho da 15.ª Região, em 24 de abril, indeferiu pedido de empresa que pleiteava a substituição do depósito recursal já efetuado nos autos por apólice de seguro garantia, o que fez em alentada decisão, da qual destaco o que me parece o cerne do entendimento do magistrado [3]:   De forma mais clara, a fiança bancária e o seguro garantia judicial constituem modalidade alternativa à penhora de dinheiro, servindo, pois, à garantia plena da execução, com o requisito, inclusive, do acréscimo de 30% do valor da execução. Não existe, pois, mesmo por meio da aplicação do § 11 do art. 899 da CLT, com a redação que lhe fora concedida pela Lei n. 13.467-17, a possibilidade de o empregador simplesmente apresentar um seguro judicial que meramente garanta o valor do depósito recursal, como quis acreditar a 2ª reclamada.   O Desembargador Souto Maior, em nenhum momento, faz referência ao ato conjunto acima mencionado, muito menos aos artigos 7.º e 8º, ou mesmo à decisão do CNJ.   Inconformada, a empresa requereu correição parcial ao Corregedor Geral do TST que, embora tenha indeferido a petição inicial, houve por bem determinar a expedição de ofício ao Corregedor Nacional, a que se apreciasse se o desembargador teria proferido decisão contrária ao quanto decidido pelo CNJ no procedimento de controle administrativo já mencionado.   Foi então que o Corregedor Nacional instaurou “procedimento prévio de apuração para verificação de eventual violação dos deveres funcionais por parte de membro do Poder Judiciário, em especial no que se refere a possível desconformidade com o que foi decidido nos autos do Procedimento de Controle Administrativo nº 0009820-09.2019.2.00.0000” e determinou a intimação do Desembargador para que, no prazo 15 (quinze) dias, preste informações a respeito dos fatos [4].   Não é propósito deste texto tratar da esdrúxula correição parcial, prevista no Capítulo IV do Regimento Interno do TST e sim da inovação sugerida pelo Corregedor do TST e acolhida pelo Corregedor Nacional: o controle administrativo de ato judicial.   Como poderia o Desembargador Souto Maior ter desafiado, em decisão judicial, uma decisão tomada pelo CNJ em procedimento de controle administrativo? E em que consistiria a vislumbrada inconformidade? Como a decisão teria violado dever funcional do magistrado?   Ora, nos termos do art. 103-B, § 4.º, da Constituição da República, compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes.   Não está em discussão a possibilidade de o CNJ, em procedimento de controle administrativo, anular ato do Tribunal Superior do Trabalho, do Conselho Superior da Justiça do Trabalho e da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho. A anulação provocou o desaparecimento de eventuais efeitos jurídicos dos artigos anulados. Nada mais.   O pedido apreciado pelo desembargador Souto Maior estava fundado no art. 899, § 11 da CLT. O magistrado, interpretando o dispositivo, indeferiu o pleito. Trata-se de decisão judicial fundamentada, construída a partir do livre convencimento motivado do juiz, que está na base da independência judicial, a rigor, independência política do juiz, que consiste na liberdade de exercer a jurisdição somente se subordinando às leis constitucionalmente válidas e à sua própria consciência.   A independência judicial é estabelecida constitucionalmente em duas vertentes: objetivamente, relacionada ao Judiciário como Poder do Estado, como instituição, consoante art. 2º da Carta Magna, e subjetivamente, em relação aos membros do Poder Judiciário, os juízes.   No direito comparado, encontraremos Constituições (v.g, Alemanha e Itália) que afirmam, expressamente, o princípio da independência judicial, indicando que o juiz só está submetido ao Direito. No Brasil, a Constituição não a explicita na Carta Política. A rigor, entre nós, o princípio da independência judicial foi hospedado pela Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979, que impõe a independência judicial como um dos deveres do magistrado.   Isso não quer significar que a Constituição seja alheia à independência judicial. Ela decorre, implicitamente, da própria natureza da função judicial e se funda no princípio do devido processo legal, o que lhe atribui força de preceito constitucional. Conforme leciona Isabella Carvalho, o princípio do livre convencimento do juiz – ou princípio da independência das decisões - confere ao magistrado liberdade para embasar suas decisões, dentro dos limites impostos pela lei e pela Constituição, levando em conta sua livre convicção pessoal motivada, cabendo ao mesmo, ainda, decidir a lide à luz das provas e argumentos colacionados durante a instrução processual.   “Assim, o princípio do livre convencimento do juiz não dispõe de uma solução apriorística para as situações, pois cada litígio, em particular, será resolvido pelo magistrado, segundo o seu entendimento, sem muitas barreiras ou rigorosos conselhos legais. Logo, a liberdade conferida ao magistrado constitui-se em premissa básica no sistema brasileiro, devendo o magistrado possuir extensa abertura para a formação do seu convencimento, interpretando a totalidade do ordenamento jurídico com ampla liberdade.” [5]   Disso não destoa o Professor José Rogério Cruz e Tucci [6]:   [...] sem a incumbência de ater-se a um esquema rígido ditado pela lei (sistema da prova legal), o juiz monocrático, bem como o órgão colegiado, ao realizar o exame crítico dos elementos probatórios, tem a faculdade de apreciá-los livremente, para chegar à solução que lhe parecer mais justa quanto à vertente fática.   De fato, cabe ao juiz formar o seu convencimento de forma livre e decidir segundo o seu convencimento, apreciando a prova com absoluta autonomia e, principalmente, dando à ordem jurídica a interpretação que lhe parecer adequada, com total independência. É dada ao juiz a liberdade para construir a solução do litígio, após se convencer quanto ao direito das partes.   Isto porque a persuasão racional está rigorosamente contida no princípio do devido processo legal, consagrado no art. 5º, LIV, da Constituição Federal.   Assim sendo, ao tolher-se a aplicação do livre convencimento motivado, estar-se-ia a ferir de morte o princípio do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV) e, em decorrência, o próprio Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, caput [4]). É a razão porque a persuasão racional, nos moldes circunscritos pelo art. 131 do CPC e art. 93, inciso IX da CF, consiste num direito fundamental do cidadão. [7]   A Organização das Nações Unidas (ONU) vem atuando no sentido de realçar a independência dos juízes, com destaque para dois documentos produzidos: Princípios Básicos sobre a Independência do Judiciário e Princípios de Bangalore sobre a Conduta Judicial.   Em relação ao primeiro texto, cumpre ressaltar o seguinte princípio: “os juízes devem decidir todos os casos que lhes sejam submetidos com imparcialidade, baseando-se nos fatos e em conformidade com a lei, sem quaisquer restrições e sem quaisquer outras influências, aliciamentos, pressões, ameaças ou intromissões indevidas, sejam diretas ou indiretas, de qualquer setor ou por qualquer motivo”. Já em relação ao segundo, os seguintes: “a independência judicial é um pré-requisito do princípio da legalidade e uma garantia fundamental da existência de um julgamento justo. Em consequência disso, um juiz deverá defender e demonstrar a independência judicial tanto em seus aspectos individuais como institucionais; o juiz deverá exercer sua função judicial de forma independente, partindo de sua avaliação dos fatos e em virtude de uma compreensão consciente da lei, livre de qualquer influência externa, de induções, pressões, ameaças ou interferências, sejam diretas ou indiretas, provenientes de qualquer fonte ou por qualquer razão.”[8]   Em arremate, a opinião de Isabella Carvalho [9]:   O magistrado é quem deve traçar a direção a seguir para a formação do seu convencimento, analisando caso a caso, já que o Direito não é uma ciência exata. Ele deve ter preservada a sua autonomia intelectual, evitando assim retirar-lhe o seu entendimento, a sua aptidão de observação, o seu desempenho interpretativo, a sua função social, para que o mesmo tenha garantida toda a sua essência profissional. [...] a remoção de sua função jurisdicional, afronta de forma incalculável e danosa todo o sistema jurídico pátrio, principalmente o constitucional e o processual, restando como principais prejudicados os próprios jurisdicionados.   Assim, pretender impor aos magistrados balizamentos vinculantes representa afronta aos princípios da independência judicial, do livre convencimento do magistrado e, em última análise, do devido processo legal, restando, pois, manifestamente inconstitucionais, por ofensa direta ao inciso LIV, do art. 5.º, da Constituição Federal.   Se isso já é grave quando se exige do juiz a observância do pragmatismo jurídico, fundado na hierarquia e na disciplina judiciária, na tentativa de lhe impor a jurisprudência dos órgãos judiciais a ele superiores, o que dizer da pretensão de interferência nas decisões judiciais por órgão administrativo?   Não pode haver dúvida de que o Desembargador Souto Maior não descumpriu, com sua decisão judicial, qualquer decisão administrativa do CNJ. A decisão mencionada na notícia do sítio do CNJ, por sua vez, tem conteúdo negativo, pois anulou disposições de Ato do TST/CSJT/CGJT. (Ironicamente, o desembargador deu cumprimento ao disposto no art. 3.º do Ato Conjunto 1/2019). Ao decidir a matéria que lhe foi submetida, interpretando livremente a lei, à luz dos princípios constitucionais, longe de o descumprir, honrou o seu dever funcional.   Então qual terá sido o propósito de provocar o Corregedor Nacional com esse tipo de questão? E, mais ainda, qual será a razão de se instaurar procedimento administrativo de inviabilidade tão evidente? Por cima, publicá-la como notícia no sítio do CNJ e estampar manchete que já afirma o cometimento de infração?   Estratégias de constrangimento, ameaças e tentativas de imposição de interpretações pré-definidas não funcionarão e não afastarão os magistrados do cumprimento do seu dever de respeito às normas constitucionalmente válidas, a partir da livre intepretação dos fatos e da ordem jurídica. Estamos atentos. O controle administrativo de atos judiciais não passará.   REFERÊNCIAS [1]https://www.cnj.jus.br/corregedor-pede-informacoes-sobre-decisao-em-desconformidade-com-o-cnj/ [2] https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/150210 [3]file:///C:/Users/Juiz/Downloads/Pet.%20e%20decis%C3%A3o%20substitui%C3%A7%C3%A3o.pdf [4]https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/05/InstauracaoPPCorregedoria-TRT15-23052020.pdf [5] Cf. CARVALHO, Isabella Rodrigues Rocha de. (2008) A súmula vinculante em face ao princípio do livre convencimento do juiz. Disponível em http://www.lfg.com.br. [6] TUCCI, José Rogério Cruz e. (1987). A Motivação da Sentença no Processo Civil. São Paulo: Saraiva. [7] Cf. MANOEL, Márcia dos Anjos. (2014) O Princípio do livre convencimento motivado como consectário do devido processo legal no Estado democrático de direito. Disponível em http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,o-principio-do-livre-convencimento-motivado-como-consectario-do-devido-processo-legal-no-estado-democratico-de,50389.html. [8] Cf. LIMA JÚNIOR (Org.). Independência dos Juízes no Brasil – Aspectos relevantes, casos e recomendações. Recife: Bargaço, 2005. p. 223-233. [9] CARVALHO, op. cit.  Artigo publicado originalmente no site  Democracia e justiça no dia 25 de maio de 2020. * Juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região – Pernambuco (TRT-6) Hugo Cavalcanti Melo Filho, membro da AJD

Superencarceramento, contêineres e congêneres

Iniciada a discussão sobre a flexibilização de normas de arquitetura para isolamento de pessoas em estabelecimentos prisionais pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), a Associação Juízes para a Democracia (AJD) utilizou esta oportunidade para, através de um debate virtual, trazer à tona temas como superencarceramento, necropolítica e aplicação da lógica neoliberal no sistema prisional brasileiro. O debate, realizado virtualmente na manhã do dia 22 de maio, contou com participação de Ana Carolina Bertolamei Ramos, juíza da Vara de Execuções Penais em Curitiba, de André Tredinnick, juiz da Vara de Família do Rio de Janeiro, João Marcos Buch, juiz da Vara de Execuções Penais em Joinville (SC) e Simone Schreiber, desembargadora do Tribunal Regional Federal da 2a Região e professora de processo penal da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). As falas foram marcadas pelo reconhecimento de uma realidade carcerária precária e violadora de direitos que preexiste à COVID-19 e que é agravada e posta em foco pela pandemia provocada pelo vírus. O juiz João Marcos Buch relatou sua experiência acompanhando os presídios superlotados, sem acesso ao mínimo de higiene necessária e com uma população já vulnerável física e psicologicamente por estas condições e apontou como as medidas que flexibilizam padrões de arquitetura para estruturas de isolamento, ainda que não sejam contêineres, vão no sentido de aprofundar essas violações de direitos. A denúncia da violação de direitos no sistema prisional marcou as manifestações dos palestrantes. Enquanto a desembargadora Simone Schreiber pontuou a inconstitucionalidade do estado de coisas no sistema carcerário já reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF); o juiz Andre Treddnick ressaltou a lógica da necropolítica, racista, que dirige o sistema prisional e relacionou o aviltamento das condições humanas com a proposta de encarceramento em contêineres como a realidade dos navios negreiros. As críticas foram também destinadas ao próprio Poder Judiciário, que possui responsabilidade pela realidade de superencarceramento, com um quadro de juízas e juízes que, condicionados a determinar prisões, parecem não se importar com os efeitos práticos de suas decisões, ainda que saibam as consequências, reconhecidamente inconstitucionais, de suas decisões que jogam seres humanos num sistema violação de direitos e garantias fundamentais. A juíza Ana Carolina Bartolamei Ramos reforçou a desumanização do sistema prisional, demonstrando como a lógica neoliberalizante atua no sistema de justiça, preocupado em encarcerar cada vez mais, sem oferecer respostas dignas no momento da pandêmica, chegando ao ponto de sugerir colocar seres humanos em locais ainda mais precários dos que já existentes. O CNPCP não autorizou o uso de contêineres, mas na era da autoverdade, quando decisões são tomadas com base em opiniões e não em padrões legais e constitucionais, autorizou seus congêneres, como explicou a juíza. Assista ao debate na íntegra:  Artigo publicado originalmente no site  Estadão no dia 25 de maio de 2020. *  Juíza de Direito, e do Conselho Executivo da AJD  

O vídeo da reunião de 22 de abril pode ser um libelo contra Bolsonaro

A repercussão da divulgação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril de 2020 é reveladora do grave momento brasileiro. Os apoiadores de Bolsonaro comemoraram a atuação do “mito” e os opositores, em sua grande maioria, consideraram que a gravação é, na verdade, uma peça publicitária para o presidente, inclusive com vistas à reeleição, em 2022. Estarrecedor. O injustificável fato de que, num momento de catástrofe decorrente da pandemia de covid-19, não se tenha discutido qualquer plano emergencial para enfrentamento do problema, já seria suficiente para indignar todos os cidadãos, em qualquer lugar do mundo, menos no Brasil. Mas não ficou nisso. Ao contrário, o que se ouve são críticas pesadas e ameaças de prisão aos prefeitos e governadores que estão adotando providências necessárias e a revolta do Presidente com a causa mortis registrada no atestado de óbito de um policial rodoviário. Para além disso, o conteúdo do vídeo é gravíssimo. Em menos de duas horas, à primeira vista, diversos crimes de responsabilidade teriam sido praticados pelo presidente e por alguns ministros de Estado, capazes de conduzi-los ao impeachment, o que se evidencia pelo cotejo das disposições da Lei n.º 1.079/1950 com as falas captadas. Comecemos pela inacreditável vulgaridade demonstrada pelo chefe de Governo e por alguns ministros, de fazer corar o mais libertino dos irreverentes. Bolsonaro profere dezenas de palavrões e expressões chulas, inclusive para se referir a autoridades públicas. Comportamento inaceitável em qualquer ambiente civilizado, quanto mais em uma reunião da cúpula do governo. Mais do que isso, nos termos do art. 9.º, 7, da referida lei, configura crime de responsabilidade o presidente da República “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”. Os trechos que foram suprimidos por determinação do ministro Celso de Melo, já se sabe, correspondem a ataques do Presidente, do Ministro das Relações Exteriores e do Ministro da Economia à República Popular da China. Acusa-se a China de pretender dominar o Brasil, de haver infiltrado espiões no país, de ser responsável pela pandemia, entre outras coisas. Ocorre que, nos termos da lei de impeachment, é crime “cometer ato de hostilidade contra nação estrangeira, expondo a República ao perigo da guerra, ou comprometendo-lhe a neutralidade” (art. 5.º, 3). Independentemente de comprovarem ou não as acusações do ex-ministro Sérgio Moro, aspecto que será definido, a tempo e a modo, pelas autoridades competentes, as falas do presidente revelam, sem nenhuma dúvida, repreensão pública a Moro (e aos ministros militares e chefe do GSI, por razões semelhantes) pelo fato de não ter recebido informações que queria da Polícia Federal, além de demonstrarem a determinação em interferir em estruturas da Administração, para proteger familiares e amigos, com ameaças de exoneração. Segundo a Lei, é crime de responsabilidade “expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição” (art. 9.º, 4). Também o é “usar de violência ou ameaça contra funcionário público para coagi-lo a proceder ilegalmente, bem como utilizar-se de suborno ou de qualquer outra forma de corrupção para o mesmo fim” (art. 9.º, 6). O presidente assiste ao ministro da Educação qualificar de vagabundos e propor a prisão dos ministros do Supremo Tribunal Federal e não adota qualquer providência. A fala do ministro configura, em tese, crime comum e infração disciplinar grave. A omissão do presidente, na ocasião e depois, configuraria a hipótese do art. 9.º, 3, da Lei de Impeachment: “não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”. Na mesma linha, o ministro do Meio Ambiente afirmou que queria aproveitar o momento de pandemia da Covid-19 para passar reformas infralegais, “simplificando normas, de Iphan, de Ministério da Agricultura, Ministério do Meio Ambiente, ministério disso, ministério daquilo”, relativas à proteção do patrimônio natural, histórico e cultural, todas de status constitucional, e não demonstrou discordância. De todas as declarações, a mais grave, entretanto, coube ao presidente da República e merece transcrição: “Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua. (…) Aí, que é a demonstração nossa, eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta! Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! E não dá pra segurar mais! Não é? Não dá pra segurar mais.” (…) É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado”. Os ditadores a que se refere o presidente são os prefeitos e governadores que decretaram isolamento social, que seria a ditadura. E a solução apresentada é armar a população para que ela possa se insurgir contra as autoridades municipais e estaduais, ir para a rua e resistir. O que se propõe, abertamente, é a insurgência armada da população, contra prefeitos e governadores! A determinação presidencial configuraria, em princípio, vários crimes de responsabilidade tipificados na Lei n.º 1.079/50: *praticar contra os poderes estaduais ou municipais ato definido como crime neste artigo (art. 6.º, 7); * intervir em negócios peculiares aos Estados ou aos Municípios com desobediência às normas constitucionais (art. 6.º, 8); *subverter ou tentar subverter por meios violentos a ordem política e social (art. 7.º, 6); *praticar ou concorrer para que se perpetre qualquer dos crimes contra a segurança interna, definidos na legislação penal (art. 8.º, 4); *permitir, de forma expressa ou tácita, a infração de lei federal de ordem pública (art. 8.º, 7); *expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição (art. 9.º, 4). O fato de quase ninguém haver falado em nada disso é sintomático. Significa que Bolsonaro conseguiu naturalizar o crime de responsabilidade. É como se a ele fosse permitido fazer e dizer o que bem entende, porque, supostamente, há forças mais ou menos ocultas a suportá-lo. As instituições democráticas, diferentemente do que se afirma, todos os dias, aqui e ali, não estão funcionando adequadamente. Prova disso é a nota divulgada pelo general Augusto Heleno, ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional, ameaçando o Supremo Tribunal Federal (terá sido a enésima ameaça de militares ao STF), caso viesse a ser determinada a requisição do telefone celular do Presidente. Crime de responsabilidade escancarado (usar de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou jurado, a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício – art. 6.º, 6), praticado por Heleno, pelo ministro da Defesa, ao chancelar a nota e, potencialmente, pelo próprio presidente, ao avisar que não entregará o telefone em nenhuma possibilidade. Para quem testemunhou o impeachment de uma presidente por suposta “pedalada fiscal”, reduzir o conteúdo do vídeo à discussão quanto à comprovação ou não das acusações de Moro (pusilânime, nada disse na reunião em face do que ouviu), tudo parece absurdamente estranho. Surreal.  Artigo publicado originalmente no site  Viomundo no dia 23 de maio de 2020. *Doutor em Ciência Política, Professor de Direito da UFPE, Juiz do Trabalho no Recife e membro da Associação dos Juristas pela Democracia.

Do ódio em tempos de pandemia

O festejado historiador Yuval Harari, em recente entrevista, afirmou que o maior perigo, na pandemia do COVID-19, não é o vírus em si, já que a humanidade – segundo o pensador – já dispõe de todo conhecimento e das ferramentas tecnológicas para vencê-lo. Para Harari: “O problema realmente grande são nossos demônios interiores, nosso próprio ódio, ganância e ignorância”.[1] De fato, a preocupação de Harari parece ter sentido, porquanto, paralelamente às terríveis notícias sobre o exponencial crescimento do número de pessoas infectadas, hospitalizadas e de óbitos, em razão da pandemia do COVID-19, temos sido expostos diariamente a uma outra ordem de fatos que, a princípio, parecem escapar à racionalidade. Cenas de profissionais da saúde agredidos por familiares de pessoa falecida por indicar a COVID-19 como “causa mortis” em atestado de óbito[2]; discursos de ódio e extermínio de pessoas idosas[3]; profissionais da saúde humilhados publicamente enquanto protestavam de forma pacífica por melhores condições de trabalho[4]; manifestantes a glorificar e debochar da morte de vítimas da COVID-19 em macabra coreografia com caixão em plena avenida Paulista e, ao mesmo tempo, a impedir a passagem de ambulâncias[5], narrativas de demonização da China e do povo chinês, ao tentar atribuir àquele país, sem comprovação científica, a responsabilidade pelo surgimento da pandemia[6]; a grosseira comparação das medidas de isolamento a campos de concentração nazistas[7]; disseminação de notícias falsas sobre, por exemplo, sepultamentos com caixões vazios, com o objetivo de confundir a opinião pública quanto à gravidade e impacto da pandemia.[8] Esses são apenas alguns dos episódios em que eclodiram expressões de violência física, verbal e simbólica, hostilidades e antagonismos, tendo a pandemia do coronavírus como gatilho, pretexto ou pano de fundo. Em todos esses fatos, um ingrediente em comum: o ódio. Ódio aos estrangeiros, eleitos como bodes expiatórios da vez; ódio aos portadores de notícias insuportáveis; ódio aos que ameaçam a liberdade e a economia; ódio aos idosos; ódio aos doentes; ódio à ciência; ódio às instituições. Em situações excepcionais, tais como uma pandemia, a explicação mais fácil e confortável para tais comportamentos seria colocá-los na conta de uma ideia essencialista da “natureza humana” ou de “demônios interiores”, algo como: – “Nessas horas o ser humano revela o que há de melhor e o que há de pior dentro de si”. Com esse veredito, acalmam-se as consciências e situa-se o ódio num domínio abstrato e estranho, no qual, obviamente não estamos inseridos. O ódio, circunscrito nos limites de manifestações bizarras e “patológicas”, nos causa perplexidade e indignação mas, após a enunciação de uma frase de efeito, vira-se a página, fecha-se o jornal e a vida segue seu curso, na esperança de que os “odiosos” tenham o destino merecido. No entanto, discursos de negação às evidências científicas, de glorificação da violência e da morte, a xenofobia, a trivialização de genocídios e a disseminação de “fake news”, certamente, não são práticas inauguradas pela pandemia. O que se constata é a reiteração de fenômenos recorrentes e velhos discursos de ódio, em novas aparições no palco da história, sob as luzes da “claridade pandêmica”, na feliz  expressão de Boaventura Sousa Santos. Ou seja, a pandemia deixa à mostra dinâmicas profundamente entranhadas na tessitura do Estado Moderno, tal como vários pensadores já denunciaram. Michel Foucault, em seu curso ministrado no Collége de France, nos anos de 1976 e 1977, publicado no Brasil sob o título “Em Defesa da Sociedade”[9] demonstrou como o discurso da “guerra das raças” – que nada mais é que o uso político e intencional do ódio – foi utilizado e acionado em vários contextos geográficos e diferentes momentos históricos num cálculo próprio das estratégias políticas. Na aula final de seu curso, Foucault demonstrou como o discurso da “guerra das raças” foi utilizado pelo Estado Nazista sob o pretexto de “purificar o povo alemão”, exerceu seu cálculo não mais “biopolítico”, mas “tanatopolítico” para alcançar os objetivos de normalização populacional de um Estado assassino. O raciocínio utilizado por Foucault nesse texto demonstra como o ódio se inscreve dentre os elementos constitutivos do Estado moderno, o que já se revelava, sem nenhum pudor no contexto colonial. Nessa perspectiva, Achille Mbembe[10] incorporou os conceitos de Foucault e superou-os, ao elaborar o conceito de “necropolítica” e demonstrar como em determinados locais do planeta, notadamente no Sul Global, a incitação ao ódio, a violência e a morte se inscrevem como instrumentos inerentes à política cotidiana, nos quais se desenvolve um estado de guerra permanente, como demonstram os séculos da escravidão negra e a dizimação das populações indígenas. As análises de Foucault e Mbembe convergem no sentido de demonstrar que ódio e coesão social agem como verso e reverso da mesma medalha, trazendo à consciência o fato de que o ódio não pode ser compreendido tão somente como sentimento, emoção ou patologia individual ou grupal, ou como produto de mentes e afetos perturbados, abordagens que, não obstante revelem-se necessárias e válidas em seus campos do saber, são inadequadas para vislumbrá-lo em perspectiva mais ampla.  Mesmo nas momentâneas e aparentes situações de “paz social”, o ódio circula no tecido social, em estado latente, pronto para ser acionado e utilizado para alcançar os mesmos fins já registrados ao longo da história: genocídios e as mais diversas formas de violência contra grupos selecionados por critérios de raça, classe, gênero, orientação sexual, idade, deficiência, identidade de gênero, ideologia política, situação de rua, origem nacional e regional, entre outros. A “claridade pandêmica” realça ainda mais esse modo de funcionamento do Estado, como se “uma dose de darwinismo social fosse benéfica: a eliminação de parte das populações que já não interessam à economia, nem como trabalhadores, nem como consumidores, ou seja, populações descartáveis”[11] fosse um cálculo político aceitável, ao priorizar a economia e converter vidas em meras projeções matemáticas. O que difere é que, sob a influência da pandemia, além da naturalização de milhares de mortes, em especial nas periferias e zonas subalternizadas, o estímulo ao ódio comparece como mais um elemento de uma governança macabra, com finalidades específicas: aglutinar massas fanatizadas, eleger bodes expiatórios como tática de desvio de responsabilidades, desumanizar as vítimas, eleger inimigos úteis,  minimizar desgastes, ostentar desprezo “heróico” à obediência às regras. As medidas de isolamento, recomendadas com base nas melhores práticas e evidências científicas, convertem-se em pretexto para a divisão da opinião pública e da própria população, que ao repudiá-las lança-se numa lógica suicidária[12], além de avessa aos  valores do pluralismo, da solidariedade e à noção de bem comum. Não é demais recordar que o contágio intencional de doenças dos colonizadores europeus de indígenas foi uma das estratégias de dizimação de grandes contingentes das populações originárias nas Américas.[13] O Direito e, em especial, o direito penal interno e o direito penal internacional, ostentam instrumentos idôneos à proteção de direitos humanos, mesmo em contextos de crise. Sua eficácia, todavia, dentre outros inúmeros fatos, também depende do grau de consciência acerca do caráter constitutivo do ódio nos Estados modernos, notadamente no Sul global, por parte de seus operadores e das instituições do sistema de justiça e da disposição de atuar conforme essa consciência. Nesse contexto, o Direito Penal tem, ao menos, duas possibilidades: atuar para reforçar e confirmar o ódio constitutivo na tessitura do Estado, perpetuando seus efeitos, em especial aqueles já registrados na história das nações colonizadas ou, nadando contra a corrente, posicionar-se criticamente contra as tendências inerciais estabelecidas desde os albores da modernidade capitalista, e estancar os fluidos de ódio que alimentam projetos necropolíticos. Em tempos de pandemia, respostas tardias se transformam rapidamente em esforços inúteis. É preciso agir, para que o remédio não venha a ser ministrado quando nada mais pode ser feito.  Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 20 de maio de 2020. *Juíza federal, doutora em Ciências Criminais pela PUCRS, mestre em Direito Processual pela USP, associada da AJD

Por que a peste se abate sobre nós?

Muitos conhecem a história da tragédia grega Édipo Rei, de Sófocles, escrita há mais de dois mil anos, mas ainda muito atual.   Cidadãos de Tebas, é preciso falar direto ao ponto: quem quer que comande os negócios da cidade, com o leme na mão, não pode cochilar. Pois, se tivermos sucesso, a razão é do céu; mas, ao contrário – que isso não aconteça! – uma desgraça pode suceder (…) e esse governante seria celebrado por seus concidadãos com hinos graves e cantos lancinantes.   -Ésquilo. Sete contra Tebas, 1. Um herói funesto, Édipo, livra a cidade-estado de Tebas de um monstro que a oprimia, a esfinge, desvendando seu enigma (“o que de manhã anda com quatro patas, de tarde com duas e de noite com três?”), e por isso é entronizado no poder, tornando-se rei da cidade. Qual poderia ser o sentido mais originário desse monstro? Pode ser qualquer inimigo imaginado que torne a vida insuportável. No caso, a esfinge devorava todos os viajantes que não decifravam seu enigma, o que muitos enxergam como uma alusão à angústia de nossa existência efêmera e que nos põem em fuga da totalidade e nos corta a palavra. Toda época tem seu monstro. Em nosso país, no atual contexto histórico, parece ser a corrupção. Não a corrupção do corpo que se degrada continua e sutilmente a cada dia. Nem muito menos a corrupção que se pratica ao esconder valores do fisco, ao subornar um funcionário público para obter uma vantagem, ao não pagar os 10% do garçom, etc. A corrupção é sempre a do outro, e apenas a do inimigo político é a que conta, e esse é o monstro imaginário do nosso tempo. Édipo, o protagonista da tragédia, nem por livrar seu país do seu monstro deixa a cidade melhor. Ao contrário, seu governo foi marcado por uma peste que se abateu sobre a cidade. Uma doença que veio dos animais e fez as pessoas soltarem gritos de sofrimento por seus mortos e, em desespero, pedir que mais uma vez seu rei as salve: “Tu, que és o mais sábio dos homens, reanima esta infeliz cidade, e confirma tua glória! Esta nação, grata pelo serviço que já lhe prestaste, considera-te seu salvador; que teu reinado não nos faça pensar que só fomos salvos por ti, para recair no infortúnio, novamente! Salva de novo a cidade; restitui-nos a tranquilidade, ó Édipo! Se o concurso dos deuses te valeu, outrora, para nos redimir do perigo, mostra, pela segunda vez, que és o mesmo! Visto que desejas continuar no trono, bem melhor será que reines sobre homens, do que numa terra deserta. De que vale uma cidade, de que serve um navio, se no seu interior não existe uma só criatura humana?” Esse rei funesto não busca médicos ou soluções sanitárias para melhorar as condições de seu povo sob a pandemia, que na ocasião já se espalhava pelo mundo grego. Ele busca uma resposta nos deuses. Naquele tempo não se falava em nome dos deuses mudos como hoje. Os deuses falavam pelos oráculos diretamente às pessoas e o Rei Édipo é informado de que a peste castigará a cidade até que o homicida de Laio, o Rei anterior à Édipo, seja desvendado e expulso da cidade. Édipo ainda indaga porque não se dedicaram a desvendar o crime antes, e ouve a resposta de que combater o mostro os obrigava a deixar de lado fatos incertos para pensar no que tinham diante de si. Estavam cegos para tudo que não fosse o monstro que os afligia.     No Brasil temos um protagonista infausto no leme da nação, não um antierói, mas um a-herói, a privação de qualquer característica heroica. O oposto de Édipo que não teve medo em desvelar a verdade de sua origem. De Édipo, diz Hölderlin, talvez fosse o Rei que tivesse um olho demais. Não era alguém que proclamava a todo instante conhecer a vontade do seu deus e ainda saber a “verdade”, mas alguém corajoso o suficiente e heroico o bastante para descobrir a verdade e poupar seu povo da peste, ainda que se valendo dos deuses ao invés da ciência. Na Tebas Brasilis do século XXI, o protagonista ocasionalmente levado ao poder, e que, como Jânio Quadros iria “varrer a corrupção” e Fernando Collor iria “acabar com os marajás”, esse tipo de personagem frequente da nossa história possui o poder de derrotar a “corrupção” com sua mera eleição. Mas esse personagem, tal como Édipo, tinha em sua biografia algo mais do que se tivesse surgido por acaso no meio de uma história. Encerrada uma carreira no exército precocemente, em baixo oficialato, possui histórias que nem o pior roteirista de filme de suspense B conseguiria bolar. Por quê a sociedade brasileira busca heróis infaustos para salvá-la de seus monstros imaginários? E na busca dessa resposta, podemos dizer que a sociedade brasileira é culpada pela escolha de protagonistas dessa natureza? O título desse artigo se apropriou de uma “tradução traidora”, como lembra Umberto Eco, do famoso livro de Karl Jaspers “Die Schuldfrage” (“A questão da culpa”), que no artesanato livre e cheio de significados das traduções americanas de sua obra nos legaram uma particularizada “A culpabilidade alemã”. Nesse livro Jaspers colocou em voga, já em 1946, um ano após o fim da II Guerra Mundial, a questão da responsabilidade do povo alemão pelos barbaridades cometidas pelos nazistas e que custaram a vida de milhões de pessoas. Para Jaspers, a inimaginável espiral de violência nazista, que chegou ao ápice do horror desviando recursos de guerra para montar uma industrialização do extermínio de milhões de seres humanos, o apoio maciço da população alemã ao regime nacional-socialista e a ausência de uma resistência interna ao regime totalitário acarretavam uma dose de culpa muito maior sobre toda a sociedade do que o silêncio do pós guerra poderia tolerar: não foi um bando de lunáticos assassinos que assumiu o poder e conduziu a pátria de Goethe, Schiller, Kant, Nietzsche à ruína desonrosa e que civilizados tivessem, mais uma vez, sido tão selvagens. Em graus diversos e sob formas diversas, toda a sociedade alemã foi culpada dos horrores do nazismo e somente pela purgação dessa culpa, pela adoção de ações solidárias, poderia ser alterada a “essência” da sociedade alemã. As categorias de culpa que ele analisa, contudo, são irrelevantes para nosso tema. Como toda categoria, representa um modelo a ser contestado, e, portanto, não representa um raciocínio forte. É quase uma opinião abalizada e só. Jaspers insere-se dentro da mais clássica tradição filosófica, ainda que absorvendo as observações de Nietzsche e Heidegger, apresenta nesse trabalho, inovador por colocar a questão da discussão da responsabilidade, num campo muito próximo das ideias religiosas da culpa originária e da necessidade de sua purgação. Mais do que a culpa de nossos pais, uma carga abraâmica típica do pensamento metafísico, devemos reconhecer que “somos os mesmos e vivemos como nossos pais” (Belchior, 1976). Não somos culpados pelas escolhas nem deles, nem as da maioria. Somos o que nossos pais foram, sem mais, nem menos. A ingenuidade de uma atribuição de culpa generalizada ignora os inúmeros fatores que constituem a própria sociedade moderna: baseada em um sistema econômico injusto, construída sobre a repressão sexual, todas as suas instituições dirigem-se para o controle e a regulação dos corpos. Mas não são todas essas explicações mais categorias do que aquelas trazidas por Jaspers e suas múltiplas culpas? Há aqui uma explicação efetiva? Ou antes: a busca por uma explicação é uma busca mal endereçada? Voltemos à tragédia. No Édipo Rei, ao constatar que havia sido ele Édipo o assassino do próprio pai, Laio, e então casado com a própria mãe, Jocasta, arranca seus olhos das órbitas, e se auto-exila da cidade. Não esperou castigo algum. Seus olhos não os quis mais, vez que não lhe haviam permitido ver sua desmedida, do “milagre” do filho de pastores tornar-se Rei da cidade, destruindo o monstro imaginário que a atemorizava quando ninguém mais o tinha conseguido, e nem percebido que pelo assassinato hediondo que sabia ter cometido tinha se tornado rei, ainda que não quisesse ver que era o parricídio. Cego não mais testemunharia as desgraças que causou. O desfecho da tragédia não pode nos deixar apenas com a sensação de ter assistido a uma peça que atravessa séculos com imensa atualidade. Como diz Hölderlin, “se o teatro encena algo assim, isso vem da vida”, e a vida está a nos ensinar porque escolhemos governantes monstruosos que enchem nossas vidas de infortúnios. Talvez nos seja necessário ir além de Édipo no castigo que se auto-inflingiu, e recolocar esses olhos expurgados de novo nas suas órbitas para que, de forma muito clara, muito mais clara do que antes, por esses olhos que enxergavam demais possamos ver de forma inédita as nossas escolhas. Artigo publicado originalmente no site Carta Capital no dia 18 de maio de 2020. * Juiz de direito e membro da Associação Juízes para Democracia – AJD

Essa é minha opinião! E daí?

Cada vez mais nos deparamos com discursos pretensamente científicos ou jurídicos, em que o interlocutor faz afirmações apoiado no pressuposto: essa é a minha opinião. Recentemente, ouvi também o argumento de que estamos disputando narrativas. E, em seguida, a frase sempre presente: não irei convencê-lo, não pretenda convencer-me, fiquemos cada um com nossas verdades. Essa frase revela, de modo emblemático, a crise de civilização que estamos atravessando. Uma espécie de revolta histórica contra o que construímos até aqui. Pessoas estão morrendo e o isolamento físico é a única medida eficaz, de acordo com a OMS. Nossos números não revelam a agressividade da COVID-19, basta ver o aumento expressivo de óbitos em casa e de mortes por insuficiência respiratória ou pneumonia. Nosso presidente não é médico, nem cientista. Cloroquina é um remédio que causa problemas renais e por isso não deve ser administrado sem recomendação médica. Sem universidade pública não há pesquisa capaz de nos permitir enfrentar a pandemia. Sem saúde pública não há como dar conta de nossos doentes. Mais de um milhão de brasileiros perderam o emprego apenas este ano, apesar da falsa solução da MP 936. Reduzir salário promove endividamento e, consequentemente, redução de consumo. O dólar atingiu a marca de R$ 5,8. São fatos. Assim como é fato que nosso presidente, ao ser questionado sobre o aumento do número de mortos, respondeu "e daí? Um governante, cuja preocupação primeira é blindar os próprios filhos de investigações. Corrupção, em seu sentido mais claro. Sua prioridade é editar medida blindando agentes públicos de suas responsabilidades. Sua prioridade é auxiliar bancos. Seu domingo é de diversão, andando de jet ski, enquanto covas coletivas são abertas em ritmo fordista, empresas nacionais são fechadas por falta de amparo estatal, pessoas passam fome. O nosso mundo, que há muito é mais aparência do que essência, desmorona diante de nossos olhos. E o eleito responde "e daí?". Diante dessa distopia muitos se afastam, não lêem notícias. Refugiam-se em livros, filmes ou práticas que os impeçam de enlouquecer. Não adianta. Esse desmoronamento nos atingirá a todos. Um pacto de convívio social foi rompido. Não há retorno possível. Então, nossa escolha fundamental é enterrar a cabeça na areia ou ser agente da formulação do que virá. Não há como saber o que nos aguarda, pois os efeitos dos estragos hoje praticados por escolha deliberada de pessoas que ocupam diferentes postos de poder serão profundos e permanecerão por muito tempo. Mas podemos e devemos escolher pelo que queremos lutar. É urgente reinventar um mundo possível, em que o consumo seja diverso, assim como diferente seja a forma de distribuição da riqueza, de apropriação dos resultados do trabalho humano e de interação com a natureza. Não seremos mais o que já fomos e o que a partir de agora construiremos coletivamente depende de nós. Viver em sociedade precisa voltar a fazer sentido.  Artigo publicado originalmente no site Juca Kfouri no dia 17 de maio de 2020. *Juíza do trabalho e presidente da AJD (Associação Juízes para a Democracia)

Prisões cautelares: o que há de novo?

Ninguém esperava que o ano de 2020 seria assim. Um vírus letal, a vida em suspenso, um desafio global. No Brasil vivemos uma tragédia anunciada, relacionada com a superpopulação carcerária, as péssimas condições de nosso sistema prisional e a total impossibilidade de adotarmos protocolos de prevenção da doença dentro dos presídios.  Segundo relatório expedido pelo DEPEN em 2019, o Brasil possui 748 mil presos, sendo que 30% desse número é de presos provisórios, índice muito relevante. Ocorre que as pessoas que estão em situação de prisão provisória (ou cautelar) ainda não tiveram sua culpa reconhecida pelo Estado. Ainda estão sendo investigadas ou processadas criminalmente. Podem ser condenadas ou não. E, se forem condenadas, podem sofrer a imposição de pena de prisão ou não, pois há outras penas previstas no código penal, como a prestação de serviços à comunidade ou o pagamento de prestação pecuniária.  Em um Estado Democrático, quando alguém é acusado de praticar um crime, tem direito de ser processado, de se defender, de ser julgado por um juiz imparcial, de recorrer da sentença para um tribunal. São garantias previstas na Constituição. Só excepcionalmente o Estado deve prender alguém antes de condená-lo. Essa excepcionalidade decorre do princípio constitucional da presunção de inocência (art.5º, LVII, CF) e também do Código de Processo Penal. A regra é que todos respondam ao processo soltos, possam se defender plenamente, e só ao final, caso condenados à pena privativa de liberdade, sejam presos.  A decretação de prisão cautelar exige a presença de elementos que indiquem que o investigado ou réu está envolvido na prática do crime, e que a medida seja imprescindível para assegurar a aplicação da lei penal (para evitar fuga), a atividade probatória (se o acusado está, por exemplo, constrangendo uma testemunha) ou para evitar reiteração criminosa. Se o crime em tese praticado não é grave, não é cabível prisão cautelar, pois há grande possibilidade de que, ainda que seja condenado, o acusado não sofra pena de prisão. Não faz sentido prender alguém durante o processo se, ao final, ainda que condenada, a pessoa não vai ficar presa. O CPP previu também medidas cautelares pessoais menos gravosas (art. 319), tais como proibição de ir a determinados lugares, proibição de se aproximar de vítima ou testemunha, fiança, monitoramento eletrônico, recolhimento domiciliar noturno, tendo estabelecido que a prisão cautelar só pode ser decretada se tais medidas não se revelarem adequadas e suficientes no caso concreto (arts. 282, § 6º e 310, II). Previu também que a  prisão preventiva seja cumprida em regime domiciliar no caso de gestantes, mães de crianças até 12 anos, réus idosos ou enfermos ou cuja presença for essencial aos cuidados de criança ou pessoa com deficiência (art. 318).  Vê-se que o CPP já impunha a excepcionalidade da prisão cautelar, em consonância com a Constituição. Tal orientação foi reforçada com a lei 13964, de 24.12.19. Vejamos.  O primeiro ponto relevante é a vedação de que o juiz decrete medidas cautelares pessoais (e dentre elas, a prisão cautelar) de ofício (art. 282). Antes da mudança, havia uma distinção entre a fase investigatória e a fase processual. Na fase investigatória, o juiz só podia decretar medidas cautelares em desfavor do investigado por representação da autoridade policial ou requerimento do ministério público. Mas depois de ajuizada a ação penal, podia fazê-lo sem haver requerimento do MP e até mesmo contra sua opinião. Nesse ponto a lei reforça o sistema acusatório, diminuindo o protagonismo do juiz, permitindo que ele se mantenha em posição equidistante das partes, de modo a preservar sua imparcialidade.  É certo que o art. 282, § 5º, estabelece que o juiz poderá revogar a medida cautelar pessoal, substituí-la ou voltar a decreta-la de ofício (na mesma linha o 316). Mas a interpretação desse dispositivo em conformidade com os demais parágrafos do 282 evidencia que a ideia é impedir que o juiz adote medidas cautelares em desfavor do réu de ofício, devendo sempre aguardar iniciativa dos órgãos de persecução penal.  Por outro lado, como é dever do juiz analisar periodicamente se permanecem presentes os requisitos legais para manutenção da preventiva (a cada 90 dias, art. 316, par. único), ele deve de ofício revoga-la ou substituí-la por medida menos gravosa, quando for o caso. O segundo ponto a ser destacado é a introdução de novos requisitos para a decretação da prisão preventiva e o reforço à necessidade de fundamentação. O art. 312 somou aos requisitos tradicionais, “o perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”. O fundamento de que a prisão poderia ser decretada caso a liberdade do investigado ou réu causasse perigo concreto para a coletividade já se extraia do conceito de garantia da ordem pública. É certo que a doutrina há muito critica essa categoria, justamente pela dificuldade de densificação (o que é afinal garantia da ordem pública?).  Aparentemente o legislador opta por explicitar razões que justificariam a preventiva e que eram antes extraídas da garantia da ordem pública. Melhor seria a lei ter disposto com mais clareza e concretude que situações autorizam a decretação da medida cautelar relacionadas com o risco que a liberdade pode causar à coletividade, abandonando a fórmula genérica bastante criticada de “garantia à ordem pública”.  Outro requisito novo é a contemporaneidade dos fatos alegados para justificar a prisão preventiva. Muitas vezes os fatos imputados ao réu na denúncia ocorreram há muitos anos e não há nenhum fato novo ou algum comportamento recente do réu que possa ser invocado para a decretação da prisão. A jurisprudência já vinha exigindo contemporaneidade dos fatos para a custódia cautelar, já que o passar do tempo fragiliza a alegação da necessidade da prisão. O novo art. 313, § 2º, positivou tal exigência.  O juiz não pode fundamentar suas decisões usando fórmulas genéricas, sem explicar porque, naquele caso concreto, a hipótese prevista na lei está presente e justifica a tomada daquela decisão.  De fato, a motivação que em tese serve para todos os casos em verdade não serve para nenhum. Esse já era o comando do 489, § 1º do CPC, que se aplicava subsidiariamente ao processo penal, tendo sido agora adotado de forma expressa no art. 315 do CPP¹. Terceiro ponto. A lei 13964 introduziu no CPP a audiência de custódia. O preso em flagrante deve ser apresentado ao juiz em 24 horas, na presença do defensor e do ministério público. Nessa audiência o juiz decidirá sobre a legalidade da prisão em flagrante e, caso o ministério público requeira a decretação de prisão preventiva ou de outra medida cautelar pessoal em desfavor do conduzido, decidirá a respeito. Não sendo o caso de decretação de qualquer dessas medidas, o investigado deve responder ao processo em liberdade. Apesar de o art. 310 do CPP não reiterar a vedação de que o juiz decrete a prisão preventiva ou outra medida cautelar pessoal de ofício, tal se extrai do art. 282 do CPP.  O § 2º do 310 é flagrantemente inconstitucional já que prevê a decretação de prisão preventiva obrigatória (sem análise das circunstâncias do fato e condições pessoais do preso em flagrante), o que viola a presunção de inocência. O STF rechaçou todas as medidas legislativas que previram prisões preventivas obrigatórias, como o art. 2º, II, da lei de crimes hediondos e o art. 44 da lei antidrogas, declarando sua inconstitucionalidade. Lamentável assim que o legislador ignore esse histórico e estabeleça nova hipótese de vedação legal de liberdade provisória, ainda que sejam graves os crimes em tese praticados. No caso da vedação de liberdade provisória em razão de reincidência, a inconstitucionalidade é ainda mais flagrante, pois a reincidência de crimes leves e não violentos também em tese impedirá a liberdade provisória, o que viola a proporcionalidade.  Por fim, cabe registrar que o Ministro Luiz Fux, na ADI 6298 e correlatas, suspendeu a vigência do art. 310, § 4º, que determinava o relaxamento da prisão caso a audiência de custódia não fosse realizada em 48 horas, a não ser que o atraso se desse por motivação idônea. Entendeu o Ministro Fux que “motivação idônea” é uma categoria demasiadamente aberta, e acabaria levando ao indevido relaxamento de prisões em flagrante, já que o prazo legal é muito exíguo considerando dificuldades logísticas que podem ocorrer em casos concretos.  Em conclusão, considero que as mudanças legislativas são positivas (ressalvada a previsão inconstitucional de prisão preventiva obrigatória), pois ressaltam a excepcionalidade da prisão preventiva, reforçam a necessidade de fundamentação para sua decretação, a impossibilidade de decretação de medidas em detrimento do réu de ofício, impõem a revisão periódica da necessidade de sua manutenção e positivam a audiência de custódia.  Vê-se que o legislador vem cumprindo seu papel, reforçando a nota da absoluta excepcionalidade da prisão cautelar. Cabe ao Judiciário cumprir a lei e, especialmente considerando o cenário de pandemia, romper com a cultura de encarceramento provisório. Estamos em um momento de crise que convida à reflexão e mudança de paradigmas. Façamos isso! Artigo publicado originalmente no site Justificando  no dia 15 de maio de 2020. * Desembargadora Federal TRF2 e associada da AJD  

Abolição da escravatura e a nova escravização

Nas escolas, na mídia e na política a lembrança da Lei Áurea não vem acompanhada de uma narrativa sob a perspectiva dos libertos.   Estamos no mês que  é marcado pela lembrança do final da escravidão no Brasil, pois foi em 13 de maio de 1888 que a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea.   Para a sociedade tal data durante muito tempo foi um marco de libertação e de louvor, tendo em vista que juridicamente os negros passaram da condição de coisa (patrimônio), para a de seres humanos sujeito de direitos, sendo certo que deveres sempre tiveram. Tal entendimento adveio do discurso da democracia racial exposto na obra de Gilberto Freyre, que descreveu a convivência harmônica entre brancos, negros e indígenas em nosso país, criando-se uma falsa ideia de que não havia discriminação, preconceito e racismo nestas terras, muito embora houvesse forças que se mobilizavam para eliminar pessoas negras por meio de manobras no intuito de realizar o branqueamento da população brasileira. No entanto, a dura realidade que se apresentou no dia seguinte à “suposta” libertação dos escravizados foi a de que mais 750.000 pessoas negras restaram entregues à sua própria sorte, desprovidas de qualquer apoio para que pudessem ter mínimas condições de sobrevivência. Foi Florestan Fernandes quem muito bem analisou esse cenário, indicando que a Lei Áurea eximiu os senhores de escravos das pouquíssimas responsabilidades que possuíam, sem que ninguém tivesse assumido esse papel. As pessoas negras não foram postas em atividades remuneradas após a abolição e sequer tinham onde morar, seja nas localidades onde se situavam as fazendas em que eram exploradas, tampouco nos grandes centros para os quais se deslocaram em busca de oportunidades de vida dignas. PERÍODO DE PÓS ESCRAVIDÃO FOI MARCADO PELA MARGINALIZAÇÃO DA POPULAÇÃO NEGRA, ALIJADA DE QUAISQUER OPORTUNIDADES DE EDUCAÇÃO, EMPREGO E MORADIA. FOTO DE 1983. Sendo assim, a grande maioria dessa população permaneceu em subempregos, situações de trabalho adversas, desumanas, com nenhuma ou baixa remuneração, condições que mantiveram os livres, os libertos e seus descendentes em total desvantagem social, obstaculizando e impedindo sua mobilidade efetiva, vivendo indignamente, portanto sob novas formas de exploração e escravização. Sem trabalho e nas ruas, a legislação que veio após a abolição atravessou vidas negras de modo a estabelecer padrões moralizadores que segregaram um mesmo grupo racial. Os negros foram os atingidos pela lei que puniu a mendicância, a vadiagem, a capoeira e a embriaguez, pois eram eles que estavam nas ruas, sem moradia, sem trabalho, desamparados e desprotegidos.  Não obstante, em 1893 essas condutas foram consideradas ameaças à ordem (mesmo que não tivessem os agentes praticado qualquer crime), como forma de retirar as pessoas negras dos espaços públicos, limitando suas existências ao cárcere e às favelas, embora fosse de total responsabilidade do Estado o modo de vida em que se encontravam. Nesse sentido, no que se refere à vadiagem é relevante destacar que as pessoas que viviam de suas fortunas poderiam dedicar-se ao ócio e à vagabundagem livremente nos espaços públicos, ou seja, puniu-se a pobreza que, lamentavelmente, estava localizada majoritariamente em um mesmo grupo racial neste país, o negro.   A grande verdade é que esse grupo passou da situação legal de escravizado para a de marginal, já que não foi devidamente inserido na sociedade, permanecendo nas ruas, favelas, cárceres, trabalhando de modo desumano, em toda e qualquer espécie de exploração possível e imaginável, sem direitos fundamentais garantidos. É fato público e notório que sua liberdade não representou para a Coroa brasileira um ato de reforma da social, para dar-lhes melhores condições de vida, mas uma necessidade, já que sua mão de obra havia se tornado obsoleta e impedia desenvolvimento econômico do país. Ademais, a lembrança da Lei Áurea não vem acompanhada de uma narrativa sob a perspectiva dos libertos. Nos bancos escolares nunca se dedicou tempo para discutir sobre às fugas e revoltas que antecederam a abolição, a demonstrar que, embora legal o sistema, havia uma sensação coletiva sobre o injusto praticado. Também não se ocuparam aqueles que contaram a história de realizar a devida crítica às leis que antecederam a da extinção, como as dos sexagenários e ventre livre, as quais tinham como objetivo principal manter a escravização dos negros. Mais que isso, nada se disse sobre a omissão do legislador, que não previu qualquer forma de reparação e inserção do negro na sociedade brasileira, tal como sugeriam muitos abolicionistas, dentre eles André Rebouças e Joaquim Nabuco, que defendiam a reforma agrária. Tratou-se de uma lei enxuta, omissa, que chegou tarde e que não trouxe políticas públicas nos campos da saúde, educação, economia, habitação que dessem conta de por fim ao sistema escravocrata. Amarga é a lembrança do dia 13 de maio de 1888, tendo em vista que lamentavelmente até hoje o Brasil carrega as marcas da escravidão, bastando verificarem-se os índices sociais, incluindo, mas não se limitando, a desemprego, encarceramento e violência contra a juventude,  os quais revelam uma realidade social que demonstra o verdadeiro genocídio da população negra. Esse contexto histórico acima torna-se muito mais evidente nos dias de hoje, porque em tempos de pandemia os dados já demonstram que é a população negra que mais tem sucumbido à doença, o que deve ser compreendido como consequência direta da escravidão. Portanto, é preciso que se recorde a real história do nosso povo e dos grandes homens e mulheres que resistiram bravamente pelo fim da escravidão, rejeitando de vez a ideia de que vivemos em uma sociedade democrática racial, pois somente assim poderemos entender a negritude e consequentemente combater o racismo, desenvolvendo um senso de responsabilidade social coletiva com políticas públicas para eliminar a desigualdade da população negra deste país. São esses alguns dos motivos pelos quais entendemos que não há o que se comemorar pela Lei Áurea, nem como enaltecer a figura de uma Princesa que foi por alguns erigida à condição de salvadora dos negros, já que não lhes outorgou a liberdade a partir de premissas humanitárias. A escravidão não acabou com a promulgação da Lei Áurea, pois está presente nos dias de hoje sob diferentes formas de preconceito, discriminação e racismo! 13 de maio de 1888 infelizmente é um dia que ainda não terminou!   Artigo publicado originalmente no site Carta Capital  no dia 13 de maio de 2020.

CARTA ABERTA AO GOVERNO FEDERAL: A OPACIDADE CUSTA VIDAS

A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental, de âmbito nacional, sem fins corporativos, apoia a "Carta aberta ao governo federal: a opacidade custa vidas".  Da noite do dia 05 até 06 de junho de 2020, o portal oficial de dados sobre a Covid-19 no Brasil ficou fora do ar. O novo portal não divulga dados de fundamental importância para o correto controle da pandemia, como o número acumulado de casos e mortes e também deixa de divulgar as taxas de contaminação e óbitos por 100 mil habitantes e de letalidade. A impossibilidade de se realizar o download da base oficial, o que permitiria um melhor compartilhamento e uso dessas informações, também é um grave empecilho ao direito à informação pública. Também foram adotadas medidas retroativas para prejudicar o acesso à informação. As bases de dados com o histórico da Covid-19 no Brasil desapareceram do repositório do SUS (Sistema Único de Saúde). Além disso, o Ministério da Saúde anunciou uma recontagem do número de mortos , acusando as secretarias de estado de falsificar dados, mas sem apresentar nenhuma prova. A eliminação de um portal de informações oficiais deve ser vista com preocupação. Os mecanismos de transparência são fundamentais em um governo democrático para permitir a participação pública e a prestação de contas . Durante uma pandemia, a opacidade pode custar vidas. O caso se mostra ainda mais grave quando o presidente Jair Bolsonaro atribui algumas das mudanças a um desejo de prejudicar a cobertura jornalística da pandemia, quando, ao ser interrogado por repórteres sobre o atraso na publicação dos números, respondeu: " acabou matéria para o Jornal Nacional ”. O uso da máquina pública para atacar a imprensa não é algo novo no governo de Jair Bolsonaro. A falta de informação oficial sobre a pandemia não é apenas um ataque ao acesso à informação, ataca também a liberdade de expressão e de imprensa. Não se trata de casos isolados, mas que se inserem em um cenário do uso contínuo e sistemático da máquina pública para dificultar o trabalho de comunicadores, criar um ambiente hostil para o exercício profissional e, ao mesmo tempo, reduzir a transparência no governo de Jair Bolsonaro. Além disso, o direito de saber de toda população brasileira é violado — algo ainda mais grave diante da emergência de saúde pública. A tentativa do governo federal de controlar a narrativa da pandemia por meio da opacidade e do compartilhamento de informações sem provas científicas ou baseadas na realidade não custa apenas a democracia, mas também a vida de milhares de pessoas, principalmente as mais vulneráveis. As organizações listadas abaixo repudiam o abuso de autoridade por parte das altas esferas do governo federal brasileiro e condenam a tentativa de obstruir o direito à informação e a atividade jornalística, ocultando informações de interesse público. Apelamos aos demais poderes da República para que fiscalizem e punam eventuais atos de improbidade administrativa com o máximo rigor. O momento exige união de esforços para proteger o país e a população, defender a transparência, a liberdade e a democracia. ARTIGO 19  Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo - Abraji Conectas Direitos Humanos Idec - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor Instituto Cidades Sustentáveis Instituto de Governo Aberto (IGA) Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social Instituto Não Aceito Corrupção Open Knowledge Brasil Transparência Brasil Transparência Partidária Abong - Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais ACT Promoção da Saúde Ação Educativa Agenda Pública Aliança Nacional LGBTI+ AMARRIBO Brasil AMASA - Amigos Associados de Analândia ANDI - Comunicação e Direitos ABI - Associação Brasileira de Imprensa Associação Casa dos Meninos Associação dos Especialistas em Políticas Públicas do Estado de São Paulo (AEPPSP) Associação Juízes para a Democracia Associação Mundial de Rádios Comunitárias - Amarc Brasil Atados CENPEC Educação Centro de Convivência É de Lei Clínica De Direitos Humanos Luiz Gama - Faculdade de Direito CMEAR Confederação Nacional das Carreiras e Atividades Típicas de Estado (CONACATE) Congresso em Foco Contas Abertas CLP - Liderança Pública Creative Commons Brasil Datapedia Delibera Brasil Coletivo Educafro Fiquem Sabendo Foaesp - Fórum das Ong Aids do Estado de São Paulo Franca Transparente Frente Favela Brasil Fundação Avina Fundação Tide Setubal Gestos - Soropositividade, Comunicação e Gênero Goianas na Urna Grupo de Pesquisa em Corrupção, Desonestidade e Comportamento Ético (UnB) Grupo Dignidade Hivos - Instituto Humanista para Cooperação e Desenvolvimento InPACTO - Instituto do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo Instituto Centro de Vida (ICV) Instituto Cidade Democrática Instituto de Estudos Socioeconômicos - INESC Instituto Democracia e Sustentabilidade - IDS Instituto Esporte Mais - IEMais Instituto Nossa Ilhéus Instituto Socioambiental - ISA Instituto βeta: Internet & Democracia – IβIDEM Intercâmbio Internacional de Liberdade de Expressão (IFEX - ALC) Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social LabHacker Laboratório de Inovação em Políticas Públicas do Rio de Janeiro (Labipp) Lute Sem Fronteiras Mapa Educação Minas Programam Move Social Movimento Acredito Movimento do Ministério Público Democrático Movimento Popular de Saúde - São Paulo Movimento Voto Consciente Núcleo Empreender Social - ACIBALC Observatório do Marajó Observatório para a Qualidade da Lei (UFMG) Observatório Político e Socioambiental - Instituto OPS Observatório Social de Belém Observatório Social de Brasília Oxfam Brasil Plan International Brasil PonteAponte Projeto Saúde e Alegria Rede Conhecimento Social 8

Quantas mãos “empurraram” Miguel?

Foto: Marlon Costa/Pernambuco Press   Miguel Otávio Santana da Silva tinha cinco anos. Sua mãe, Mirtes Renata Souza, é empregada doméstica e teve que levar Miguel para o trabalho, pois a continuidade do seu trabalho foi exigida mesmo durante a pandemia e nesse período as creches estão fechadas. No trabalho, saiu para levar o cachorro dos patrões, Sari Corte Real e Sérgio Hacker (prefeito de Tamandaré/PE pelo PSB), para passear. Miguel ficou aos cuidados da patroa, no apartamento do quinto andar de um prédio de luxo no Recife/PE, integrado ao conjunto conhecido como “Torres Gêmeas”. E enquanto a mãe cuidava das necessidades fisiológicas do cachorro, Miguel caiu do nono andar do edifício e morreu. Não nos cabe, no âmbito desse texto, descer às minúcias dos fatos, examinar condutas, avaliar a culpabilidade e fixar penas. Não que isso não seja importante, muito pelo contrário. É preciso que isso seja feito, para a devida punição de todos os culpados, pois mortes como a de Miguel não podem, nunca mais, ficar impunes. Vidas negras importam! E a impunidade nos crimes cometidos contra a integridade dos cidadãos negros e das cidadãs negras, inclusive pelo próprio Estado, constitui fator decisivo para a negação desse reconhecimento essencial e obrigatório. Nosso propósito é ir além e propor reflexões sobre o ocorrido de modo a visualizar as várias determinantes que se apresentam no fato e as inúmeras responsabilidades históricas, de personagens múltiplos, pelo ocorrido. A necessidade de se chegar à imputação da culpa e a punição dos culpados diretos não pode servir para gerar uma falsa sensação de justiça ampliada apagando e, com isso, preservando todas as condicionantes sociais, culturais, econômicas, políticas e jurídicas que estão refletidos na situação e mantendo impunes tantos outros “culpados”.   Comecemos, pois, falando sobre a igualdade de direitos para as empregadas domésticas. Até hoje, 2020, não fomos capazes de dizer, com todas as letras e com consequência prática, que as empregadas domésticas (que são, de fato, na sua totalidade, mulheres e, na grande maioria, mulheres negras) possuem direitos iguais aos de todos os demais empregados e empregadas. Não fizeram isso os constituintes de 1987 e, desde sempre, os congressistas, os governantes, os juristas e os magistrados, que, na questão, se posicionam como autênticos empregadores de empregadas domésticas para a defesa de seus interesses diretos, negando subjetividade jurídica plena a quem lhes presta um serviço, serviço este, aliás, que só, agora, de forma um tanto quanto cínica, se lhes apresenta como essencial. Os argumentos são múltiplos e fugidios e acabaram sendo reforçados quando, na esteira da edição da Convenção 189 da OIT, de 15/11/11, a questão da elevação dos direitos das empregadas domésticas foi posta em pauta. A resistência organizada de grande parte da sociedade se fez presente e foi intensamente reproduzida na grande mídia, que insistia em mostrar o sofrimento que os empregadores e as empregadoras domésticas passariam a ter para garantir todos aqueles direitos, os quais, ademais, como sempre se disse, eram injustificados, vez que naquele tipo de relação não se formava uma relação de trabalho, e sim uma relação familiar. “A empregada doméstica é membro da família”, argumentavam. Mesmo assim, em 2/4/13, foi editada a Emenda Constitucional n. 72, que estabeleceu, ainda que meramente formal, essa igualdade. Os argumentos contrários à elevação de direitos (cabendo lembrar que mesmo os parcos direitos existentes nunca foram efetivamente cumpridos) se apresentaram de modo ainda mais forte e articulado e o resultado foi que, prevalecendo a lógica escravagista, em 2015, uma Lei Complementar (n. 150), publicada em 2 de junho (exatamente no dia da morte de Miguel), veio para se sobrepor à Emenda Constitucional e à Convenção 189 da OIT, negando essa igualdade e isso se fez diante de uma aceitação jurídica, social e política generalizada. A precariedade jurídica da relação de emprego doméstico, a negação da organização sindical da categoria das empregadas domésticas (com possibilidade negocial concreta), o afastamento dos órgãos de fiscalização do Estado quanto ao cumprimento dos direitos trabalhistas dessas profissionais e a consequente consagração (e até o aumento) da formação de uma relação de poder e submissão constituíram as conformações sociais e jurídicas que, postas em prática, impediram Mirtes de se recusar a ir trabalhar em tempo de pandemia e ainda ter que levar seu filho Miguel para o trabalho. Essas são algumas das realidades jurídicas refletidas no caso e que, portanto, atraem, no mínimo, a responsabilidade de todos aqueles que, historicamente, “lutaram”, em ação consciente e organizada (não tendo sido, pois, “mera omissão”), para negar às empregadas domésticas uma condição mínima de cidadania nas relações de trabalho. Essa imobilidade social e até mesmo a intensificação da exploração do trabalho operada nos últimos anos repercutem decisivamente na vida de tantas crianças como Miguel. A precariedade da vida também é marca da infância das crianças negras, vedando-lhe qualquer expectativa de futuro. E, para além das condições materiais que se apresentam nas estatísticas (acesso à saúde e à educação, moradia, saneamento básico), fato é que a criança e os(as) adolescentes negros(as) não têm as suas necessidades e os seus interesses assegurados pela sociedade e pelo Estado brasileiro, mesmo que, formalmente, a Constituição Federal, que também condena toda forma de preconceito e discriminação (art. 3º, IV), tenha prometido garantir a todos e todas, indistintamente, “direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. A Constituição Federal, no plano da assistência social, também promete proteger a família (art. 203, CF), dada a relevância social que se lhe atribui. Mas quando se trata dos excluído, de modo concreto, até mesmo a entidade familiar lhes é negada. Desenvolvemos uma naturalizada discriminação da criança e do adolescente negros quando, por exemplo, a despeito do direito à proteção integral, lhes são “permitidos” a título gratuito pequenos trabalhos, sob a escusa de se estar promovendo uma ajuda e ancorado no argumento de que “é melhor estar trabalhando do que roubando”. E assim, ponto a ponto, dia após dia, durante anos e décadas, foram sendo eliminadas as possibilidades integração, de preparação, de lazer e de estudos a milhões de crianças iguais a Miguel, que, quando não integradas a uma situação circunstancial de visibilidade social, carregam o peso de estereótipos (“trombadinha”, “rebelde”, “incapaz”) e, por isso, não são vistos como pessoas em desenvolvimento, que merecem prioridade e proteção, como previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Por não se ter feito valer a Constituição Federal na sua plenitude e não se terem aplicado todas as regras do Estatuto da Criança e do Adolescente muitas mãos deixaram suas marcas na morte de Miguel (assim como nas de Ágatha Félix, João Pedro Matos Pinto e de tantas outras crianças e adolescentes negros e negras). E todas essas responsabilidades precisam ser apuradas, para que possamos impedir que tragédias como essas continuem frequentando o cotidiano da subvida de milhões de pessoas no Brasil, submetidas ao persistente racismo estrutural, mesmo que a Constituição declare caracterizar crime inafiançável e imprescritível a prática do racismo, sujeitando o infrator à pena de reclusão (art. 5º, XLII), e isso, sobretudo, pela tática jurídica de remeter o fato da agressão de natureza individual ao tipo penal de injúria racial (art. 140, § 3º, do Código Penal), que possui penas que as previstas ao racismo, conforme disposto na Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Pensemos, na sequência, sobre os demais aspectos culturais (que não deixam de ser também jurídicos, políticos, econômicos e sociais) presentes no caso. Neste aspecto, o primeiro impulso é o de se perguntar “quem deixaria uma criança de cinco anos sozinha no interior de um elevador?” Se pensarmos, como estamos propondo, que a questão não se trata apenas de falta de humanidade dessa "patroa" especificamente, precisamos ampliar o horizonte de análise da tragédia, vista, inclusive, como retrato de uma tragédia mais ampla e mais renitente.  Contexto da tragédia O Estado de Pernambuco tem um dos maiores números de casos de infecção e de óbitos pela COVID-19 e teve instituída quarentena (“lockdown”) entre 16 e 31 de maio, que foi relativizada para que empregadas domésticas e cuidadoras continuassem trabalhando em residências cujos empregadores exercessem atividades essenciais ou integrassem grupo de risco.  A principal medida preconizada pela Organização Mundial da Saúde para a contenção da pandemia da COVID-19 é o isolamento social. Isolamento social é, portanto, uma medida de saúde pública e não deveria ser luxo de classe, mas, na prática, só é viável se houver a possibilidade de trabalho remoto improvisado ou a garantia de renda para os trabalhadores ficarem em casa. Ironicamente, na sociedade que proclama a Revolução 4.0, as grandes medidas de contenção da pandemia são ficar em casa e lavar as mãos. Nada muito tecnológico, mas nem por isso de fácil concretização. E é no cotidiano que as desigualdades sociais saltam aos olhos. Grande parte da população é desprovida de empregos formais, vivendo de trabalhos precários e intermitentes, sem os quais o grande risco passa a ser o de morrer de fome. Como fazer o isolamento social sem garantia de renda? O déficit de moradia torna o isolamento social impossível para outra (ou a mesma) parcela da população, que também não tem acesso a água e saneamento básico. Como lavar as mãos sem água limpa corrente? É bem verdade que a pandemia evidencia a centralidade da reprodução social para a manutenção da vida, sobretudo porque, obrigados a (ou privilegiados por) ficar em casa, uma parcela da sociedade começa a enxergar que não é possível viver sem a preparação dos alimentos, a limpeza da casa, a lavagem das roupas e o cuidado de crianças, idosos e enfermos. Se o trabalho reprodutivo é essencial, não havendo a possibilidade de manter a vida sem a sua execução, fato é que, em geral, ele pode ser assumido pelos residentes da casa para se proporcionar o direito ao isolamento social às trabalhadoras domésticas[i], que também têm suas necessidades pautadas pela situação atual (creches e escolas fechadas, suspensão repentina da rede de apoio pelo isolamento etc.). ​A morte de Miguel se deu no dia em que se “comemoraria” os cinco anos da Lei Complementar n. 150/2015, que regula o trabalho doméstico, mas mantém a desigualdade jurídica. Desde a promulgação da CLT, em 1943, as trabalhadoras domésticas lutam para superar a invisibilidade social de seu trabalho, marcado pela interseccionalidade de opressões de classe, gênero e raça, buscando o reconhecimento da nunca alcançada igualdade de direitos com outras categorias profissionais. Em meio à grave crise sanitária, o trabalho doméstico e de cuidado remunerado saíram da condição de invisíveis para serem classificados como atividade essencial em alguns Estados, como Pernambuco e Pará, para garantir a continuidade da prestação de serviços pelas trabalhadoras, em sua maioria mulheres negras, apesar da quarentena instituída em municípios com curvas de contágio alarmantes como Recife e Belém. Este falacioso reconhecimento da essencialidade do trabalho doméstico remunerado nada mais é do que uma expressão da colonialidade do poder e do ser, no sentido de espelhar uma sociedade classista, machista e racista de raízes coloniais escravocratas.Conhecemos a sobrecarga das mulheres em razão da sobreposição das cargas física, mental e psicológica no contexto da pandemia e do confinamento. Entendemos que é uma oportunidade para se repensar a reprodução social e a divisão sexual do trabalho. Ao mesmo tempo, não podemos ignorar que a situação pandêmica coloca em risco a própria vida. E, se o coronavírus não é seletivo, atingindo indistintamente quem se colocar em seu caminho, não podemos dizer o mesmo sobre os efeitos da pandemia, que atingem mais impiedosamente a população mais vulnerável, observando os marcadores sociais de classe, gênero, raça, idade, condição de saúde etc. A despeito disso tudo, a matéria no G1 relata que Miguel, Mirtes e sua mãe (e avó de Miguel) estiveram em contato com o patrão infectado pela COVID-19 e efetivamente contraíram a doença, felizmente com sintomas leves. A morte de Miguel, porém, vai além da questão da saúde pública e da invisibilidade do trabalho reprodutivo. Vida passível de luto e necropolítica A partir do luto, a filósofa Judith Butler enxerga uma hierarquização da vida: a humanidade do Outro está na sua capacidade de ser enlutado, o que conforma as questões da precariedade e da vulnerabilidade humana. Segundo ela, “vidas são apoiadas e mantidas diferentemente, e existem formas radicalmente diferentes nas quais a vulnerabilidade física humana é distribuída ao redor do mundo. Certas vidas serão altamente protegidas e a anulação de suas reivindicações à inviolabilidade será suficiente para mobilizar as forças de guerra. Outras vidas não encontrarão um suporte tão rápido e feroz e nem sequer se qualificarão como “passíveis de ser enlutadas””[ii]. Assim, as mortes de jovens negros nas periferias, se invocadas como tais, sem rostos nem nomes, não passam pelo luto. A ausência de luto é o final de uma vida precária. De certa forma, parece que é dessa diferença que Mirtes, a mãe de Miguel, quer falar, imaginando como seria se a filha da patroa fosse vítima de sua omissão no dever de cuidado: "Se fosse eu, meu rosto estaria estampado, como já vi vários casos na televisão. Meu nome estaria estampado e meu rosto estaria em todas as mídias. Mas o dela não pode estar na mídia, não pode ser divulgado". A hierarquização das vidas e das pessoas, a partir de uma lógica de gênero e raça, ainda organiza a sociedade e o Estado brasileiros. É a persistência da colonialidade do poder, que permeia as desigualdades historicamente estabelecidas, contra a quais o enfrentamento se inicia ao revelá-las, desnaturalizando-as. É admitir que a subjetividade jurídica de toda pessoa natural ou a dignidade da pessoa humana, fundamento expresso da nossa República, não se realiza em sua plenitude no dia a dia, pois a sociedade está dividida entre humanos e não humanos.  O filósofo camaronês Achille Mbembe desenvolveu o termo necropolítica para resgatar a ideia de biopoder de Michel Foucault, segundo o qual a soberania dos Estados nacionais se expressa no poder de decidir “fazer viver ou deixar morrer”. A necropolítica vai além para dizer quem pode viver e quem deve morrer, em um exercício de violência e poder de morte[iii]. No neoliberalismo, o Estado decide sobre corpos e vidas de “massas supérfluas”, subjugando a vida ao poder de morte, como forma de gestão da sociedade. Vidas “dignas” são preservadas e protegidas. Vidas precárias são descartáveis. Ou nas palavras de Rubens Casara: “No Estado Pós-Democrático, o que importa é assegurar os interesses do mercado e da livre circulação do capital e das mercadorias, com o controle ou mesmo a exclusão dos indivíduos disfuncionais, despidos de valor de uso ou inimigos políticos.”[iv] Nesse contexto, a população pobre e majoritariamente negra é encarada como “inimigo interno” pelo Estado necropolítico. Somente a partir de um lugar de privilégio social, de segurança sanitária e de pleno acesso a recursos de saúde é possível pensar em relaxar regras de isolamento, retomar a atividade comercial e negar o risco de morte a que a maior parte da população está exposta. Mais do que isso, é observando a lógica de descartabilidade de determinadas vidas em prol do mercado (mais do que um dado natural, como se este fosse um sujeito) que opera o Estado. O desgoverno a frente de uma grave crise sanitária, com seus mandos e desmandos, não se trata de uma ignorância, mas de uma forma deliberada de gestão dos indesejáveis. Do negacionismo estatal à relação de trabalho A distopia brasileira, marcada pelo darwinismo social disfarçado de negacionismo, não é obra de uma mente malévola. Não podemos cair no erro de personalizar o mal desta sociedade racista e machista; esta só se viabiliza porque está em conformidade com uma elite que não abre mão de seus privilégios e finge não enxergar o Outro. A elite, assim como os cargos de poder nas instituições, tem um rosto: é um homem branco, adulto, heteronormativo e autoproclamado religioso, o que marca sua visão de mundo e seus interesses. A branquitude e a masculinidade são construções históricas e sociais hegemônicas nos lugares de poder e de decisão e informam a ideologia neoliberal. Esta perspectiva do alto da pirâmide social avoca para si uma falaciosa neutralidade, assumindo seu ponto de vista como sendo universal, objetivo, racional e civilizado (como o colonizador eurocêntrico), e inferioriza o Outro como sendo parcial, subjetivo, irracional e não-civilizado. Além disso, a estereotipação faz rotular o Outro como preguiçoso, ignorante, violento, resistente e perigoso. Com esta edificação de sua subjetividade, a elite consegue olhar para a classe trabalhadora e não enxergá-la; olhar para a trabalhadora doméstica e enxergá-la como mero equipamento da família; olhar para o filho da empregada e enxergá-lo como um estorvo.Quem se identifica com a ideologia neoliberal assiste sem nenhuma inquietação a um desmanche das leis trabalhistas em pleno estado de calamidade, quando a prioridade da vida humana deveria exigir o reforço dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal e não a sua “flexibilização” (eufemismo para redução), e adere facilmente ao discurso autoritário. Vê com naturalidade a inclusão da empregada doméstica na folha de pagamento da prefeitura administrada pelo patrão.Nessa racionalidade, de um lado, parte da classe privilegiada (autodefinida como meritocrata) protesta contra o isolamento social como um cerceamento de sua liberdade de ir e vir e um obstáculo para a liberdade econômica; de outro, é visto como natural o trabalhador sendo acionado por meio de aplicativo para fazer entregas a domicílio por uma remuneração ínfima e sem a devida proteção e a trabalhadora cuidando do cachorro dos patrões enquanto ninguém cuida de seu filho. Como se vê, para enfrentarmos com a dignidade devida o sofrimento da família de Miguel, precisamos ir além da punição dos culpados diretos e nos colocarmos em julgamento com a autocondenação de, no mínimo, nos comprometermos em promover as mudanças necessárias para que as vidas negras no Brasil efetivamente importem! Como adverte Ana Cristina Santos: “Superar o racismo só será possível se tivermos condições de reconhecer privilégios, de rever atitudes costumazes, mas principalmente, depende da nossa capacidade de pensar conjuntamente questões como economia e raça, entendendo que classe tem cor e que essa é uma relação estrutural impossível de ser analisada a partir da fragmentação. A história de Mirtes, para além da tragédia e do horror que pontuou sua Blackout Tuesday, continuará naturalizada e anônima enquanto insistirmos em olhar esse fato como a história de uma mulher e não de milhares de mulheres, como uma notícia extraordinária de jornal, enquanto pensarmos que punir uma pessoa, atendendo nosso justo e sazonal desejo de justiça, resolverá essa dor lancinante que cala no peito do povo negro dia após dia, através dos séculos.”[v] Diante do quadro concreto, a indagação que deveríamos nos propor é: não fosse a morte prematura, quais sofrimentos ainda estariam reservados para Miguel na realidade social brasileira? Ao nos colocarmos perante essa questão, somos obrigados a perceber que muito ainda será preciso realizar para mudar essa trágica realidade. Precisamos, no mínimo, reconhecer que as promessas vazias de uma vida melhor para todos e todas já foram feitas nas leis e na Constituição Federal. Cumpre-nos, agora, de uma vez por todas, exigir e fazer a nossa parte para que tais promessas saiam do papel. E essa é a hora! Jundiaí, 05 de junho de 2020.  [i] Sobre a necessidade de garantir o isolamento social para as trabalhadoras domésticas e do cuidado, v. https://www.cartacapital.com.br/blogs/sororidade-em-pauta/na-pandemia-por-que-servico-domestico-e-classificado-como-essencial/[ii] BUTLER, Judith. Vida precária: Os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.[iii]  MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. 3. ed. São Paulo: n-1edições, 2018.[iv] CASARA, Rubens. Estado Pós-Democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio: Civilização Brasileira, 2017. p. 133.[v]. SANTOS, Ana Cristina. A morte de Miguel e a invisibilidade das tantas Mirtes do Brasil. Viomundo. 2/6/2020. Disponível em:https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/o-protesto-diante-das-torres-gemeas-do-recife-e-a-invisibilidade-de-mirtes.html?utm_medium=popup&utm_source=notification&utm_campaign=site. Artigo publicado originalmente no site Jorge Souto Maior  no dia 05 de junho de 2020.

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