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Por que o espanto com a frase “merdocracia neoliberal neofascista”?

Artigo publicado originalmente no site da revista Carta Capital no dia 20 de janeiro de 2020. ***** A frase em sentença de juiz só assusta pelo que contém de realidade A rápida e exagerada reação ao texto de uma sentença proferida recentemente em que cita as palavras “merdocracia neoliberal neofascista” nos impõe ao menos duas reflexões importantes. O que afinal de contas compõe o conteúdo de um Estado democrático? E do que temos tanto medo? Leia na íntegra sentença que critica governo Bolsonaro como “merdocracia neoliberal neofascista” Sentença vem do verbo “sentire”, pois traduz o sentimento que se tem acerca dos elementos do caso concreto. Não se trata de proferir decisões desconectadas das provas existentes no processo ou não fundamentadas juridicamente. Nada disso. Trata-se apenas de honrar o termo que designa o ato em que o Estado, através do Poder Judiciário, manifesta-se nos autos de um processo. Mas manifesta-se através de um ser humano, de alguém que sente e sofre. Sentimento é expressão de afeto. O juiz não está fora do mundo. Somos “seres-no-mundo”, expressão que Heidegger cunhou para explicitar o fato de que as pessoas, as coisas, os acontecimentos interferem naquilo que somos e no que expressamos. A violência também. E o momento presente é de extrema violência, representada por falas e atos oficiais que não hesitam em destruir direitos, eliminar empregos, facilitar mortes. A sentença, que é objeto de virulentas reações de conteúdo pretensamente moral, faz referência a fatos que são ainda mais violentos, e tristemente reais. A recomendação de “abstinência sexual como política pública” ou a denúncia do Presidente da República por “incitação ao genocídio indígena” no Tribunal Penal Internacional, não são ilações. São fatos. Outros poderiam ser citados, como o escárnio do Presidente para com a tortura sofrida pela Presidenta Dilma, o fato de durante a campanha ele haver sugerido “fuzilar a petralhada”, os pronunciamentos em relação ao desaparecimento e a morte do pai de Felipe Santa Cruz ou à tortura sofrida pela jornalista Miriam Leitão. O texto-denúncia incluído na sentença mais parece um desabafo, uma forma pública de gritar contra o mecanismo neofascista posto em marcha no Brasil. Um mecanismo bem representado pelo vídeo recentemente publicado pelo Secretário de Cultura que, segundo Jair Bolsonaro, era “de verdade”. Alguém que “atende o interesse da maioria da população brasileira, população conservadora e cristã”. Este texto não irá discutir a oportunidade ou não de que tais referências políticas estejam inseridas em uma sentença judicial. Admitamos, porém, que as questões estão imbricadas. Afinal de contas é esse quadro político fascista e conservador que vem determinando os rumos da legislação brasileira, especialmente da legislação de proteção a quem vive do trabalho. Mas a questão principal não é essa. O problema parece estar especialmente no fato de que Jerônimo Azambuja Neto chamou nosso estado de uma “merdocracia”. Segundo André Mendonça, da AGU, ele violou o Código de Ética da Magistratura em razão de seu linguajar. Afinal, ele usou a palavra merda. Seria cômico, se não fosse trágico. Ora, o Presidente da República disse “puta merda” e “porra” ao cumprimentar empresários em um encontro oficial, conforme aponta Painel da Folha de S. Paulo. Em agosto de 2019, ele aconselhou as pessoas a “fazerem cocô dia sim dia não para reduzir a poluição ambiental”. No carnaval, publicizou vídeo de conteúdo escatológico e referiu-se à prática de “Golden Shower”. Ao falar com um “fã asiático”, fez alusão ao órgão sexual do rapaz, perguntando se era “pequeninho”. Em abril, ao se referir à imagem do Brasil no exterior, disse: “Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”. O filho Carlos Bolsonaro chamou uma criança de “garotinha de merda”, enquanto o outro, Eduardo, twittou “se for para falar esse tipo de merda p/ imprensa pelo menos dê os nomes ou então fica quieto”. Isso apenas para ficar com os exemplos mais escatológicos. O governo, portanto, não deve se escandalizar com o linguajar utilizado na sentença. Na realidade, o texto incluído em decisão judicial só causou tamanha reação, porque denuncia o que estamos vivendo no Brasil: a ilusão de uma democracia nunca concretizada. Ou talvez, a realidade de uma democracia liberal, que não passa de aparência; que não é para todos. Se olharmos para as últimas décadas, facilmente perceberemos que a Constituição de 1988 nunca foi realidade para boa parte da população brasileira. Veremos que a lógica da tortura institucionalizada e de eliminação dos indesejáveis também se manteve, mesmo sob o manto de uma constituição cidadã. Desde que a lógica da violência institucional não disfarçada, de verbo e de ato, foi vencedora nas eleições presidenciais, a pouca ilusão que tínhamos, de que vivíamos em um ambiente democrático, deu lugar a realidade da censura. A Resolução recentemente editada pelo CNJ, sobre o uso de redes sociais pela magistratura brasileira, é exemplo disso. Como bem referiu o conselheiro Luciano Frota, em seu voto vencido, “estabelecer, a priori, a proibição de manifestação de opinião ou de crítica pública, partido político a candidato, a liderança política, sem considerar o contexto, é impor censura prévia, frustrar o exercício da cidadania, cercear a livre manifestação de pensamento”. Se estão amordaçados, as juízas e juízes falarão em suas sentenças? O que assusta, portanto, é a denúncia, é a coragem de dizer o que muitos pensam, mas calam. O que assusta é adoecimento social, provocado por um governo que flerta impunemente com o autoritarismo, com o nazismo, e que está fazendo com que as pessoas, em diferentes espaços de fala, sintam a necessidade de enunciar a violência de que têm sido vítima. Sintomático que isso ocorra em uma sentença trabalhista, pois talvez seja esse o âmbito do Poder Judiciário que mais vem sofrendo assédio moral, por parte do governo, com sua política de retirada de direitos e asfixia da instituição. A denúncia de que vivemos uma “merdocracia neoliberal neofascista” só assusta pelo que contém de realidade. ***** VALDETE SOUTO SEVEROÉ Presidenta da AJD - Associação Juízes para a Democracia. Diretora e Professora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS; Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e Juíza do Trabalho.  

A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929)

Alberto Muñoz Alonso, Flávio Roberto Batista, Jorge Luis Souto Maior, Márcio Bilharinho Naves, Marcus Orione, Pablo Biondi1) Aspectos gerais da obra A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929)A Sunderman publica a obra máxima de Evgeni Pachukanis, A teoria geral do direito e o marxismo, pela primeira vez traduzida diretamente do russo. A tradução foi feita por Lucas Simone (doutorando em Língua e Literatura Russa pela USP, tradutor experiente que já realizou atividades de tradução de grandes autores da literatura russa para as Editoras 34 e Companhia das Letras e professor de língua russa) e revisada por uma comissão de professores da Faculdade de Direito da USP e doutores em direito também pela mesma universidade.A comissão de revisão foi integrada pelo maior especialista brasileiro do pensamento de Pachukanis, o professor Márcio Bilharinho Naves, da Unicamp, além de mais três professores da Faculdade de Direito da USP (Marcus Orione, Flavio Roberto Batista Júnior e Jorge Souto Maior) e dois doutores em direito (Alberto Alonso Muñoz e Pablo Biondi).O volume inclui ainda mais seis ensaios de Pachukanis, escritos entre 1921 e 1929, inéditos em qualquer língua ocidental. Neles Pachukanis polemiza com a doutrina jurídica do Direito Público (particularmente com autores clássicos no Direito Administrativo, como Maurice Hauriou e Léon Duguit, e as ilusões da criação do conceito de “função social da propriedade” pelo direito burguês), com a Filosofia do Direito (um incisivo artigo em que procede à demolição do formalismo jurídico positivista, especialmente o de Hans Kelsen) e com a Teoria Geral do Estado (implodindo a concepção reformista do Estado como árbitro institucional neutro, acima das classes, destinado a realizar um pretenso e abstrato “bem comum”).A obra inclui ainda um prefácio de autoria do professor Márcio Bilharinho Naves, apresentando a obra de Pachukanis, além de uma introdução à análise marxista-pachukaniana do direito, de autoria de Christopher J. Arthur, professor da Universidade de Sussex, traduzida por Júlia Lenzi, Thamiris Molitor e Marisa Grigoletto.O volume compreende, por fim, uma biografia de Pachukanis, duas bibliografias selecionadas (uma ampla seleção de suas obras e uma lista dos estudos mais relevantes sobre Pachukanis), além de um remissivo e um índice onomástico.2) A perspectiva da forma jurídica em A teoria geral do direito e o marxismoEm A teoria geral do direito e o marxismo,publicada originalmente em 1924, Pachukanis desenvolve ao máximo sua concepção acerca da forma jurídica, erigindo um monumento teórico, a pedra fundamental da crítica marxista do direito. Nessa obra, que conta com um texto de introdução e sete capítulos, o jurista russo opera uma revolução metodológica na maneira de se compreender o direito, inclusive dentro do marxismo, se considerarmos a originalidade, o rigor e a força teórica de sua tese no bojo do debate jurídico soviético, que tinha como pano de fundo o problema do direito na transição socialista em curso na Rússia soviética do período.Alguns elementos desse debate podem ser vislumbrados nos prefácios escritos por Pachukanis, especialmente no prefácio à segunda edição. Apesar de, em seu percurso, nosso autor dialogar com variados teóricos marxistas do direito, pode-se dizer que o centro de sua elaboração estava na polêmica com Petr Stutchka, cujo pensamento mostrou-se mais influente no Comissariado do Povo para a Justiça. Numa respeitosa polêmica entre camaradas de partido, Pachukanis defende suas posições das críticas de Stutchka e indica o eixo de sua preocupação metodológica. Reivindicando os apontamentos de Marx e Engels relativos ao fenômeno jurídico, especialmente aqueles que foram feitos em O capital e no Anti-Dühring, a tese pachukaniana constata uma orientação comum nesses escritos, e que propicia um deslocamento no estudo do direito: rompe-se com a leitura tradicional focada na normatividade, na regulamentação coercitiva externa dos indivíduos e das relações sociais, e se parte para um exame centrado no sujeito de direito, categoria basilar ao princípio moderno e jurídico da igualdade.Na Introdução de sua obra, Pachukanis anuncia, de imediato, o objetivo de alcançar as categorias jurídicas mais fundamentais e abstratas, ou seja, dos conceitos que, sendo próprios do direito enquanto uma forma histórico-social determinada, são definidores dele a despeito de quaisquer mudanças eventuais no seu conteúdo concreto. É somente por meio desses conceitos que se pode separar o jurídico do não-jurídico, inclusive historicamente. E é bem essa a “obsessão” de Pachukanis: historicizar o direito, circunscrevê-lo no âmbito de relações de produção específicas, compreender as condições em que ele pode ter lugar no mundo, as condições que inibem o seu desenvolvimento e, principalmente, as condições para a sua superação.Teorias como as de Stutchka, que modificam o conteúdo social a ser identificado no direito (dominação de classe, e não mais o bem comum e a justiça, como propõem a maioria das leituras burguesas), mas que ignoram as determinações da forma, são incapazes de conduzir a crítica marxista de maneira consequente, tampouco de superar os horizontes ideológicos da dogmática jurídica. Pois antes de se perguntar qual a natureza do direito de cada época, é preciso indagar se tal época reúne os fundamentos sociais necessários para que se configure o objeto histórico conhecido modernamente como direito. Fora desses marcos, o que se tem é uma eternização do direito, ou seja, o seu entendimento como uma sombra que pairaria sobre sociedades tão diferentes entre si como a asiática, a escravista, a feudal, a capitalista e mesmo a socialista. Pachukanis explica que uma conceituação jurídica pretensamente válida para qualquer situação histórica só pode ser vazia e dogmática:As abstrações jurídicas fundamentais que são geradas pelo pensamento jurídico desenvolvido e que são as definições mais imediatas da forma jurídica em geral refletem relações sociais determinadas e, além disso, extremamente complexas. A tentativa de encontrar uma definição do direito que respondesse não apenas a essas relações complexas, mas à “natureza humana” ou à “sociedade humana” em geral, deve inevitavelmente levar a fórmulas escolásticas, puramente verbais (PACHUKANIS, 2017, p. 79).Uma noção de direito que possa abrigar contextos histórico-sociais radicalmente distintos afasta-se, inevitavelmente, do método dialético apresentado por Marx nos Grundrisse e aplicado em sua plenitude em O capital. Pois esse método, aplicado por Pachukanis com maestria – não como um vulgar paralelo entre economia política e direito, e sim como atento manuseio da lógica marxiana –, obriga-nos a tomar os elementos abstratos como mero ponto de partida, de maneira que se faça um movimento em direção aos elementos mais concretos. Deter-se no momento da abstração impossibilita a captura da concretude histórica. E mesmo no instante do abstrato, é preciso tomar o referencial correto. No caso do direito, esse referencial não pode ser a norma, cuja presença é uma constante também no domínio da moral, da técnica, da arte etc. Há que se tomar o sujeito de direito como a categoria mais simples e elementar do fenômeno jurídico. Mais do que isso: há que se tomá-lo como uma categoria real, operante, como uma manifestação do princípio materialmente atuante, e não meramente ideológico, da igualdade jurídica.E o que é o sujeito de direito? Consiste ele no indivíduo formalmente livre, igual aos demais e proprietário de si mesmo, movido por uma razão utilitária de mercado, que persegue seus interesses particulares, estabelecendo relações jurídicas com seus pares. Na sociedade contemporânea, essa descrição corresponde a todo e qualquer cidadão, independentemente de sua posição de classe. Ora, é justamente essa abstração das classes sociais e das características concretas que qualifica o sujeito de direito como tal, e que permite o singular método capitalista de exploração: a extração da mais-valia é realizada não por um déspota que subjuga pessoalmente o seu inferior, mas por um empresário capitalista que, como contratante, iguala-se ao proletário que vende sua força de trabalho. A troca de salário pelo uso da força de trabalho dissimula a extração do valor excedente. No plano aparente, tudo não passa de uma inocente permuta de valores que se equivalem. O direito, assim, conforma material e ideologicamente as figuras do mercado, assegurando a circulação e a produção capitalistas. Sendo essa, pois, a origem do elemento jurídico na história, já que o sujeito de direito é um desdobramento necessário da economia mercantil, tem-se que apenas a sociedade capitalista – a única sociedade na qual o produto do trabalho necessariamente assume a forma de mercadoria, e na qual a própria força de trabalho converte-se em artigo de comércio – está apta para produzir a forma jurídica e o sujeito que a instrui. Nas palavras de Pachukanis (2017, p. 146-147):Somente nas condições da economia mercantil é gerada uma forma jurídica abstrata, ou seja, a capacidade de ter um direito em geral separa-se das pretensões jurídicas concretas. Só a transferência constante de direitos, originada no mercado, cria a ideia de um portador imóvel de direitos. No mercado, aquele que obriga, obriga-se simultaneamente a si mesmo. Da condição de parte que demanda, ele, a cada momento, passa para a condição de parte obrigada. Desse modo, cria-se a possibilidade de abstrair-se das distinções concretas entre os sujeitos de direitos e reuni-los em um só conceito genérico.Sob o prisma do sujeito de direito, Pachukanis relocaliza o elemento jurídico de maneira extraordinária, a ponto de habilitá-lo para examinar criticamente não apenas o direito em si, como também a sua relação com certas áreas “fronteiriças”, a exemplo do tema do Estado. Desse modo, foi o jurista russo quem lançou as bases para a recente compreensão do Estado como forma política capitalista, como modelo de dominação de classe peculiar à sociedade burguesa. Isto porque a teoria pachukaniana foi a primeira a problematizar o fato de que, no capitalismo, a dominação política realiza-se por meio de um aparato dotado de traços de impessoalidade, de um ente que se pretende um terceiro garante, um árbitro imparcial devotado ao bem comum. Essa aparência, conforme demonstrou o autor, antes de ser um genial artifício da classe burguesa, é uma determinação histórica que dialoga diretamente com o sujeito de direito, pois tal sujeito, enquanto representação jurídica do indivíduo no mercado, não pode submeter seu semelhante pela força na eventualidade numa lide. Apenas uma instância superior, equidistante aos litigantes – e que reconheça, portanto, a sua igualdade jurídica – pode exercer de maneira centralizada a repressão social.No capítulo derradeiro de A teoria geral do direito e o marxismo, Pachukanis comprova o vigor de sua elaboração ao lidar com um campo do direito no qual, à primeira vista, não caberia falar em determinações de ordem mercantil. Comparando as formas pré-capitalistas de punição com o direito penal da sociedade burguesa, o teórico russo capta uma diferença qualitativa: com o advento do capitalismo, a persecução penal assume feições que são originárias da lei do valor. A punição por meio de uma privação de liberdade por prazo determinado “é a forma específica pela qual o direito penal moderno, ou seja, burguês-capitalista, põe em prática o princípio da retribuição equivalente” (PACHUKANIS, 2017, p. 215). Trata-se aqui do princípio da igualdade jurídica, o qual promove um tempo de purgação de liberdade abstratamente correspondente ao dano praticado e à responsabilidade do réu, o que configura uma referência ao sistema de trabalho abstrato subjacente ao mercado.Entretanto, é seguro dizer que a mais importante reflexão apresentada na obra máxima de Pachukanis é a superação da forma jurídica. Coerentemente com o horizonte da historicidade das formas sociais, o marxista soviético não hesitou em declarar que, seja como decorrência lógica das categorias de análise, seja como necessidade histórica do processo de transição socialista, o direito não pode ter lugar numa formação social que ultrapasse os marcos do capitalismo. A destruição da economia capitalista e de seus elementos ligados ao valor, nessa ordem de considerações, solapa as bases materiais do elemento jurídico. Assim como não poderiam existir formas comunistas de mercadoria, dinheiro, capital e trabalho assalariado, já que tais categorias são, em si mesmas, determinações capitalistas, também não se poderia conceber a presença de um “direito comunista”, e nem mesmo de um “direito socialista”. No período de transição socialista, a tarefa colocada pela revolução proletária não é a construção de um novo edifício jurídico, mas sim a demolição do antigo de acordo com a dinâmica possibilitada pela transformação do modo de produção e a partir de uma organização puramente política e revolucionária, a saber, a ditadura do proletariado.3) Sobre os ensaios escolhidos no período de 1921 a 1929Como visto na seção anterior, o ponto alto da formulação pachukaniana n’A teoria geral do direito e o marxismo é sua teoria da forma jurídica. Durante mais de três décadas, os únicos elementos disponíveis em língua portuguesa para a compreensão dessa formulação eram aqueles trazidos no próprio texto traduzido, primeiro em Portugal nos anos 70 do século XX e, mais tarde, no final da década de 80 do mesmo século, no Brasil. Mais recentemente, o estudo pioneiro de Márcio Bilharinho Naves, Marxismo e direito – um estudo sobre Pachukanis, com acesso a textos russos inéditos em português, trouxe mais algumas luzes ao tema. Mesmo assim, o debate da crítica marxista do direito ainda se ressentia da falta de acesso a outros textos de Pachukanis.Isso explica a imensa importância da publicação, pela primeira vez fora da Rússia e em tradução direta, dos seis ensaios reunidos neste volume, com destaque para a curadoria bastante meticulosa do próprio Márcio Bilharinho Naves, que privilegiou textos ainda não distorcidos pelas autocríticas forçadas que Pachukanis foi obrigado a fazer pelo regime stalinista a partir de 1930. Além da seleção, é relevante também sua disposição no volume, em ordem não cronológica que privilegia o diálogo dos ensaios avulsos com a obra A teoria geral do direito e o marxismo. Esses textos revelam o lugar extremamente importante que a teoria pachukaniana do Estado ocupa na análise da forma jurídica.No primeiro desses ensaios, “Para um exame da literatura sobre a teoria geral do direito e do Estado”, Pachukanis antecipa os principais elementos de sua crítica da forma jurídica ao escrutinar o pensamento de Hans Kelsen. É nele, já em 1923, que Pachukanis constata que “a assim chamada ‘ideia do direito’ nada mais é do que a expressão unilateral e abstrata de uma das relações da sociedade burguesa, a saber, da relação entre proprietários independentes e iguais, uma relação que é a premissa ‘natural’ no ato de troca” (p. 234). A perspicácia de Pachukanis já o leva a intuir que essa ligação levará Kelsen a uma concepção jusnaturalista que nega toda a depuração metodológica inerente ao seu normativismo.Nos outros cinco ensaios, a questão do Estado assume grande relevância. Em três deles, Pachukanis estabelece o diálogo com o publicismo francês, com especial destaque para León Duguit e, principalmente, Maurice Hauriou. Em “Um exame das principais correntes da literatura francesa sobre o direito público”, Pachukanis é muito feliz em apontar as divergências entre Duguit e Hauriou como divergências entre frações da classe burguesa, contrariando aquelas opiniões que viam no solidarismo de Duguit algo próximo do socialismo. A diferença principal, aponta, encontra-se na maior lucidez apresentada por Hauriou em defender sua posição de classe, reafirmando os princípios do individualismo burguês, os quais estão, aliás, na base de sua teoria da forma jurídica. Essa divergência se reflete na teoria do Estado: Duguit, como consequência de seu abandono da concepção subjetivista do Estado e do direito, que o leva até mesmo a recusar o conceito de direito subjetivo, rejeita também o conceito de soberania estatal, apoiando-se em uma concepção de solidariedade de matiz durkheimiana. Sua repreensão por Hauriou e até mesmo as críticas injustas que recebe de positivistas como Berthélemy são, aos olhos de Pachukanis, sintomas de que “à teoria burguesa do direito e do Estado estão vedados os caminhos do desenvolvimento progressivo. Por isso, qualquer tentativa de dar um passo adiante é rapidamente interpretada como a intenção de sair dos limites da sociedade burguesa, ainda que o próprio autor desejasse sinceramente não tanto mover-se, mas ficar parado no mesmo lugar” (p. 248).Por fim, em outros dois ensaios, Pachukanis debruça-se especificamente sobre a questão do Estado soviético, comentando O Estado e a revolução, de Lenin, quando se completavam os dez anos de sua publicação, e abordando a luta contra o burocratismo após a consolidação da tomada do Estado pelos bolcheviques. No primeiro destes dois ensaios, Pachukanis retoma os ensinamentos de Lenin sobre o fenecimento do Estado e sua contraposição tanto ao anarquismo, com sua pretensão de abolição imediata do Estado, e do reformismo kautskista, que pretendia fazer a transição ao socialismo sem a tomada violenta – e consequente destruição – do Estado burguês. Diante do apontamento por Lenin dos quatro pilares que distinguem o Estado-comuna do Estado burguês – “a participação geral das massas na administração (...), a eletividade e a amovibilidade de todos os funcionários públicos” e sua remuneração pelo “salário médio de um operário, a substituição das instituições parlamentares por instituições ‘de trabalho’” – Pachukanis faz uma leitura dura e sincera do Estado soviético, identificando os avanços e sucessos nessa seara. A reflexão é bastante aprofundada no último dos ensaios, na verdade uma transcrição de uma conferência proferida em 5 de abril de 1929 no Instituto de Edificação Soviética, em que Pachukanis debate com outros pensadores soviéticos as causas do burocratismo que assolava o Estado soviético e as possibilidades de luta contra ele.Em síntese, estes são os mais importantes aspectos revelados pela leitura destes ensaios: a unidade do pensamento pachukaniano e a ligação intrínseca entre sua crítica do direito e sua crítica do Estado.REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAPACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). Tradução: Lucas Simone. Coordenação: Marcus Orione. Revisão técnica: Alberto Muñoz, Flávio Roberto Batista, Jorge Souto Maior, Márcio Bilharinho Naves, Marcus Orione, Pablo Biondi. São Paulo: Editora Sundermann, 2017.OS AUTORES:Alberto Muñoz é Doutor em Direito e Filosofia pela USP, Flávio Roberto Batista é Professor Doutor do DTBS/FDUSP, Jorge Souto Maior é Professor Associado do DTBS/FDUSP, Márcio Bilharinho Naves é Professor aposentado do IFCH/UNICAMP, Marcus Orione é Professor Associado do DTBS/FDUSP e Pablo Biondi é Doutor em Direito pela USP.

8 de março: porque paramos hoje

Célia Bernardes, Elinay Melo, Fernanda Orsomarzo, Janine Ferraz, Juliana Castello Branco, Laura Benda, Lygia Godoy, Naiara Brancher, Patrícia Maeda, Renata Nóbrega, Roselene Taveira, Simone NacifHoje, 8 de março, nós, mulheres em luta, paramos.Paramos para lembrar das trabalhadoras que lutaram por melhores condições de trabalho nas greves de 1857 e 1911. Por todas aquelas que perderam suas vidas na luta pela redução da jornada e reconhecimento da dignidade dos trabalhadores. Paramos pelas sufragistas e por todas aquelas que ainda lutam pela igualdade na participação política entre mulheres e homens.Paramos porque sabemos que a estrutura doméstica recebeu do capital distinção para ser reduzida ao local em que o trabalho é não-produtivo e, sendo assim, é coisa de mulher. Paramos para que seja devolvido à mulher o reconhecimento por todo e qualquer trabalho por ela realizado, independentemente de o capital apenas catalogar como produtivo aquele que pode ser mercantilizado [1].Paramos pela implementação de políticas públicas que possibilitem o acesso isonômico das mulheres ao mercado de trabalho, como restaurantes de baixo custo, lavanderias públicas, creches e berçários.Paramos porque na iniciativa privada há uma grande diferença salarial entre homens e mulheres que exercem a mesma função e porque, mesmo no serviço público, apesar da aparente igualdade salarial em virtude do concurso prestado, chefias e funções comissionadas são exercidas majoritariamente por homens. [2] Paramos por todas as trabalhadoras terceirizadas. [3] [4]Paramos porque até nós, juízas, mesmo ocupando cargos de destaque na estrutura de Poder brasileira, também sofremos o preconceito, ora velado, ora escancarado, de partes, advogados, servidores e de nossos próprios pares [5], observando, inclusive, que numericamente os altos postos do Poder Judiciário ainda são ocupados majoritariamente por homens.Paramos para lembrar que o patriarcado está impregnado em nosso seio social, de uma forma que muitas vezes nem sequer percebemos. Sem nos darmos conta, seguimos alimentando a (falsa) ideia da superioridade masculina.Paramos pelas agressões machistas diárias travestidas de “piadas” e “cantadas”, fruto de uma sociedade que enaltece a prática do assédio [6].Paramos para dizer que nosso corpo é só nosso [7]. Não é uma extensão da família, não é um apêndice da sociedade, não deve se curvar ao capital. Paramos, também, pelas mulheres pobres que morrem em decorrência de complicações em abortos clandestinos, sendo-lhes negado o direito de decidir sobre seu próprio corpo.Paramos pelas mulheres que encaram uma maternidade solitária por escolha do homem, decorrência de uma sociedade que naturaliza o abandono paternal, impondo exclusivamente à mãe o sustento, educação e guarda dos filhos, enquanto a responsabilidade do pai - inclusive afetiva - é propositalmente esquecida [8].Paramos pelas mulheres que dizem não. Não ao casamento convencional, não à maternidade, não aos serviços domésticos. Paramos pelas artistas, pelas lésbicas, pelas trans, pelas não binárias, pelas prostitutas e por todas as que quebram os paradigmas que lhes são impostos [9] [10]. Pelas mulheres que, donas das suas vidas, decidem por não serem “belas, recatadas e do lar” e são hostilizadas e discriminadas por isso.Paramos, também, pelas mulheres que insistem em dizer que feminismo é “mimimi”, sendo vítimas de séculos de um patriarcado que nos divide.Paramos pelas mulheres negras, que são ainda mais objetificadas, violentadas, assassinadas e discriminadas que todas as outras [11].Paramos pelas mulheres indígenas. Paramos porque nós, ameríndias [12], estamos em cada terra tomada, em cada ventre de índia violada, em cada língua indígena esquecida, em cada receita tradicional servida e compartilhada como ato de resistência aos alimentos ultraprocessados [13] e as novas doenças cara pálida que lhes fazem par. Nós, ameríndias, estamos em cada aldeia levantada, em cada semente espalhada.Paramos pelas mulheres camponesas. Paramos pela primeira, pela derradeira e por todas as que, no interregno de nossa existência no Planeta Terra, sejam nômades, sejam sedentárias, construíram e apanharam seus instrumentos de trabalho, extraíram da natureza e do campo a sobrevivência de si e dos seus.Paramos pelas meninas que têm a infância roubada, quer pelo trabalho infantil, quer pelo abusos e exploração sexual intra e extra familiar, oriundas, em sua maioria, das camadas mais pobres da sociedade, e vítimas da falta de políticas públicas e assistência do Estado [14] [15].Paramos pelas mães, avós, mulheres e filhas dos mortos nas chacinas de Acari, do Vidigal, da Candelária e de tantas outras chacinas que formam esse holocausto cotidiano de jovens brasileiras, em sua maioria, negras e pobres.Paramos pelas mulheres encarceradas, grande parte delas com filhos nos ventres [16]. Pelas mães separadas de seus filhos. Pelas esposas e filhas abandonadas no cárcere por seus maridos e pais. Pelas esposas, companheiras, mães e filhas submetidas a tratamento desumano nas revistas íntimas quando vão visitar seus familiares nas penitenciárias.[17]Paramos para lembrar de Marina Menegazzo e Maria José Coni, molestadas sexualmente e assassinadas em uma praia do Equador, no verão de 2016, assim como de Lucía Perez, estuprada e violentamente morta na Argentina, além de todas as mulheres que diariamente sofrem abusos e violência [18].Paramos em nome de Isamara Filier, Liliane Ferreira Donato, Alessandra Ferreira de Freitas, Antonia Dalva Ferreira de Freitas, Abadia das Graças Ferreira, Ana Luzia Ferreira, Larissa Ferreira de Almeida, Luiza Maia Ferreira, Carolina de Oliveira Batista, todas assassinadas em 31 de dezembro de 2016 em Campinas/SP, pelo ex-marido da primeira, que não aceitou a separação [19].Paramos em nome da Presidenta Dilma Rousseff, que desde a campanha de 2014 até a efetivação do golpe dissimulado pelo instituto do impeachment, foi permanentemente atacada em sua condição de mulher, pelo simples fato de estar ocupando um lugar no espaço público do poder que não era considerado seu por direito [20]. Paramos, portanto, para denunciar o caráter misógino do golpe parlamentar de 2016. [21]Paramos ainda pelas presas políticas que, por serem mulheres, não sofreram apenas a tortura física e emocional foram também submetidas a abuso sexual e estupros coletivos [22].Paramos por muitas mulheres. Paramos para seguir com Mary Wollstonecraft, Frida Khalo, Simone de Beauvoir, Dandara Zumbi, Nísia Floresta, Nise da Silveira [23], Pagu, Olga Benário, Rosa Luxemburgo, Berta Lutz, Laudelina de Campos Melo, Rose Marie Muraro. Maria Verone, Marie Curie, Virginia Woolf, Rosa Parks, Carolina Maria de Jesus, Irmãs Mirabal, Débora Maria Silva, Azoilda Loretto da Trindade, Enir Terena, Damiana Guarani Kaiowá, Margarida Maria Alves. Paramos por todas essas mulheres que, à frente de seus tempos, não aceitaram a discriminação de gênero e se destacaram em diversas áreas do conhecimento, marcando, com suas lutas, o feminino revolucionário, na história e na vida.Paramos pelas mulheres que se libertam. Por todas as que, diante da violência doméstica, decidiram (e conseguiram) deixar os seus lares. Também pelas mulheres que, ao entenderem que o sentimento que as unia aos seus companheiros não era mais fato propulsor da união, seguiram seus caminhos. Permanecemos paralisadas pelas mulheres que, por um motivo ou por outro, tiveram que sair de suas casas, sem poder trazer consigo seus filhos e suas filhas.Paramos pelas mulheres que dizem sim. Sim ao chamado de sororidade [24]. Sim à diversidade que reforça nossos elos. Sim à vida doméstica não submissa, que resgata nossos espaços de luta e de força. Sim ao domínio do nosso próprio corpo. Sim ao conflito que agrega e nos fortalece juntas.Paramos, finalmente, por nós mesmas. Estamos a postos, sem a opressão do dever, mas com todas as forças do ser e toda a propulsão do vir a ser.Paramos hoje para lembrar que:sua dor é nossa dor;sua riqueza é nossa riqueza;sua salvação é nossa salvação eseu combate é nossa luta.E você? Por que para hoje?[1]http://justificando.cartacapital.com.br/2016/10/12/helena-hirata-situacao-da-trabalhadora-nao-e-nem-sera-facil-nos-proximos-anos/[2]http://justificando.cartacapital.com.br/2016/12/07/nao-e-dificil-ter-chefa-mulher-dificil-mesmo-e-ser-mulher/[3]http://justificando.cartacapital.com.br/2016/07/06/matando-um-leao-por-dia-o-cotidiano-da-trabalhadora-terceirizada/[4]http://justificando.cartacapital.com.br/2016/11/23/terceirizacao-tem-rosto-de-mulher/[5]http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/22/o-impossivel-de-julgar-e-o-feminino/[6]http://justificando.cartacapital.com.br/2016/07/27/o-machismo-nosso-de-todo-dia-assedio-sexual-e-moral-no-trabalho/[7]http://justificando.cartacapital.com.br/2016/06/09/mulheres-livres-tambem-sao-estupradas/[8] http://justificando.cartacapital.com.br/2016/07/13/maes-valentes-pais-covardes/[9]http://justificando.cartacapital.com.br/2016/07/21/reconhecimento-da-atividade-da-prostituta-e-caminho-para-resguardar-direitos-e-assegurar-cidadania/[10]http://justificando.cartacapital.com.br/2016/06/16/12-de-junho-de-2016-a-naturalizacao-do-odio-pelo-discurso-da-fe/[11]http://justificando.cartacapital.com.br/2016/08/24/da-senzala-ao-protagonismo-as-cotas-e-a-mudanca-do-ponto-de-partida-das-mulheres-negras/[12] http://justificando.cartacapital.com.br/2016/08/04/quem-somos-as-amerindias/[13]http://justificando.cartacapital.com.br/2016/11/02/alimentos-processados-nao-sao-emancipadores-da-luta-feminista/[14]http://justificando.cartacapital.com.br/2016/06/29/meninas-invisiveis-o-trabalho-domestico-infantil-nao-revelado-nas-estatisticas/[15]http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/01/nao-foi-boto-sinha-violencia-contra-mulher-ribeirinha/[16]http://justificando.cartacapital.com.br/2016/09/21/juizes-transgressores-mulheres-encarceradas/[17] http://justificando.cartacapital.com.br/2017/01/25/quem-interessa-revista-vexatoria/[18]http://justificando.cartacapital.com.br/2016/11/16/voces-vao-se-arrepender-de-levantar-mao-para-nos/[19] http://justificando.cartacapital.com.br/2017/01/11/comecar-de-novo/[20]http://justificando.cartacapital.com.br/2016/09/07/lutemos-pela-democracia-como-mulheres-que-somos/[21]http://justificando.cartacapital.com.br/2016/06/22/pintemos-o-rosto-de-sangue-a-barbarie-de-ontem-nao-se-repetira-amanha/[22]http://justificando.cartacapital.com.br/2016/10/26/vestir-sombras-expandir-silhuetas-as-mulheres-ditadura-e-cartografia-das-cidades/[23]http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/15/o-nascimento-de-nise-da-silveira-vida-e-obra-inacabada/[24]http://justificando.cartacapital.com.br/2016/06/02/o-que-e-sororidade-e-por-que-precisamos-falar-sobre/

O fim de mais um outubro sob o trauma do Carandiru reforça a relevância das lutas da AJD

André Augusto Salvador Bezerra e Eduardo de Lima GalduróMais um outubro chegou ao fim. Mais um outubro em que a sociedade brasileira relembrou – e dele não se desvencilhou – o trauma do Massacre do Carandiru, a violenta reação estatal ocorrida em 02 de outubro de 1992, em São Paulo, a um amotinamento de presos na penitenciária de mesmo nome, com o absurdo saldo de 111 detentos mortos e nenhum policial baleado ou ferido gravemente.Dias antes do aniversário de 24 anos desse símbolo máximo da política pública de neutralização de indesejáveis – que há séculos tem dizimado corpos pobres, negros e periféricos –, o episódio ganhou nova repercussão. A 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, conhecida por seu rigorismo penal, a ponto de ser o colegiado que mais rejeitou recursos interpostos pela defesa na corte paulista (índice superior a 80% de rejeição, segundo estudo da Associação Brasileira de Jurimetria -ABJ), anulou julgamento que, em primeiro grau, condenara 74 policiais acusados de envolvimento no massacre.A decisão não representou novidade. Em 2006, o comandante da operação, Coronel Ubiratan, já havia sido judicialmente absolvido. Da mesma forma, desconhece-se qualquer tentativa de efetiva responsabilização daqueles que, do ponto de vista da hierarquia administrativa, encontravam-se em posição de superioridade sobre todos os policiais militares envolvidos.A insuficiência do Direito PenalÉ necessário e urgente problematizar, preferencialmente com base em estudos sérios e dados empíricos, essa aparente renitência do sistema de segurança pública em ser tão efetivo na investigação e responsabilização em casos de abuso estatal quanto o é na criminalização de pobres, negros e periféricos. Cumpre, de outro lado, não aceder ao discurso fácil que enxerga na atribuição de responsabilidades individuais, mormente por meio da aplicação de penas, a salvaguarda emancipatória de estratos sociais historicamente excluídos, ou a resposta definitiva ao problema da violência estatal.O Direito não cria realidades; regulamenta relações sociais e econômicas pré-existentes e já bem estabelecidas. Essas relações podem ser desiguais, opressivas e excludentes, como é próprio em uma sociedade de conflito. Assim também será, necessariamente, o Direito que as legitima. O apartheid, o nazismo, a escravidão, para ficar nos exemplos mais óbvios, eram todos perfeitamente legais. Os movimentos que contra eles resistiam, não.Neste contexto, o aprisionamento massivo, ainda que com base legal, tem sido historicamente utilizado ora como instrumento de disciplinamento e integração forçada ao mercado de trabalho, em tempos de escassez de mão-de-obra (ocasiões em que as teorias de ressocialização ganham força), ora como meio de simples neutralização do excedente de força de trabalho não absorvido pelo mercado, portanto inútil ao sistema de produção (quando passam a grassar as teorias preventivas, de dissuasão). A forma jurídica da prisão tem em seu DNA, portanto, a gestão diferencial da pobreza, por meio de exclusão e submissão, conforme as necessidades do sistema produtivo.O Direito Penal, enfim, não foi estruturado para a emancipação de estratos sociais excluídos e nem tampouco para garantir o empoderamento de minorias. Não há, realmente, como se esperar dele a superação do trauma do Carandiru.As demandas históricas da AJDO quadro acima desenhado reforça a relevância do enfrentamento de velhos problemas estruturais brasileiros, para que novos massacres, como o ocorrido 24 anos atrás, não continuem a ocorrer. Revela-se imprescindível, por isso, recordar demandas históricas da Associação Juízes para a Democracia (AJD) que, em maio deste 2016, comemorou 25 anos de fundação.Não há, nesse sentido, como se conceber a superação do trauma do Carandiru sem pensar no fim da política de Estado de encarceramento em massa dos estratos mais pobres da população, abandonados em estabelecimentos penais que mais se parecem com masmorras medievais. O Brasil ostenta, atualmente, a vergonhosa posição de quarta maior população carcerária do mundo, cujo crescimento diário é superior a de qualquer outro país, sem, contudo, apresentar resultados práticos, a não ser a colocação dos encarcerados ao mando de organizações criminosas e o aumento da violência dentro e fora dos muros das penitenciárias.Da mesma forma, é imperioso reforçar a luta pela desmilitarização de uma polícia, como a brasileira, que, de acordo com o 10º Anuário de Segurança Pública, recentemente publicado, mata em seis dias o mesmo número de pessoas que a polícia britânica mata em 25 anos. Em seus anos de atuação, a AJD tem defendido a criação de uma só polícia, vinculada, de fato e de direito, ao poder civil de governos estaduais democraticamente eleitos, o que auxiliaria a sociedade a vencer resquícios da ditadura civil-militar pós-1964, que insistem em subsistir em pleno século XXI.É preciso ainda reforçar a luta pela adaptação o Judiciário aos tempos pós-Constituição de 1988, de tal forma a definitivamente se desgarrar de quaisquer resquícios ditatoriais. O Judiciário brasileiro mantém-se, no presente início de século, prevalentemente masculino e branco (em contraste com a população negra carcerária), cujos membros são, em sua maioria, oriundos de um sistema de ensino jurídico acrítico, que, por consequência, leva a construção de conhecimento que naturaliza as mais diversas formas de violações existentes em relação aos estratos excluídos da população, especialmente a componente do sistema penitenciário.Daí a necessidade da exigência do comprometimento para com os Direitos Humanos daqueles que, por concurso público ou por nomeação política, ingressam na magistratura. Recorda-se aqui a mobilização realizada pela AJD e por magistrados, sucedida cerca de um ano depois do caso do Carandiru, que conseguiu impedir que o titular da pasta da Segurança Pública, por ocasião do massacre, fosse indicado para ocupar uma das vagas reservadas a membros do Ministério Público no então existente 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo.Demandas históricas da AJD, como as acima citadas, partem do pressuposto de que os avanços sociais dependem da restrição – e não da ampliação – do punitivismo estatal. A relação das minorias excluídas do sistema com o poder de punir deve sempre ser a de lutar por sua limitação através da aplicação efetiva das garantias constitucionais, como deve ocorrer em um Estado de Direito; jamais na direção inversa, no sentido de utilizar o poder punitivo como meio – canhestro, inidôneo – de obtenção de direitos e empoderamento de setores historicamente excluídos. Não se pode erigir um sistema que é estruturalmente seletivo e cujos pilares ideológicos justificam toda sorte de abusos aos direitos fundamentais das classes subalternizadas como móvel de emancipação social.A ser assim, muitos outros Carandirus ainda virão.Artigo publicado na edição on line da seção de Política de O Estado de São Paulo, em 08/11/2016.André Augusto Salvador Bezerra – presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD).Eduardo de Lima Galduróz, secretário do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

Práticas restaurativas: o desafio de transformar

Fernanda S.P. de Lima CarvalhoA violência é conhecida; a paz é um mistério.(J.P. Lederach)“Violência é o comportamento de alguém incapaz de imaginar outras soluções para o problema em pauta.”(Bruno Bettelheim)O presente texto busca retratar a forma como as práticas restaurativas são transformadoras e transformam formas de agir e ser dos próprios praticantes. Foi escrito após o término das atividades de 2015 do Grupo de Estudos de Justiça Restaurativa da Escola Paulista de Magistrados, coordenado pelo colega Egberto Penido.A partir dos ensinamentos de Edgar Morrin, que nos conta sobre o entrelaçamento de tudo o que existe, com a construção de sua teoria sistêmica, e dos escritos de Humberto Maturana, que nos lega o entendimento de autopoiese e interdependência de todos os fenômenos, buscarei exemplificar transformações ocorridas no olhar de Magistrados que ingressaram na carreira com determinada visão de mundo, inseridos em sua cultura particular, com suas próprias biografias e referências e estão, atualmente, em constante transformação de sua maneira de entender a conflituosidade humana e formas adequadas de aborda-la.Pequeno e simples Glossário antecipado dos Vocábulos Usados:Violência – Toda ação que provoca medo, exclusão, desempoderamento, constrangimento, silêncio, dor física ou moral.Violência estrutural – as diversas formas de violência que permeiam a vida cotidiana e as relações entre as classes menos favorecidas economicamente/ hierarquicamente inferiores e as classes hierarquicamente superiores/favorecidas.Práticas Restaurativas – ações estruturadas, segundo os princípios restaurativos, com a finalidade de resgatar valores esgarçados e tecer redes de apoio a transformações tomadas como necessárias.Princípios Restaurativos- Voluntariedade, sigilo, simetria nas relações, escuta empática, acolhimento, reparação, equilíbrio.Justiça Restaurativa - abordagem do conflito que eleva o ofendido e suas necessidades à posição de destaque, por meio de escuta empática e empoderamento. Enfoca, simultaneamente, as necessidades do ofensor e as motivações de sua ação. Objetiva a transformação do padrão de atuação violento e o atendimento das necessidades do ofendido, com suporte de ampla rede de apoio no meio em que se encontra inserido.Ofendido- quem sofre violênciaOfensor- quem pratica violência(ressaltando-se que a visão sistêmica implica em "descongelamento" destes papéis, uma vez que eles são alternáveis e dinâmicos)Escuta qualificada – Oitiva atenta da narrativa de outra pessoa, sem julgar, sem interpretar, sem interromper.Escuta Empática – Oitiva integral da narrativa de outrem, colocando-se em seu lugar, em seu contexto cultural, familiar, sócio econômico, emocional. Colocar-se “em sua pele”. Vestir seus sapatos”.Pois bem. Partindo do entendimento de violência, chega-se à seguinte reflexão : a atuação do magistrado que ignora a complexidade dos fatores envolvidos nos conflitos, que silencia e desempodera os seus necessários protagonistas, que impõe condutas que não se adequam à sua realidade, ignorando suas necessidades, que não busca algum tipo de reparação ou transformação de comportamento NÃO SERIA UM FAZER VIOLENTO ???Nós Juízes envolvidos com práticas restaurativas ingressamos todos na carreira movidos pelo desejo de contribuir, de forma positiva, na vida das pessoas. Contribuir com nossa visão de mundo, nossos valores, para RESOLVER conflitos.Iniciamos nossa atuação, porém, imbuídos de “autocentramento no Poder”, conforme expressado por um colega do Grupo, acreditando que nossas decisões seriam dotadas de força capaz de solucionar os problemas que nos são diariamente colocados. Com o passar do tempo, fomos entendendo que a complexidade das relações humanas demanda um entendimento de que somos detentores de um poder que necessita ser deslocado do centro de direção e entrar em composição com vários outros potenciais poderes, dentre os quais os dos próprios envolvidos no conflito.Necessitamos agir de forma empática, estabelecendo conexões mais humanas com os jurisdicionados, por meio das narrativas que nos são trazidas. Necessitamos estar equipados de escuta qualificada. Como afirma Jean Paul Lederach, em sua obra " A Imaginação Moral": “Poder sugere que a conversa faz diferença: nossas vozes são ouvidas e têm algum impacto sobre a direção do processo e sobre as decisões tomadas.”Uma colega desabafou, no Grupo de Estudos de Justiça Restaurativa que formamos na EPM que, depois de alguns anos de atuação, sentiu-se “engolida pelo sistema”, tendo ingressado na carreira com valores e princípios restaurativos, sem sequer ter tomado com eles contato. Sua angústia, sentida por muitos colegas, residia no aprisionamento em uma atuação meramente formal e distanciada da complexidade humana que se encontra no cerne os conflitos, cuja eficácia ora questionamos.Se, por um lado, trabalhar assim gerava conforto e segurança, por outro trazia, junto com a acomodação, enorme frustração em relação aos resultados efetivos de seu trabalho.Mesmo no ambiente cartorário, a relação verticalizada de chefia, sem qualquer espécie de empoderamento e voz dos serventuários, segundo a Magistrada, acabava por perpetuar conflitos invisíveis e violências não ditas. Ora, introduzir instrumentos de participação em ambiências coletivas não significa perder o controle, mas criar uma percepção clara de que “a voz conta e é contada”, nas palavras de Jean Paul Lederach.Relataram vários colegas que a utilização de círculos restaurativos para abordar novas questões e conflitos ocultos trouxe enorme motivação e senso de pertencimento dos serventuários à estrutura do Poder Judiciário. E, como Corregedores, passaram este Juízes a se sentir mais integrados, atuando conjuntamente, com suporte e apoio bastante mais íntegro, sentindo sua humanidade resgatada e seu Poder legitimado.Da mesma forma, ao permitirmos maior envolvimento com as questões que nos são trazidas, permitimos refletir e rever comportamentos nossos, no ambiente de trabalho e em nossas vidas pessoais, que não estejam pautados pela real intenção de criar relações íntegras, verdadeiras e harmoniosas. Identificamos com mais facilidade o que, em nossas vidas, está a contribuir com a criação de uma verdadeira Cultura de Paz.É certo que necessitamos de imaginação, criatividade, habilidade e casualidade para transcender a violência cultural e estruturalmente impregnada em todas as relações. Precisamos, antes, compreender que fazemos parte de um padrão violento, e que nossas opções e comportamentos afetam diretamente todas as relações que tecemos.Como Magistrados, passamos a entender que nossa missão profissional não é RESOLVER , conflitos, pois sem a participação daqueles diretamente envolvidos, tal tarefa revela-se impossível. As consequências do uso de tal Poder revelam-se, na grande maioria das vezes, catastróficas, mormente quando estamos no terreno das relações familiares ou continuadas, mas também quando nos deparamos com ofensas que geram em todos desestruturação psíquica e social.Ao invés de desejar POR FIM aos conflitos, por meio do instrumento formal da lei, passamos a ABORDÁ-LOS, encarando sua complexidade e fazendo uso do ferramental adequado, bem como os encaminhamentos necessários ao trabalho que reconhece a INTERDEPENDÊNCIA de tudo o que existe.Construir a rede de apoio e trabalhar em rede, fazendo os encaminhamentos necessários, de forma continuada e monitorada, revelou-se o caminho do entrelaçamento de saberes e capacidades, forma mais rica e integrada de operacionalizar nosso trabalho cotidiano.A justiça restaurativa revela novas possibilidades e potências. Entendemos, sem embargo, que devemos estar preparados para ingressar no terreno dos riscos e incertezas, sempre nos pautando nos princípios que fundamentam tal prática, o que nos confere a segurança de que o caminho trilhado é o correto e que, ainda que o resultado final não corresponda à melhor solução para o conflito, transformações de comportamento definitivas certamente se produziram em todos os envolvidos.Nós, Juízes, precisamos lidar com a frustração e a verdade da impotência perante inúmeras situações que, para além da abordagem adequada, demandam intervenções de ordem econômica, social, psíquica e anímica. Mas a certeza de que entendimentos e aprendizados ocorrem a todo momento para todos que trabalhamos desta forma preventiva e curadora sempre nos alimenta nesse fazer.Reconhecemos que a confiança é necessária à quebra dos padrões de violência com os quais nos acostumamos a trabalhar.Descobrir esta vocação, lugar em que nossas capacidades e potências se entrelaça com as necessidades do mundo, faz-nos sentir muito mais confiantes e instrumentalizados para nossa atuação, contribuindo, de fato, para a construção de relações humanas mais dotadas de sentido e harmonia.Afinal, não foi com esse propósito que nos tornamos Juízes???Fernanda S.P. de Lima CarvalhoJuíza do JECCRIM- São VicenteMembra da AJD

A democratização do Judiciário: o momento para uma discussão racional

André Augusto Salvador BezerraO atual momento do país evidencia a insuficiência da vigência, sem efetiva aplicação, de uma Constituição como a de 1988. A previsão de amplos direitos oriundos da mobilização social que acompanhou os trabalhos da Assembleia Constituinte não tem impedido retrocessos autoritários.O Judiciário, que poderia exercer papel protagonista na defesa da democracia e dos direitos humanos, não tem, de modo geral, conseguido impedir os retrocessos. Tal Poder nega-se, constantemente, por exemplo, ao diálogo com os movimentos sociais; por sua vez, age decisivamente no crescimento do Estado policial, lotando, via decreto de prisões, o sistema carcerário brasileiro.Cabe, assim, investigar os fundamentos pelos quais a leitura predominante das normas jurídicas em vigor, pela atividade jurisdicional, tem favorecido o uso repressivo dos direitos, em vez de privilegiar seus fins emancipatórios pela igualdade e liberdade. Situação paradoxalA tarefa acima colocada não é simples. O Judiciário trabalha sob uma situação paradoxal que deve ser melhor compreendida.De um lado, a Constituição de 1988 proporcionou autonomia do Judiciário, enquanto Poder de Estado, no mesmo plano do Executivo e do Legislativo. No âmbito desta autonomia, assegurou ampla independência funcional aos juízes, sob o correto entendimento de que independência do Judiciário significa também independência de cada juiz, inclusive perante o tribunal a que se encontra administrativamente vinculado.Por outro lado, a vigência da Constituição não impediu que a estrutura e a composição do Judiciário brasileiro no pós-1988 não sejam distintas, na essência, da estrutura e composição do superado período ditatorial. Estrutura não democrática Lembra-se, nesse aspecto, que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), ocupantes da cúpula da atividade jurisdicional, são até hoje nomeados sem qualquer participação da sociedade civil. No processo de escolha de cada ministro, os debates democráticos perduram substituídos pelas conversas de bastidores restritas às elites políticas.Aliás, a participação da sociedade civil é praticamente inexistente na administração e na fiscalização dos tribunais. As ouvidorias são, em geral, compostas somente por membros do Judiciário; o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de controle externo, tem sua composição formada apenas por pessoas oriundas das carreiras jurídicas; a destinação do orçamento também se dá sem a atuação de qualquer movimento social. Por sua vez, os juízes continuam tendo sua vida funcional regida por norma jurídica imposta pelo ditador Ernesto Geisel em 1979, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman). Seguindo a lógica da ditadura civil-militar da época em que entrou em vigor, a Loman trata a carreira da magistratura de modo hierarquizado, a impedir o debate democrático interno acerca dos rumos do Judiciário: por isso, em regra, os juízes de 1ª instância sequer podem votar para as cúpulas dos tribunais a que pertencem. Composição não democrática Se a carreira não se adaptou à Constituição de 1988, a composição da magistratura tampouco alterou-se. Basta lembrar que, segundo censo publicado pelo CNJ em 2014, apenas 1,4% dos juízes declararam-se pretos e 0,1% declararam-se indígenas.Tais dado revelam que mais de 98% dos juízes brasileiros não são pretos ou indígenas. Em outras palavras, 98% dos juízes brasileiros possivelmente jamais sofreram uma abordagem policial em razão da cor da sua pele; 98% dos juízes brasileiros possivelmente jamais sofreram o temor de perder um pedaço coletivo de terra que consideram sagrada.Para além da experiência de quem não pertence às raças historicamente colonizadas – e que dão sustento ao que Aníbal Quijano chama de colonialidade do poder –, esses mesmos juízes são oriundos de um sistema de ensino jurídico absolutamente acrítico. Trata-se de sistema fundado no positivismo filosófico, originado no século 19, responsável por uma grave hierarquização dos saberes, que insere o conhecimento branco e ocidental no topo da pirâmide e o conhecimento, por exemplo, dos povos originários das Américas na base hierárquica.Pressão externaPara agravar o quadro acima descrito, o Judiciário tem sofrido forte pressão para legitimar o crescimento do Estado policial.Lembra-se a transmissão de programas policiais por emissoras de rádio e televisão, que festejam a violência estatal contra pessoas tidas por meras suspeitas da prática de crimes (em geral, não-brancas) e rechaçam o cumprimento do dever funcional de juízes que exercem controle rígido para coibir abusos. Tais emissoras desconsideram, portanto, sua qualidade de meras concessionárias de serviço público e seu dever de transmissão de programação educativa, na forma exigida pelo artigo 221 da Constituição.Por vezes, a pressão é mais direta. Por exemplo, recentemente um grupo de Promotores de Justiça representou, perante a Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, o Juiz de Direito Roberto Corcioli Filho. O “fundamento” da representação reside, basicamente, no fato do magistrado exercer sua independência funcional em favor do controle rigoroso sobre a atividade policial (para isso, relaxando prisões que entendia ilegais), promovendo o diálogo em conflitos sociais (designando audiência de conciliação em caso de reintegração de posse contra sem-tetos) e impedindo o abuso do poder econômico (vedando o uso de um aplicativo com base na regulação legal à atividade econômica).O momento para uma discussão racionalO atual acirramento dos debates políticos tem colocado o Judiciário no centro da discussão. O problema é que, em razão de acusações de práticas abusivas por um ou outro juiz no decorrer da atual crise política, alguns grupos historicamente defensores dos direitos dos excluídos têm clamado pela restrição à independência funcional dos magistrados, como se esta prerrogativa fosse um óbice para o Estado de Direito.É preciso ter cautela. Restringir a independência funcional é retirar, por completo, qualquer possibilidade de uma leitura jurisdicional emancipatória dos direitos. É também impedir, em definitivo, a possibilidade de decisões contrárias àqueles que Raymundo Faoro chamava de os donos do poder.O foco deve ser outro: combater déficits democráticos, como os acima apontados, para permitir que a leitura dos direitos privilegie a liberdade e a igualdade. Nesse sentido, convida-se o leitor a conhecer as propostas da Associação Juízes para a Democracia para uma Loman democrática.A tentação autoritária é grande em momentos de tensão. É preciso promover uma discussão racional para adaptar o Judiciário à democracia. *André Augusto Salvador Bezerra é mestre e doutorando pelo Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e outras legitimidades da Universidade de São Paulo (USP). Presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Texto publicado originalmente no site da Carta Capital em 22/06/2016, disponível em: http://www.cartacapital.com.br/blogs/direto-de-sao-paulo/a-democratizacao-do-judiciario-o-momento-para-uma-discussao-racional

O estranho mundo de Mariana – um conto marxista

Átila Da Rold Roesler e Rafael da Silva MarquesMariana acordou no meio da manhã completamente nua e, desorientada, percebeu que não sabia mais onde estava. Demorou para levantar-se, pois lhe faltavam forças. Estava ferida. Em pé, não conseguiu olhar direito ao seu redor. O sol forte castigava impiedosamente seus olhos. Deu um ou dois passos e desabou. Do chão, olhou em volta e não conseguiu ver nada além de montanhas de areia. Sentia o vento. Parecia estar no deserto, não havia nenhuma pessoa, nenhuma construção próxima, não havia coisa alguma. Só areia, sol e vento. Levantou-se outra vez e tentou caminhar. A sede lhe matava. O correr da areia flechava suas pernas como pequenos alfinetes. Foi então que lembrou das máquinas.Caminhou por alguns quilômetros, mas viu que era inútil prosseguir. Onde estou? Que fazer? Para onde vou? O que houve com o mundo? Não sabia. Mas por que se lembrou das máquinas?De súbito, Mariana percebeu atrás de sua panturrilha um pequeno tubo que despontava. Puxou-o com força e sangrou. Sem sentir dor, descartou a pequena peça na areia. Confusa, o gesto lhe fez lembrar de novo das máquinas.E lembrou que as máquinas reproduziram mercadorias e modos artificiais de vida, mas não sentimentos. Lembrou que as máquinas retiraram da maioria das pessoas a capacidade de pensar no outro e de ser solidário. Recordou que as máquinas comandaram a vida humana por décadas e trouxeram o caos. Mas o que houve, pensou Mariana. As máquinas teriam desaparecido também? Será que o sistema é autofágico até mesmo para elas? Por que recordava disso se não lembrava sequer da própria identidade? Por que estar nua, no deserto, ferida, no meio do nada?Os últimos passos do sistema capitalista predatório foram dados. A última máquina se desconecta de si mesma e o caos mecânico se impõe no mundo. “Onde erramos?” Essa foi a última expressão determinada pela última máquina.Mariana lembrou-se disso.Os humanos passaram a combater, como máquinas, os próprios humanos, criando máquinas e mais máquinas contra a própria humanidade, numa reprodução sem fim da mercadoria. E não eram máquinas de guerra. Eram máquinas produtivas, tecnológicas, agrícolas e do lar que começaram a pensar a produção, a rotina, a circulação, os bancos, as plantas, a própria economia. Dominados por isso, os humanos passaram a imitar a rotina das máquinas e foram perdendo a conexão uns dos outros. Perderam o sentido de suas próprias vidas. Mas, afinal, o que fazia sentido? Quem eram as máquinas?Só o que importava era a máquina e seu movimento. A sincronia com ela. O olhar vazio e frio do aço e do algoritmo. O conjunto das regras e procedimentos lógicos perfeitamente definidos que levam à solução de todos os problemas em um número finito de etapas. A inteligência é a inteligência artificial que a todos servia. Sem sentimento, compaixão e solidariedade não restou nada da humanidade. As relações líquidas e sem consistência fizeram das máquinas as donas do mundo.Mariana só então percebeu que não sentiu dor no local do ferimento. Aliás, estranhamente a peça extraída parecia parte de si. Sou um ciborgue, um robô, pensou. Meu pensamento é artificial? O que seria natural? Respiro? Sangro? Sim, logo sou orgânica. Mas não tinha muita certeza.De longe, Mariana avistou um homem vindo rapidamente em sua direção. Ele também parecia estar perdido no deserto. Vestia uma capa cinza e usava botas. Ela apressou-se para alcançá-lo. Poderia obter as respostas que lhe faltavam. Mas o sol queimava a sua face. De repente, não enxergava mais. Parou de ouvir. Sua mente tornou-se turva e, depois, escura. Perdeu a consciência de si própria. Aos poucos, a escuridão dissipou-se e Mariana voltou a si. Atônita, percebeu o homem caído na sua frente. Inerte. O que teria ocorrido? Em suas mãos, Mariana tinha sangue. E mais uma vez estava ferida. De repente, percebeu que o homem também tinha um pequeno tubo que despontava atrás de sua panturrilha. É um ciborgue, um robô, pensou.Mariana não lembrava do que havia acontecido. Poderia ter posto fim à agonia horrível de estar só no deserto e obter as respostas que tanto precisava, mas não o fez. E não o fez de forma inconsciente. Sou máquina, mas respiro, sangro? Ajo sem consciência?De repente, Mariana percebeu que não tinha mais sede. * Os autores são juizes do trabalho na 4ª Região e membros da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

Capital e trabalho: há um diálogo?

Lygia Maria de Godoy Batista Cavalcanti[1]O texto propõe-se a refletir e questionar se há diálogo na dialética capital e trabalho. Em reação às notícias que se espraiaram pelo País sobre as medidas que o presidente interino Michel Temer intenta fazer: reforma previdenciária e trabalhista, 20 Ministros do Tribunal Superior do Trabalho divulgaram “Documento em defesa do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho no Brasil” no qual afirmam a necessidade de esclarecer a sociedade quanto nefasta será a desconstrução do Direito do Trabalho, seja no aspecto econômico, social, previdenciário, segurança, político ou saúde pública. Pensando sobre isso resolvi escrever este artigo, para ir mais além, especialmente, para que não nos esqueçamos do discurso de posse do chefe dessa mesma Corte, em defesa do “negociado sobre o legislado”, levantando temática que achávamos morta desde a tentativa frustrada do então Presidente FHC em implementá-la.Assim, urge refletirmos sobre a dialética capital e trabalho. Há diálogo?Como ensinava Marx, para refletir-se sobre a dialética capital/trabalho teremos que partir da relação do ser humano com a natureza e a necessidade que o homem tem em tirar da natureza sua sobrevivência. É assim que Marx explica o conceito geral de trabalho. É através do trabalho físico e mental que o homem transforma o mundo (natureza) e a si mesmo. A categoria trabalho, então, está associada à transformação da natureza pela ação humana numa relação que distingue o homem da natureza (sem excluí-lo dela) ressignificando a própria natureza. “Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural”.( MARX, K. O Capital. v. 1, tomo I, São Paulo, 1983, p. 149).O homem tira da natureza os meios para sua sobrevivência através da ação consciente numa relação de trocas que transforma a si e à natureza. Com o trabalho, natureza e homem são transformados. A ação humana sobre a natureza através do trabalho é também uma ação da natureza sobre o humano. Essa ação consciente é que distingue a relação que o homem tem com a natureza das que outros seres têm com ela. A consciência da ação é que determina o trabalho como categoria essencialmente humana.A mente humana já construiu a casa antes da matéria ser transformada através do trabalho, antes de deixar de ser simplesmente natureza para ser objeto construído. O trabalho como ato consciente é uma necessidade indispensável à existência física e social do ser humano. O homem, então, se constitui nessa relação com a natureza como ser social diferenciando de outras espécies não somente por suas propriedades biológicas diferenciadas, mas por propriedade sócio-históricas que têm seu fundamento no trabalho.O trabalho, assim, é atividade primeira dos homens, mediante a qual eles produzem, reproduzem e transformam suas vidas. O trabalho constitui o elemento fundante, ontológico da humanidade na medida em que produz valores de uso para a manutenção da vida, para atender às necessidades elementares do homem enquanto ser vivo.Como construção histórica da exploração do trabalho acrescenta Tavares Santos, o capitalismo é que aliena o trabalho de sua condição humana. Ao ser obrigado a vender sua força de trabalho ao capitalista, o trabalhador perde sua referência de produtor de coisas úteis a ele e passa a executar tarefas que vão possibilitar a outrem o usufruto. (TAVARES SANTOS, J. M. C. Centralidade do trabalho e Crise do emprego: da história à crítica, 1976, p. 33. http://www.unicamp.br/cemarx/ANAIS).O trabalho, assim, não pertence à natureza do trabalhador é apenas condição para que esse sobreviva minimamente. O trabalho a partir desse foco é dispêndio de força de trabalho: o trabalhador apenas se esgota, não se realiza na plenitude de suas capacidades mentais e físicas. Ele vendeu seu tempo, seu sentimento, sua força, suas aspirações pelo dinheiro, e na posse de algum, pode trocá-lo por qualquer tipo de mercadoria, inclusive pelas que ajudou a produzir.Não é o trabalhador que usa os meios de produção, são esses que usam o trabalhador. O capital emprega trabalho, mas não é meio para o trabalhador gerar produtos, seja na forma de meios de subsistência imediatos, seja na forma de meios de troca, na forma de mercadorias. Ao contrário, o trabalhador é para eles meio tanto de lhes conservar o valor, quanto de criar mais-valia, isto é, serve-lhes para acrescê-lo, para sugar trabalho excedente.Em sua simplicidade, essa relação já é uma perversão, personificação da coisa, e coisificação da pessoa, pois o que distingue essa forma de todas as anteriores de trabalho humano é que o capitalista domina o trabalhador não por força de um atributo pessoal, mas apenas enquanto é "capital"; esse poderio é tão-só o do trabalho materializado sobre o vivo, do produto do trabalhador sobre o próprio trabalhador.A vida funciona em torno dessa categoria multiforme que foi totalmente desviada de sua base sociológica, fruto do entranhamento do sistema capitalista nas veias da humanidade. Dentre as transformações do mundo capitalista, não podemos deixar de apontar os efeitos das transformações nas indústrias, principalmente, nas grandes indústrias pela tecnologia. O fato é que a tecnologia assume um papel importante na produção, diminuindo substancialmente o número de trabalhadores empregados diretamente na produção.Para os utopistas do século XIX, lembra Viviane Forrester, “o fim do trabalho significava a felicidade, um objetivo supremo reivindicado”. (FORRESTER, V. Uma estranha ditadura. São Paulo, 2001, p. 91). O aparecimento da cibernética era um acontecimento desejável, supondo-se que as tarefas penosas dariam lugar a outras mais significativas e gratificantes, persuadidos de que o emprego no seu sentido estrito; daria lugar ao verdadeiro trabalho, assim como os lazeres no tempo liberado.Em verdade, a grande indústria tende a superar todas as barreiras que impeçam a dominação do capital sobre o trabalho através do desenvolvimento incondicional das forças produtivas e, mesmo assim, não consegue manter-se como, sujeito absoluto; isso seria negar as bases de sua valorização, que é o trabalho vivo. Em outras palavras, o desenvolvimento das forças produtivas que leva a supremacia do capital sobre o trabalho é também negador dessa absolutividade, já que é o trabalho vivo a fonte de valor. Diante dessa contradição, assenta Tavares Santos. “o sistema se depara com duas possibilidades: ou reinicia uma nova sucessão de formas de produção de mercadorias, ou desemboca numa crise final. Ora, o capitalismo está longe de ser um sistema neutro e ingênuo. Existem muitos interesses em jogo, interesses de vida e de morte.”( TAVARES SANTOS, 1976).De fato, as transformações ocorridas hoje na sociedade capitalista, atestam que a opção capitalista sempre será em busca de novas formas de operação dos processos de produção. Por conta disso, o desenvolvimento da ciência, que se tornou a primeira força produtiva, não redundou na criação de um suposto tempo livre de trabalho, como possibilidade concreta para o pleno desenvolvimento das capacidades intelectuais e espirituais dos indivíduos. Mas como se percebe nada há de natural no desenvolvimento da ciência, na revolução das forças produtivas. É o capital tratando de criar as condições favoráveis para seu pleno desenvolvimento, explorando o trabalho e extraindo quantidade sempre crescente de mais-valia.Como se indigna Viviane Forrester, estávamos persuadidos de que o emprego no seu sentido estrito, daria lugar ao trabalho verdadeiro, assim como aos lazeres no tempo livre. Jamais poderíamos imaginar que seu desaparecimento engendraria, ao contrário, a angústia, a miséria e essa desestabilização mundial da sociedade...”( FORRESTER, 2001)A tecnologia em si não seria responsável pelo desemprego, como adverte Tavares Santos “ um robô só tira o emprego de trinta operários na frente de produção da Toyota porque ele foi colocado ali para cumprir um papel de incrementar a produção – e consequentemente os lucros – e não para poupar esforços daqueles que estão lá produzindo” (TAVARES SANTOS, 1976)Por isso se torna imprescindível reafirmar que a tecnologia, por si só, não tem condição de suplantar a classe trabalhadora e produzir lucro para o capital mesmo não desconsiderando os desfalques que seu uso a serviço da classe proprietária tem infringido aos trabalhadores. Como mostra Mandel, “sob o capitalismo, a automação total e a introdução de robôs em grande escala são impossíveis, pois implicariam na desaparição da economia de mercado, do dinheiro, do capital e dos lucros”. (MANDEL, E. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, p. 184).Como já lembrava Marx no Manifesto Comunista, a tecnologia assimilada pelo capital é uma necessidade intrínseca ao sistema capitalista para aumentar seus lucros e colocar a classe trabalhadora na defensiva, dificultando sua mobilização por direitos. É uma necessidade de o capital revolucionar sempre e constantemente as forças produtivas.Nesse processo, onde as características sociais de seu trabalho a eles se contrapõem, por assim dizer, capitalizadas (na maquinaria, por exemplo, os produtos visíveis do trabalho se revelam dominadores do trabalho), o mesmo se dá naturalmente com as forças naturais e com a ciência, o produto do desenvolvimento histórico geral em sua quinta-essência abstrata - elas os enfrentam como forças do capital.As mudanças de paradigmas produtivos com o aumento dos investimentos em tecnologia é intensivamente poupadoras da força do trabalho vivo, em um contexto no qual, o trabalho vivo não tem mais lugar, continuando o trabalhador não só subsumido ao capital, mas sobretudo oprimido às novas formas de pressão do capital.Não podemos negar que a crise do emprego, realmente existe, mas ela também se serve para, com toda sua carga perversa, jogar os trabalhadores um contra o outro, de desmobilizar reivindicações, de neutralizar os sindicatos combativos, de tornar a busca pelo empregouma competição, uma loteria, uma jogada do mais esperto, do mais qualificado, do mais belo. E o que é pior: serve para desvincular o capital de qualquer obrigação trabalhista, legal e social. Nesse ambiente, lembra metaforicamente Tavares Santos, que, a livre iniciativa, a livre negociação impera em um ambiente que a melhor analogia é a passagem bíblica de Daniel na cova de leões: só um milagre para sair de lá com vida e com um bom salário.”( TAVARES SANTOS, 1976).Em verdade percebe-se a construção de um ambiente para tornar mais aguda a exploração do trabalho – o trabalho existe, não existe o emprego. Mas se torna importante disseminar tal ideia que serve como cortina de fumaça para ocultar o horror econômico do crescente desemprego, da precariedade e da miséria física e social, fenômenos inocultáveis que contrastam, cada vez mais brutalmente, com as imagens do mercado auto-regulador da produção automatizada de riqueza e abundância para todos.A condição exigida, é não reverter a velha ordem de valores do paradigma produtivo fordista. “Deve-se julgar arcaica” toda preocupação ligada aos que sofrem com a permanência de tal situação e toda crítica a uma modernidade que consiste em fazer o emprego permanecer tão fundamental para uns quanto o lucro o é para os que dele dependem – isso quando emprego e lucro se tornam incompatíveis. Em suma: exige-se evitar toda reavaliação e todo esclarecimento do sistema atual”(FORRESTER, V. Uma estranha ditadura. São Paulo, 2001, p. 89).Com esse ambiente, como dialogar capital e trabalho na sociedade contemporânea, na qual a cibernética não trouxe a substituição do emprego, trouxe sua eliminação, engendrando a angústia e miséria da sociedade em escala mundial.Se um por um lado o emprego desaparece ou degrada, por outro o trabalho continua disponível, necessário e vacante, mas conscientemente eliminado, e para restaurá-los depende da boa vontade do capital em um regime de exclusiva rentabilidade [...] os ofícios, as profissões mais indispensáveis, estes são considerados como ociosos, ultrapassados e mesmo nocivo do ponto de vista dos orçamentos, já que não têm vinculação com os megalucros produzidos pela especulação.”( FORRESTER, 2001, p. 81.)A noção de trabalho regride ao tempo em que o “patrão” tinha um direito divino cada vez mais tirânico, e agora estendido a potências anônimas, abstratas e fora das fronteiras nacionais. Pior. O poder sobre a força do trabalho encontra-se agora em favor de mestres sem identidade, detentores do poder sobre uma economia privada desenfreada, delirante na especulação, criada em um espaço de nação virtual e fundada em sua própria ideologia a quem se outorga todos os direitos.Como dialogar capital e trabalho em uma sociedade em que os detentores do capital são seres anônimos, totalmente divorciados das sociedades nacionais, mas que controlam a força de trabalho num totalitarismo silencioso; em razão do qual as massas sequer são consideradas força capaz de suscitar acontecimentos ou barrá-los, como o fez no advento da Revolução industrial.Obviamente sob diferentes modalidades, o capital financeiro internacional - o principal motor da globalização – exerce uma tirania implacável; diferentes formas de violência - opressão física e psicológica, a fome, o desemprego, a pobreza - sofrido por centenas de milhões de seres humanos, e centenas de milhões de pessoas no mundo.Como dialogar capital e trabalho com a desigualdade crescente que representa no mundo global. O trabalho, em sua acepção corrente perde terreno progressivamente como valor essencial da vida cotidiana. Foram com essas palavras que Jaques Robin articulista do Le Monde Diplomatique, edição espanhola de janeiro de 1997, iniciou seu artigo intitulado Trabajo, formación…: repensar las actividades humanas a la escala de la vida. (ROBIN, J. Trabajo, formación, …: repensar las actividades humanas a la escala de la vida, Le Monde Diplomatique, España, enero de 1997). Como dialogar capital e trabalho em uma sociedade na qual os noticiários denunciam o subjugo de pessoas ao trabalho forçado, seja no meio rural, em plantações, carvoarias, minas; seja nas regiões urbanas, em tecelagens, construção civil e indústrias.[2] Trata-se de um fenômeno mundial. Mesmo no coração da União Européia, o número de casos revelados pela imprensa, cada vez mais numerosos, são apenas a ponta do iceberg. Os sindicatos e ONGs na Europa estimam que centenas de milhares de trabalhadores sujeitos à execração da escravidão como relata Ignácio Ramonet, tanto na Espanha, na França, na Itália, nos Países Baixos, o Reino Unido e outros países da UE, muitos imigrantes estrangeiros, capturados em redes mafiosas que os obrigam a trabalhar e situação semelhante ao cativeiro da época do escravismo.Como dialogar capital e trabalho quando lemos o artigo de Kevin Bales no qual relata casos comoventes de escravidão contemporânea como o de Seba uma jovem de 22 anos que foi libertada em França por denúncias de vizinhos “Al ver las cicatrices y las heridas, el vecino llamó a la policía y al Comité Francés contra la Moderna Esclavitud (CCEM), el cual presentó una denuncia y se hizo cargo de Seba. Los exámenes médicos confirmaron que había sido torturada. [...]Si el de Seba fuera un caso aislado, sería de por sí bastante sorprendente, pero Seba es uno de los 3.000 esclavos domésticos que hay en París (la cifra es aproximativa).BALE, K. 2015. Disponível em: <http://www.amnistiacatalunya.org/edu/2/esclav/esclav-kevin-bales.html. Ver: BALE, K. La nueva esclavitud em la economía global. Madrid, 2000)Também é o caso de Safia KJarun, contado por Thierry Parisot em comovente artigo. Safia é uma jovem de 20 que desde que chegara a França em 1991 ficou quatro anos sob o jugo da tirania de sua patroa que além da privação de sua liberdade, sofria a privação de alimentos e maus tratos físicos. PARISOT, T. Quand l’immigration tourne à l’esclavage, Le Monde Fr, jun.1998).A escravidão contemporânea é uma realidade mundial. Está associada ao desemprego, pobreza, discriminação, e, sobretudo, ao tráfico de pessoas. Manifesta-se na clandestinidade, marcada por organizações criminosas, que através do autoritarismo, segregação social e desrespeito aos direitos humanos subjugam os trabalhadores a condições degradantes de trabalho ou análogas a de escravo.O tráfico de imigrantes acontece diante de nossos olhos e apesar de real a escravidão contemporânea é invisível, porque essas pessoas mantêm-se na clandestinidade. Ao chegarem nos países dos “sonhos” confiscam seus documentos de identidade para torná-los inexistentes perante a lei, submetidos ao trabalho de quinze a dezoito horas por dia, sete dias por semana, sem licenças ou salários, chegam ao último grau de vulnerabilidade, alienação e estranhamento.Essa realidade nos remete a Hannah Arendt quando discorria acerca da situação paradoxal posta pela era moderna, na transformação de toda a sociedade em uma sociedade operária justamente quando os avanços da técnica e da ciência anunciavam a libertação da humanidade do seu fardo mais antigo e mais natural, o fardo do trabalho e da sujeição à necessidade. Arendt, jamais poderia imaginar tamanha subsunção e opressão ao ser humano dos dias contemporâneos.Esse referencial coloca A condição humana como aporte teórico à narrativa cuja proposta é refletir sobre o trabalho de nossas mãos e o labor do nosso corpo, sobre o fazer humano e suas implicações no cotidiano de uma sociedade construída sob o ideário do trabalho, que se confronta com o paradoxo entre a força criativa e a realidade excludente.Em verdade, o capital, quando alcança um ponto de saturação em seu próprio espaço e não consegue simultaneamente encontrar canais para nova expansão, na forma de imperialismo e neocolonialismo, busca alternativas, que mesmo que a força de trabalho sofra as graves consequências, o que o que importa é o aumento de sua taxa de lucro. Não há diálogo.[1] Juíza do Trabalho 21ª Região –Membro da AJD[2]A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que 12,3 milhões de pessoas no mundo se mundo se veem submetidas a redes ligadas a criminalidade internacional, à exploração de sua força de trabalho contra sua vontade e em condições subumanas.

Ordem e Progresso

Átila Da Rold RoeslerOrdem e progresso.Desordem e retrocesso.***Desordem na democracia. Progresso para o capital e o acúmulo da riqueza.Desordem nos direitos trabalhistas.Retrocesso nas questões sociais.Ordem: não pense, trabalhe!Progresso para o fascismo. Ordem para o terrorismo de estado.Progresso para homens brancos, ricos e velhos. Ordem para as mulheres belas, recatadas e do lar.Retrocesso para as minorias.Desordem na educação, meio-ambiente, ciência e tecnologia.Retrocesso cultural.Ordem para o decisionismo.Retrocesso no acesso universal à saúde.Ordem para o entreguismo.Retrocesso na Previdência Social.Ordem para a censura.Retrocesso no combate à corrupção.Desordem de ideais.Retrocesso nos direitos humanos. Desordem de constitucionalidade.***Ordem é repressão.Progresso é para poucos.Amor ficou de fora. **** Átila da Rold Roesler é juiz do trabalho na 4ª Região e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Pós graduado em Direito e Processo do Trabalho e em Direito Processual Civil. Foi juiz do trabalho na 23ª Região, procurador federal e delegado de polícia civil. Publicou os livros: Execução Civil – Aspectos Destacados (Curitiba: Juruá, 2007) e Crise Econômica, Flexibilização e O Valor Social Do Trabalho (São Paulo: LTr, 2015). Professor na pós-graduação na UNIVATES em Lajeado/RS e na FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul.

Os 25 anos da AJD

André Augusto Salvador Bezerra e Eduardo de Lima GaldurózArtigo publicado na Folha de S. Paulo, 13/05/2016, seção on line do Tendências e DebatesA AJD (Associação Juízes para a Democracia) completa nesta sexta (13/5) 25 anos de fundação. Entidade que congrega um grupo de magistrados de todo o Brasil, a AJD tem lutado incansavelmente, em todos esses anos, em defesa da democratização do Poder Judiciário, adaptando-o ao projeto previsto na Constituição de 1988, e da efetivação dos Direitos Humanos consagrados tanto no ordenamento jurídico interno como nos tratados internacionais subscritos pelo Brasil.Respeitando a atuação política de outras associações de classe, que costumam concentrá-la na defesa de interesses carreiristas, a AJD, porém, foi instituída para seguir um caminho diverso. Por deliberação consagrada em seus estatutos, a entidade pauta-se por uma conduta despida de qualquer motivação corporativista, recolhendo daí, aliás, toda a independência e desprendimento que é inerente ao seu agir.Entende que o Judiciário, como órgão que exerce, por delegação, uma parcela de poder, está a serviço e deve satisfações ao seu único e legítimo titular, o povo (artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal).Em razão disso, empunha bandeiras de transparência, fiscalização e representatividade que nem sempre são bem vistas sob a estrita ótica corporativista. Foi uma entusiasta da criação do órgão de controle externo do Judiciário, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça).Defende a implementação de Ouvidorias Populares, com vistas a conceder à sociedade civil mecanismos efetivos de participação e vigilância sobre a atuação do Judiciário. Luta pela democratização no acesso à carreira, cujas fileiras ainda carregam um notável deficit de representatividade das minorias.A AJD, nas relações de força e dominação que permeiam uma sociedade baseada no conflito, não hesita em tomar a trincheira do desfavorecido, do miserável, do proscrito.Luta pela efetivação de um direito que possa se colocar como fator de emancipação social e valorização das minorias, afastando-se de sua vocação histórica de mero legitimador, pretensamente neutro, de relações sociais em si injustas, porque opressivas e excludentes.Daí porque tem se posicionado, sempre de forma juridicamente técnica e crítica, nas mais diversas discussões acerca dos direitos dos trabalhadores, dos presos, da população pobre de periferia, dos movimentos sociais, da causa indígena, do processo eleitoral democrático, dentre tantos outros.Exatamente por isso, causa indignação àqueles que se acostumaram a tomar o lado mais fácil dahistória, andando de mãos dadas, acrítica e continuamente, com os poderosos.A postura da entidade, de respeito incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado democrático de Direito - que, por estritamente constitucionalista e republicana, deveria ser vista como algo natural em uma agremiação que congrega titulares de cargo que detêm a incumbência de velar por tais postulados -, é entretanto encarada, por alguns, com estranheza; raciocinam como se magistratura tivesse de ser movida por um pensamento único e hierarquicamente estruturado, tal como sucede nos típicos Estados totalitários, onde a voz dissonante é sempre calada.Mas o número de aliados superou o estranhamento de poucos: juízes de todo o Brasil tornaram-se associados ou simplesmente simpatizantes das causas defendidas pela AJD, somando-se àquelas poucas dezenas de magistrados que, 25 anos atrás, fundaram a entidade.Para além da magistratura, a AJD ganhou também parceiros oriundos da academia, dos movimentos sociais e de entidades de defesa de direitos humanos, que se aliaram às demandas da entidade em favor de uma democracia de alta intensidade fundada no respeito aos direitos humanos.A todos que respeitam o espírito pluralista e republicano que se espera de uma comunidade democrática, a AJD afiança, do alto de seu patrimônio simbólico amealhado ao longo de 25 anos de história, que continuará lutando, de forma destemida, pela efetivação e manutenção das liberdades civis, dentre elas a de criticar e ser criticada.É por meio do livre debate de ideias, e não da neutralização de opiniões dissonantes, que se constrói uma sociedade livre, justa e solidária, tal como preconizado no artigo 3º, inciso I, da Constituição daRepública.À luta!ANDRÉ AUGUSTO SALVADOR BEZERRA, 44 anos, presidente do Conselho Executivo daAssociação Juízes para a Democracia (AJD)EDUARDO DE LIMA GALDURÓZ, 33 anos, secretário do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD)

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