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Declaração de Roma 2011 - Política de Drogas

Juízes LatinosDOCUMENTO DE MAGISTRADOS LATINOS SOBRE POLÍTICA PÚBLICA EM MATÉRIA DE DROGAS E DIREITOS HUMANOS1.- Três anos depois do “Documento de Magistrados, Representantes do Ministério Público e Defensores de Buenos Aires”, publicado pela “Comissão de Drogas e Democracia da América Latina”, e depois de dois anos da “Declaração do Porto de Magistrados Latinos”, documentos esses editados em sintonia com o informe recentemente publicado pela “Comissão Global de Políticas de Drogas, de junho de 2011” (integrada, entre outros, por Paul Becker, Ruth Dreifuss, Thorvald Stoltemberg, George P. Shultz, Kofi Annan, Maria Cattaudi, Richard Brenson, Carlos Fuentes e George Papandreu, bem como por três ex-Presidentes latino americanos), voltamos a insistir no fracasso da “guerra global contra as drogas“ e nas suas gravíssimas consequências para os indivíduos e para toda a sociedade.2.- Aderimos ao recente documento da “Comissão Global” no que diz respeito à necessidade de reformas legislativas no âmbito penal e às críticas expostas contra a excessiva utilização da legislação de emergência, que, nesses últimos 30 anos, apenas logrou atingir o resultado de aumentar os nichos de corrupção nos estamentos políticos, judiciais e, sobretudo, das forças de ordem e prevenção, em detrimento das políticas sócio-sanitárias e das garantias que todo Estado de Direito deve defender, de acordo com os diversos compromissos internacionais dos quais nossos países são signatários em matéria de Direitos Humanos, Sociais e Sanitários.3.- A legislação de emergência em matéria de drogas, do crime organizado e da lavagem de capitais (temas da Convenção de Viena, de l961) tem sido caracterizada, nos últimos 20 anos, pela presença de normas que violam o princípio da legalidade, inclusive mediante a criação de figuras penais de duvidosa constitucionalidade, e que violam, também, os princípios da defesa “pro homine“, da lesividade e da proporcionalidade das penas, especialmente nos casos de menor gravidade, acarretando, em consequência, a saturação do sistema judicial e o colapso do sistema carcerário com casos de pequeno potencial lesivo, desvirtuando a função e o papel do sistema judiciário no âmbito mundial e proporcionando, ainda, o fortalecimento das organizações criminosas e a corrupção, tudo em flagrante violação de todos os tratados e compromissos internacionais nessa matéria.4.- A legislação produzida nesses últimos 30 anos em matéria de drogas e sua relação com o crime organizado e com a lavagem de dinheiro caracteriza-se pela utilização de técnicas legislativas inadequadas, desveladas pela insuficiência de clareza na definição dos bens jurídicos tutelados, pela constante confusão entre tentativa e consumação e por uma indevida proliferação de verbos e conceitos, o que evidencia a sua criação por inspiração política, com base em argumentos forâneos, sem fundamentação doutrinária e sem confirmação empírica alguma.5.- As hodiernas políticas de drogas têm acarretado um agravamento dos problemas que já eram detectados na década de 70, que se agravaram nos anos 80, especialmente com o surgimento da cocaína, e que, hoje, atingem uma dimensão de extrema complexidade, principalmente em razão da dificuldade do controle da imensa movimentação de dinheiro proveniente de delitos e de sua transformação em dinheiro legal, o que está determinando a prevalência de um Estado de Emergência no âmbito social e sanitário.6.- A falta de políticas preventivas no âmbito social, sanitarista e cultural, a omissão de controle dos organismos estatais e a falta de uma coerente política criminal direcionada ao enfrentamento da acumulação e reemprego do dinheiro proveniente da corrupção de funcionários públicos, da sonegação de impostos, da evasão de divisas, do suborno, do contrabando de armas, da lavagem de capitais e do tráfico, evidenciam que as reformas legais na esfera penal somente têm sido produzidas como ”holofotes publicitários“, não resolvem o grave problema do aumento da demanda, não diminuem a oferta e, o que é pior, propiciam tal movimentação de dinheiro na esfera mundial, que, atualmente, é impossível saber, com exação, quanto desse dinheiro provém do circuito ilegal do narcotráfico ou do produto dos delitos de colarinho branco e corrupção.7.- Nesses últimos anos, temos assistido a uma preocupante confusão entre a função de segurança e defesa social com aquela que compete às forças policiais na busca de provas que permitam a um magistrado fazer um julgamento adequado. Em alguns países, especialmente no continente americano, tem ocorrido, em face da ainda presente influência da doutrina da segurança nacional, a utilização desvirtuada das Forças Armadas na repressão até mesmo da microcriminalidade. E esse fenômeno, à evidência, tem permitido a abertura de um espaço de discricionariedade que habilita todo tipo de violações ao devido processo legal, à dignidade humana e aos direitos fundamentais das pessoas, em flagrante contradição com os princípios fundamentais do Estado Democrático.8.- Além disso, esse fenômeno da indevida utilização do sistema de repressão encontra respaldo na difusão dos meios massivos de comunicação, que, segundo a lógica da propaganda, incentivam a ampliação das medidas repressivas e o recrudescimento da reforma na legislação penal. Contudo, quando essas medidas terminam em fracasso, o que ocorre com frequência, as instituições democráticas acabam sofrendo imensos e irreparáveis danos.9.- A adoção de um rígido proibicionismo em relação a um fenômeno tão complexo, que deveria ser enfrentado por todo tipo de políticas sociais, educativas, sanitárias, laborais, sem discriminação de nenhuma alternativa possível, impede que sejam discutidas ou implantadas medidas alternativas, como aquelas que produziram tão bons resultados no Canadá, em Portugal ou no Uruguay. Assim, as autoridades políticas deveriam refletir sobre a gravidade de se punir condutas de insignificante lesividade, como a do porte para consumo. As atitudes repressivas, na realidade, somente afastam os usuários de drogas do sistema sanitário, estigmatizando-os e distorcendo as funções do Ministério Público e dos juízes, deixando em segundo lugar o direito administrativo e o de família, que têm melhores e mais eficazes ferramentas que o sistema penal, que deve ser a “ultima ratio“ do sistema.10.- No âmbito da cooperação internacional e dos tratados e convenções internacionais, não é possível olvidar os princípios reconhecidos nos instrumentos de direitos humanos, como aqueles afirmados no Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. É que não há Direito Internacional isolado dos axiomas prévios dos instrumentos de Direitos Humanos e, especialmente, daqueles princípios consagrados pelo preâmbulo da Carta das Nações Unidas.11-Os instrumentos internacionais têm evidentes limitações na sua eficácia quando necessária uma rápida cooperação internacional na esfera judicial, confundem narcotráfico com terrorismo, são pouco conhecidos e aplicados e, em última análise, não favorecem o trabalho de investigação nem o processo judicial quando se trata de graves delitos transnacionais. 12.- O sistema judicial carece de instrumentos e recursos tecnológicos que permitam interceptar com eficácia e a tempo informações valiosas para conhecer e evitar operações suspeitas, abusos de poder, subornos, evasão de divisas, grandes fraudes e defraudações, tráfico ou delitos que envolvam o poder político, como a corrupção e a evasão de divisas, o que demonstra que a mera alteração de dispositivos legais constitui uma questão de forma, não de substância.13.- É imprescindível a reforma e a harmonização do sistema legislativo para que as normas contemplem respostas penais diferenciadas, de acordo com a natureza e gravidade dos delitos de trafico de drogas e de maior complexidade, garantindo-se que a reprovação punitiva seja proporcional ao injusto e às condições pessoais dos autores dos fatos, assegurando-se a possibilidade de não encarceramento e a implantação de medidas alternativas, bem como a imposição de condenações condicionais, e estabelecendo-se a alternativa utilização de soluções no âmbito do direito administrativo e do direito civil.14.- Em conclusão, reiteramos que, em face da falência da política repressiva até hoje adotada para o enfrentamento da questão das drogas, a estratégia dos Estados deve ser modificada para que sejam garantidas a assistência integral aos usuários de drogas, a realização de fortes e eficazes campanhas de informação e prevenção sobre o uso de quaisquer drogas, consideradas legais ou ilegais, e, sobretudo, a implantação de políticas públicas efetivas de inclusão social e laboral.Roma, 11 de junho de 2011.Martín Vázquez Acuña, Juez de Cámara del Tribunal Nº1 en lo Criminal de la Ciudad de Buenos Aires. (Argentina).Mónica Cuñarro, Fiscal de la República Argentina y Profesora de la Universidad de Buenos Aires (Argentina).Graciela Julia Angriman, Jueza del Juzgado Correccional Nº5 de Morón, Provincia de Buenos Aires (Argentina).Rubens Roberto Casara, Juiz de Direito do Rio de Janeiro (Brasil).José Henrique Rodrigues Torres, Juiz de Direitos de Campinas/São Paulo (Brasil).Antonio Cluny, Procurador General Adjunto ante el Tribunal de Cuentas de Portugal.José Pedro Baranita, Procurador Substituto de Portugal.Luigi Marini, Miembro de la Corte de Casación, y Presidente de Magistratura Democrática (Italia).Piergiorgio Morosini, Juez del Tribunal de Palermo, Secretario General de Magistratura Democrática (Italia).Carlo Renoldi, Juez del Tribunal de Cagliari, Miembro Ejecutivo de Magistratura Democrática (Italia).Francesco Maisto, Presidente del Tribunal de Vigilancia de Bologna (Italia).Guiseppe Cascini, Procurador Sustituto de la Repùblica, Roma (Italia).Tiziano Coccoluto, Juez del Tribunal de Latina, Secretaria de Magistratura Democrática, Roma (Italia)

Aviso Prévio Proporcional

Luiz Alberto de VargasA auto-aplicabilidade da norma constitucional que prevê o aviso prévio proporcional.CONTEXTO DE AVISO PRÉVIO PROPORCIONAL NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIROA Constituição de 1988 é um marco relevante para a afirmação dos direitos sociais no Brasil. Ainda que tal constitucionalização tenha sido tardia em relação aos demais países, a Constituição-cidadã afirmou sério compromisso com a evolução da sociedade. Antes de tudo, é importante relembrar que o processo constituinte foi, talvez, o mais importante evento político-legislativo ocorrido em nosso País, com ampla mobilização popular e acompanhamento diuturno de seus trabalhos pelos setores organizados da sociedade, gerando enormes esperanças de um novo tempo de progresso e justiça social em um Brasil, que emergia após o período obscuro do regime militar. A Assembléia Constituinte tornou-se palco de acirrada disputa parlamentar entre os blocos progressista e conservador (este último, autodenominado “Centrão”), sendo os direitos sociais reunidos no correspondente ao art. 7º do anteprojeto original, um dos principais pontos de embate[1]. Ao final, como resultado dos enfrentamentos, chegou-se a uma fórmula conciliadora, podendo-se dizer que o texto final representa um compromisso mínimo de toda a sociedade brasileira.É este compromisso mínimo expressado no atual art. 7º da Constituição Federal que foi entregue à Nação pelo Constituinte de 1988, incumbindo prioritariamente ao Poder Judiciário a tarefa de zelar pela efetivação dos direitos ali consagrados.Entre esses direitos sociais, explícitas promessas de resgate da histórica desigualdade que ainda marca nosso país, está o direito ao aviso prévio proporcional ao tempo de serviço prestado ao empregador. O direito de o trabalhador receber uma comunicação prévia do empregador de que será despedido sem justa causa é previsto no ordenamento jurídico brasileiro desde 1850, tendo sido originalmente destinado a contratos comerciais. Introduzido na legislação trabalhista em 1935 (Lei n°. 62/35), não era um direito do trabalhador, mas um dever em face do empregador em caso de rompimento contratual. Como direito do trabalhador, o aviso aparece definitivamente com a CLT (Capítulo VI, artigos 487 a 491) em 1943.[2]Não se trata de originalidade brasileira, porque tal direito está previsto na legislação trabalhista da maior parte dos países e, inclusive, se integra no macro-conceito do “direito ao trabalho”, sendo um elemento do elenco de institutos destinados a proteger o trabalhador contra os riscos da despedida imotivada e do consequente provável período de desemprego que a seguirá[3]. No caso do aviso prévio, pensava-se em conceder ao trabalhador um período de tempo em que, já sabedor do desemprego em futuro breve, pudesse reavaliar sua condição profissional, buscando um novo emprego, outra atividade remunerada ou melhor qualificação profissional. A ideia é que esse período de tempo fosse remunerado, ainda que o trabalhador não estivesse dispensado de todo da prestação de trabalho, mantendo-se parte da jornada de trabalho.O instituto do aviso prévio em tempos modernos não é tampouco exclusividade do Direito do Trabalho, mas é típico dos contratos de trato sucessivo, sendo bastante usual nos contratos de Direito Civil. Porém sua aplicação no Direito do Trabalho é tão diferenciada quanto pode ser um contrato de compra e venda em relação a um contrato de trabalho, já que o que se discute, no caso, é a proteção à pessoa do trabalhador, a preocupação com sobrevivência deste e de sua família, o resguardo da sua dignidade humana contra os riscos do desemprego e da miséria.Assim, ao estabelecer o legislador constituinte que os trinta dias do antigo aviso prévio previsto na CLT passassem a ser o mínimo para qualquer trabalhador, urbano ou rural, contratado por prazo indeterminado, implicitamente pretendeu-se assegurar, por meio da “proporcionalidade ao tempo de serviço” que os empregados “com mais tempo de casa” – e, assim, provavelmente mais idosos e sujeitos a maiores riscos em relação ao desemprego – teriam um tempo adicional remunerado para reconstruir sua vida profissional em relação aos trabalhadores com menos tempo de serviço. E, na medida em que não se pode presumir que o legislador constituinte subestimasse fortemente as dificuldades evidentes dos trabalhadores mais idosos para obtenção de novo emprego, esse “tempo adicional” certamente deveria ser significativamente superior a trinta dias, ou seja, ao período mínimo que um aviso prévio poderia ter, mínimo de proteção previsto em lei.Porém, tal direito social, como outros tantos do art. 7º da Constituição Federal, caíram no vazio, não foram efetivados mesmo após tantos anos da promulgação da Constituição-cidadã. O que ocorreu é que esses direitos, tão festejados e que tanta expectativa criaram, não conseguiram “sair do papel”, não tendo superado a infeliz conjugação da inação legislativa e da timidez dos próprios agentes sociais supostamente interessados em sua normativização pela via da negociação coletiva. Mais; também o Poder Judiciário, buscado como última esperança de efetivação, tem falhado em dar eficácia a esses direitos sociais.O acompanhamento da trajetória do direito ao aviso prévio proporcional é representativo das dificuldades de efetivação de todos os direitos sociais constitucionais, podendo-se dizer que as objeções teóricas que se lhes opõem são as mesmas e repousam em um discurso que varia desde a negativa do valor jurídico das normas constitucionais até a inexequibilidade dos direitos sociais.Porém, antes de tudo, a primeira dificuldade a ser enfrentada é a de base axiológica: a valoração do direito social como um direito humano fundamental. De acordo com a Teoria Crítica dos Direitos Humanos (Herrera Flores, 2009, p. 61-5), estes são um produto da luta coletiva concreta de determinada coletividade em determinado período histórico, ou seja, produtos culturais, não sendo o papel do jurista indiferente no resultado de tais processos. A luta pelos direitos humanos integra o processo pelo qual cada formação social, cultural e historicamente, constrói seu caminho para a dignidade. Assim, do jurista o que se espera é a atitude de compromisso com a construção de atitudes e aptidões que permitam levar adiante tais lutas por espaços mais amplos de dignidade.Sendo o Direito uma obra cultural na busca da Justiça, CAPÓN FILAS aponta como elementos estruturais do sistema: como entradas, a realidade e os valores críticos; como saídas, as normas e a conduta transformadora (CAPÓN FILAS, 1998, p. 19). Tal conduta, a ser praticada por atores sociais e operadores jurídicos, está orientada para a transformação da sociedade, quando esta pareça injusta e de pouca valia.Uma segunda dificuldade pode estar situada em uma limitada compreensão da importância dos contextos sociais, culturais e econômicos que marcam as arenas em que se disputa politicamente o real alcance que esses direitos possam ter. Uma visão supostamente universalista tende a ignorar as implicações decisivas que as concretas circunstâncias históricas e sociais podem ter na definição das lutas pelos direitos humanos. A ideia de um homem universal com direitos abstratos comuns a todos os espaços históricos e temporais minimiza a importância de compreender os direitos humanos – e particularmente os direitos sociais - como produtos da luta coletiva concreta de determinada coletividade em determinado período histórico, de modo que a contextualização dessa luta como essencial para a devida compreensão do fenômeno jurídico, sem o que se corre o risco de uma teorização vazia e descarnada, que desconhece de onde provém e, em especial, para onde se encaminha o processo de conquista de maiores e mais elevados espaços de dignidade no mundo atual.Daí, podemos dizer quea) os direitos humanos não podem ser entendidos fora dos contextos sociais, econômicos, políticos e territoriais em que se dão, devendo fugir de todo tipo de análise metafísica ou transcendental que procure negar sua essência real e material (e, portanto, humana);b) o estudo e a prática dos direitos humanos devem ser praticados desde um saber critico que desvele os conflitos de interesses dentro da sociedade. Além disso, devem ter em conta as transformações que ocorrem continuamente nos contextos sociais, culturais e políticos.Ademais, a suposta preocupação universalista também tende a reforçar análises comparativas, pelas quais se supõe que as pautas de direitos humanos de países em desenvolvimento (como o Brasil) necessariamente se estabeleçam pela adoção dos direitos já conquistados ou em processo de conquista em países desenvolvidos. No caso do aviso prévio proporcional, a escassa importância desse direito em países desenvolvidos reforça a ideia de que estaríamos diante de um “direito menor”, de pequeno valor econômico e de limitado alcance social.A diferença notável entre o instituto do aviso prévio no Brasil em relação a outros países de desenvolvimento econômico equivalente é que, em nosso país, o aviso prévio tem uma importância incomum em decorrência da inexistência no ordenamento jurídico brasileiro de um eficaz sistema de proteção contra a despedida imotivada. Em outros países, o aviso prévio tem relevância para marcar temporalmente, de forma inequívoca, o término da relação contratual (e, também sinalizar o início do prazo prescricional) e, principalmente, para determinar a causa da despedida. De fato, a legislação de outros países, em especial na Europa, a despedida deve ser fundamentada em uma causa econômica, técnica ou disciplinar, não sendo admitida a despedida sem motivação[4].No Brasil, o aviso prévio se constitui em um elemento complementar no deficiente sistema protetivo contra a despedida imotivada – e, por isso, mesmo, um elemento essencial de um sistema que carece do instituto da “despedida causal”.De fato, no Brasil vige o sistema da “despedida livre”, havendo muitos que, com exagero, vislumbram um ilimitado direito potestativo de despedida do empregador. Não é assim, mesmo porque o ato patronal está sujeito ao crivo revisional em relação, por exemplo, a eventual despedida discriminatória, em afronta ao "caput" do art. 5º da CF/88.[5]De toda sorte, comparando-se com outros países, chega-se à conclusão que o nível de proteção ao emprego no Brasil é dos menores do mundo. Os dados do Banco Mundial demonstram que o Índice de Dificuldade de Demissão no Brasil é zero, enquanto que, na Alemanha e na Argentina, ele chega a 40. Outros dados: Chile, 20; Espanha, 30; Portugal, 50 (Relatório “Doing Bussiness”, 2008).Também em relação aos custos da despedida, os dados mostram, no Brasil, despedir um trabalhador é mais barato que na média dos países da América Latina e, também, da maioria dos países europeus. Custo no Brasil: 37 semanas de salário; Custo na Argentina: 139 semanas de salário; Alemanha: 69 semanas de salário; Chile, 52 semanas; Espanha, 56 semanas; Portugal, 95 semanas.O constrangedor processo de ratificação e, um ano depois, de denúncia da Convenção n°. 158 da OIT pelo Governo brasileiro evidencia como o assunto é difícil e delicado no Brasil. Tal Convenção prevê medidas de proteção contra a despedida imotivada e, por isso, o reconhecimento de seu valor jurídico no ordenamento jurídico interno poderia ser um sucedâneo ao dispositivo do art. 7o, I da Constituição Federal. Porém, mesmo durante o curto período em que o Brasil incorporou em seu ordenamento jurídico a Convenção n°. 158 da OIT, o Poder Judiciário, através do Supremo Tribunal Federal, terminou afastando qualquer esperança de uma interpretação mais ampla das normas de proteção contra a despedida imotivada. Entendeu o STF (sessão do daí 04/09/1997), ao examinar medida cautelar na ADIN-1.480-3-DF, que as normas da Convenção nº 158 da OIT têm caráter meramente programático. Diante da denúncia da Convenção n°.158, a ADIN acabou sendo extinta sem julgamento do mérito em decisão monocrática do Relator, Ministro Celso de Mello, em 27/6/2001:“... Vê-se, portanto, que a convenção nº 158/OIT não mais se acha incorporada ao sistema de direito positivo interno brasileiro, eis que, com a denúncia, deixou de existir o próprio objeto sobre o qual incidiram os atos estatais - dec. Legisl. 68/92 e 1855/96 - questionados nesta sede de controle concentrado de constitucionalidade, não mais se justificando, por isso mesmo, a subsistência deste processo de fiscalização abstrata, independentemente da existência, ou não, no caso, de efeitos residuais concretos gerados por aquelas espécies normativas. (...) Sendo assim, e tendo em consideração as razões expostas, julgo extinto este processo de controle abstrato de constitucionalidade, em virtude da perda superveniente de seu objeto.”A validade da denúncia da Convenção n°. 158 (Decreto Federal nº 2.100, de 20/12/1996) continua em discussão no STF – ADIN- 1625. Votou pela improcedência o Min. Nelson Jobim e pela procedência parcial, condicionando a denúncia ao referendo do Congresso Nacional, os Ministros Maurício Corrêa e Carlos Britto.Como bem evidencia o recente episódio da crise econômica de 2008, quando as empresas recorreram, mais uma vez, à prática da despedida coletiva, não há, no Brasil, seja no arcabouço legislativo, seja em políticas públicas, uma proteção eficiente para os desempregados, nem medidas que desestimulem os abusos patronais quando desempregam massivamente ao primeiro sinal de crise.A tímida reação de parte do Judiciário Trabalhista, especificamente os Tribunais das 15a. e 2a. Regiões[6], que apenas suspendiam os efeitos das despedidas por determinado prazo para que negociações coletivas pudessem acontecer (medida mais do usual em outros países, em especial na Europa), foi contida pelo TST, que não encontrou base normativa para que os Tribunais Regionais concedessem este “aviso prévio de natureza coletiva”, filiando-se à corrente do ilimitado direito potestativo do empregador a despedir, mesmo que coletivamente.Destaque-se, entretanto, o voto vencido do Ministro Maurício Godinho Delgado, pelo qual:DISPENSAS COLETIVAS TRABALHISTAS. EFEITOS JURÍDICOS. A ordem constitucional e infraconstitucional democrática brasileira, desde a Constituição de 1988 e diplomas internacionais ratificados (Convenções OIT n°. 11, 87, 98, 135, 141 e 151, ilustrativamente), não permite o manejo meramente unilateral e potestativista das dispensas trabalhistas coletivas, por de tratar de ato/fato coletivo, inerente ao Direito Coletivo do Trabalho, e não Direito Individual, exigindo, por conseqüência, a participação do(s) respectivo(s) sindicato(s) profissional(is) obreiro(s). Regras e princípios constitucionais que determinam o respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, CF), a valorização do trabalho e especialmente do emprego (artigos 1o, IV, 6o e 170, VIII, CF), a subordinação da propriedade à sua função socioambiental (artigos 5o, XXIII e 170, III, CF) e a intervenção sindical nas questões coletivas trabalhistas (art. 8o, III e VI da CF), tudo impõe que se reconheça distinção normativa entre as dispensas meramente tópicas e individuais e as dispensas massivas, coletivas, as quais são social, econômica, familiar e comunitariamente impactantes. Nesta linha, seria inválida a dispensa coletiva enquanto não negociada com o sindicato de trabalhadores, espontaneamente ou no plano do processo judicial coletivo. A d. Maioria, contudo, decidiu apenas fixar a premissa, para casos futuros, de que “a negociação coletiva é imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores, observados os fundamentos supra”. Processo TST 00309/2009. Publicado em 04/9/2009. Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e Embraer, Dissídio Coletivo, oriundo do TRT 15ª. Região.Por outro lado, há de se entender a importância do elastecimento do aviso prévio a partir da insuficiência da proteção social no Brasil.Uma importância algo desmesurada do instituto do aviso prévio nas relações de trabalho no Brasil não decorre apenas da inexistência da despedida causal no Brasil, sendo este apenas um dos elementos – ainda que o principal – do deficiente sistema de proteção ao emprego. A esse elemento, já analisado anteriormente, deve-se acrescentar outros, também decorrentes da estrutura social-econômica de um país ainda insuficientemente desenvolvido e com um enorme “déficit” social que deixa à margem dos benefícios do progresso ainda significativa parte da população brasileira, ainda que o país já se encontre entre os chamados “emergentes” ou “em vias de desenvolvimento”.Entre os elementos que compõem o quadro de aguda deficiência de proteção social que atinge o “Welfare State” nacional pode-se mencionar: a insuficiência geral dos serviços públicos; a reduzida rede de assistência social (ainda que incluída a parte dos recursos públicos “desviada” da Previdência Social); a inexistência de proteção previdenciária para boa parte dos trabalhadores e a insuficiente cobertura previdenciária para os demais; a inexistência de uma política salarial que recupere a renda em geral dos trabalhadores (ainda que algo tenha sido feito, nos últimos anos em relação ao salário mínimo); a existência de uma política fiscal regressiva, que penaliza justamente os que ganham menos; uma política monetária que privilegia os que vivem de renda, prejudicando a economia produtiva; a inexistência de uma política sólida de desenvolvimento econômico que alavanque a criação de empregos e, assim, diminua o desemprego e valorize o fator trabalho na distribuição da renda nacional; entre outros.Especificamente contribuem para a vulnerabilidade do trabalhador em vias de ser despedido e ingressar no contingente de desempregados, o insuficiente seguro-desemprego, que cobre, no máximo, cinco meses de não-ocupação e, ainda assim, apenas para os trabalhadores de salário mais baixo; a baixa qualificação profissional do trabalhador brasileiro, o que dificulta sobremaneira sua realocação do desempregado; a insuficiência de crédito para trabalhadores de baixa renda e a inexistência de crédito ao desempregado.Assim, a aposição da baixa na CTPS do trabalhador marca o início de um tempo de verdadeira “tragédia pessoal e familiar”, em que a insegurança quanto ao futuro se soma à certeza quanto a um presente de penúria e privações. A data que assinala o “término da relação contratual” marca também o fim da cobertura médica para os trabalhadores que usufruem de convênio-saúde; o fim do vale-transporte; o fim do vale-refeição.Não parece difícil imaginar que o interesse do trabalhador é que tal data seja postergada o maior tempo possível. Por certo as dificuldades de recolocação aumentam conforme a idade do trabalhador desempregado. Estatísticas recentes demonstram que o afastamento dos mais idosos das atividades produtivas importa, em muitos casos, “em uma situação de precariedade e não a conquista de um benefício recebido após uma longa vida de trabalho”. De fato, a população idosa encontra maior dificuldade de ser absorvida na atividade produtiva em um mercado de trabalho cada vez mais competitivo e, assim, em geral, “sua inserção se dá em condições mais desfavoráveis — menores possibilidades de emprego, vínculos empregatícios mais frágeis, postos de trabalho menos qualificados e, não raro, principalmente para as mulheres, remunerações inferiores e instáveis” (KRELING, 2009).Além disso, conforme MARCELO AFONSO RIBEIRO, o trabalho tem um valor fundamente para todos os indivíduos, sendo uma forma de participar da construção do mundo, de forma que a impossibilidade de trabalhar pode gerar rupturas psicossociais significativas. Este autor analisa a ruptura biográfica (descontinuidade na história da vida das pessoas) decorrente de situações de desemprego, afirmando que o desemprego “produz a perda de referência e uma situação de fronteira, pois a pessoa se encontra à margem da lógica dominante, em uma situação de exclusão” (RIBEIRO, 2007). Por sua dificuldade de inserção no mercado laboral, os idosos constituem parcela vulnerável à ocorrência de depressão (OLIVEIRA, 2006), o que, por si só, justificaria uma política pública diferenciada de proteção ao emprego para esse contingente da população.O aturdimento que sofre o recém-desempregado é similar ao da crise psicótica, uma vez que as pessoas que atravessam tais situações, ainda que diferentes, sofrem experiências psicossociais semelhantes, pois “algo mudou em sua situação que não conseguem compreender, assimilar e lidar com seu momento, planejar o futuro, ficando presos ao eterno presente” (GINGRAS & SYLVAIN, 1998).Por outro lado, quanto mais “tempo de casa” tem o trabalhador, maiores são os vínculos sociais, econômicos e psicológicos que ele mantém com o emprego, sendo mais difícil o rompimento abrupto.Parece, assim, inequívoco que a postergação no tempo do momento fatal do desligamento do emprego é benéfica à saúde psicológica do trabalhador despedido, mormente quando tem maior tempo de serviço.Nesse contexto, portanto, conceder ao trabalhador despedido com maior tempo de serviço prestado ao empregador o benefício de um tempo adicional para consumação da despedida tem perfeita coerência com a realidade brasileira e com a necessidade de proteção social a um contingente mais vulnerável da população.Por fim, parece extreme de dúvidas de que a preocupação em efetivar o direito ao aviso prévio proporcional tem, ao menos, o mérito de trazer mais luz ao debate a respeito da urgente necessidade da sociedade brasileira em repensar a insuficiente proteção social ao trabalhador em geral (“livre despedida”, bem como a grupos específicos de trabalhadores (em especial, os de menor renda e/ou idosos). 2 - QUESTIONAMENTO DA BASE TEÓRICA DA NEGAÇÃO DE SUA EFETIVIDADEQuando se trata da efetividade de um direito constitucional, há de se entender as variadas objeções apresentadas pelo liberalismo, desde a negação do valor jurídico das normas constitucionais[7] até a redução de sua efetividade a conteúdos mínimos ou bastante diluídos.[8] Do mesmo modo, alguns autores apontam para a existência de direitos constitucionais meramente programáticos, negando que sejam verdadeiros direitos, mas meras recomendações ao legislador.[9] Outros, por constatarem a judiciabilidade deficiente dos direitos sociais se opõem a incluí-los como normas constitucionais, já que não representariam mais do que fonte de frustração e equívoco, pois os únicos direitos fundamentais que mereceriam esse nome seriam os individuais ligados à liberdade[10]. Por fim, também há os que negam, na prática, a aplicabilidade direta dos direitos sociais trabalhistas previstos na Constituição[11]. 2.1 Valor jurídico da ConstituiçãoEm primeiro lugar, reafirma-se o valor jurídico da Constituição, entendendo-a como norma jurídica fundamental, não apenas como no sentido de que seja fundamento de validade de todo o ordenamento, mas, principalmente, porque"contém a ordem jurídica básica dos diversos setores da vida social e política, de modo que pré-configura de forma similar aos programas de partido, um modelo para a sociedade" (OTTO, 1998, p. 44, trad.).[12]Com o passar dos anos, por uma lenta elaboração, os direitos sociais se cristalizaram nas constituições ocidentais, a elas se incorporando como valores fundantes dos Estados do pós-guerra. A normatização de tais direitos importa, na prática, na plasmação de um pacto constituinte que, abarcando amplamente as classes sociais, definiu um modelo de sociedade, que se pretende integradora e solidária e, assim, assumiu um solene compromisso de tornar realidade os direitos fundamentais, definidos como valores centrais da modernidade. É necessário lembrar que, sobre tal compromisso se assenta boa parte da legitimação democrática dos Estados modernos, passando suas constituições a ser bem mais do que emblemáticos signos de um pacto social. Elas mesmas, as Constituições, passam a ser a garantia de tais compromissos, no caso, de que os direitos reconhecidos como fundamentais sejam efetivos.Assim, formam-se desenhos básicos para a ordem econômica e para a sociedade em seu conjunto, em que não se assinala apenas para o Poder Público os limites do permitido, mas que impõe a este também o dever positivo de criar uma ordem. Assim, a Constituição, toda ela, se transforma em um programa, e a legislação já não é mais o instrumento de uma ação política livre, dentro dos limites negativos impostos pela Constituição, mas é o desenvolvimento da Constituição, do programa que ela contém. A Constituição já não incorpora somente a concepção política do que o Estado deve ser, mas sim o programa que ele deve fazer (OTTO, 1998, loc. cit.).Referindo-se à Constituição brasileira, EROS ROBERTO GRAU (2000, p. 199) denomina-a Constituição dirigente, na medida em que contém um conjunto de diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade que lhe conferem o caráter de um plano global normativo, o do Estado e da sociedade.Na correta interpretação desse plano global contido na Constituição, é preciso ter em conta os princípios fundamentais que a conformam, ou seja, a dignidade da pessoa humana, como fundamento da República e como fim da ordem econômica; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1o, IV) como fundamento da República e a valorização do trabalho humano e da livre iniciativa como fundamento da ordem econômica (art. 170, caput) e construção de uma sociedade livre, justa e solidária como um dos objetivos fundamentais da República (art. 3o, I).Além disso, a Constituição serve para fundamentar um modelo de organização política para a comunidade[13], cumprindo uma função de unificação do ordenamento jurídico em torno dos valores fundamentais, visando evitar sua dissipação por apreciações pontuais ou desvios que possam ser produzidos nos sucessivos desenvolvimentos normativos. Trata-se, assim, de colocar tais valores fundamentais a salvo de “possíveis excessos das dinâmicas políticas”, colocando-os em uma posição de “primazia constitucional” de forma que se projetem sobre toda a dinâmica normativa e atividade jurídica, sem que sejam afetados “pelas tensões ou desvios que se produzam nos planos inferiores” (PEÑA FREIRE, 1997, p. 80, trad.).[14]Estes valores, que se aglutinam em macro-conceitos da liberdade, da dignidade e da igualdade têm, nas normas constitucionais, uma forte expectativa de realização plena, ainda que diferida no tempo. Trata-se de valores permanentes e definitivos, que, ainda que possam ser atualizados, devem ser resistentes a políticas econômicas conjunturais.Assim, a mudança de expectativas econômicas, como ocorreu, por exemplo, em face da recente crise mundial de crédito, não deveria implicar em uma alteração substancial das cláusulas de bem-estar geral contidas no pacto social constituinte, que deveria ser entendidos como “intangiveis, incorporados como estão às regras fundadoras do contrato social” (BRUNET e BELZUNEGUI, 1999, p. 158)[15]. 2.2A supremacia da ConstituiçãoModernamente, não se admite que se possa resumir o poder normativo da norma constitucional a uma mera recomendação ao legislador, destituída, por completo, de efetiva e imediata aplicabilidade. Ao contrário, à norma constitucional se reconhece força normativa atual e vinculativa a todos os agentes públicos e, por efeito irradiante, também aos particulares.Conforme GARCÍA DE ENTERRÍA, reconhece-se à Constituição uma “supralegalidade material” que a ela assegura “uma predominância jurídica hierárquica sobre todas às demais normas do ordenamento, produto dos poderes constituídos pela própria Constituição, obra do superior poder constituinte”. Assim, as demais normas somente são válidas se não contrariam, não apenas o sistema formal de produção das mesmas estabelecido pela Constituição, mas, sobretudo, o “quadro de valores e de limitação do poder em que a Constituição se expressa¨ (GARCÍA DE ENTERRÍA, 1994, p. 50 trad.). Assim,(...) la Constitución es ¨resistente¨ frente a cualquier norma u orden contraria a sus mandatos (...) Esta resistencia o plus de validez, o inmunidad de la Constitución frente a todas las normas y actos que de ella derivan, es la base misma de su supremacía, y, por tanto, la piedra angular de su eficacia como pieza técnica en la construcción del Estado y del ordenamiento jurídico. (GARCIA DE ENTERRÍA, 1994. p. 64-5).Temos, aqui, dois aspectos a considerar: primeiro, a Constituição define o sistema de fontes formais do Direito e mantém uma relação de superioridade com as demais normas do sistema, de modo que a norma constitucional prevalece e afasta do ordenamento jurídico qualquer outra norma que a contrarie; segundo, tal supremacia não se baseia em razões meramente formais, mas substanciais.Assim, de um ponto de vista formal, basta por em relevo que as normas constitucionais, em seu conjunto, prevalecem sobre todas as demais normas jurídicas, sendo o parâmetro de validade no ordenamento jurídico. É o que se denomina a “primazia manifesta à vinculação constitucional” frente a todos as outras normas do ordenamento jurídico, que se constitui o elemento-chave na construção e na validade de todo o ordenamento jurídico. Por isso, em qualquer momento de aplicação das normas – por operadores públicos ou operadores privados, por juízes, legisladores ou administradores -, tal supremacia constitucional deve ser obrigatoriamente levada em conta “en el sentido que resulta de los principios y reglas constitucionales, tanto los generales como los específicos referentes a la materia de que se trate¨ (GARCÍA DE ENTERRÍA, 1994, p.95).Conforme ENTERRÍA, as consequencias mais importantes da primazia normativa da Constituição podem ser assim resumidas na completa vinculação de todos os tribunais e sujeitos públicos e privadas a todas as normas constitucionais. Por outro lado, todas as normas infraconstitucionais devem ser interpretadas no sentido mais conforme com a Constituição (princípio da interpretação conforme com a Constituição). Em caso das normas de direito ordinário não se conformarem com a Constituição, tais normas deve ser entendidas como inválidas, de forma que não devam ser aplicadas pelos Tribunais que, ao contrário, devem declará-las inconstitucionais. Alem disso, em certas matérias, em especial no que concerne à regulação de direitos fundamentais, a Constituição é de aplicação direta como norma de decisão de qualquer classe de processo, por ter revogado todas as leis que opõem à sua regulação. Por fim, em caso de leis posteriores à Constituição, entende ENTERRÍA que, em se tratando de tutela direta de direitos fundamentais, incumbe ao juiz dar efetividade à norma constitucional, independentemente da declaração de inconstitucionalidade da lei ordinária (GARCÍA DE ENTERRÍA, 1994, p. 78).Assim, se deduz o valor normativo e imediato de todas as normas constitucionais o que ¨afecta a todos los ciudadanos y a todos los poderes públicos, sin excepción y no sólo al Poder Legislativo como mandatos o instrucciones que a éste sólo cumpliese desarrollar - tesis tradicional del carácter ¨programático¨ de la Constitución - ; y entre poderes públicos, a todos los Jueces y Tribunales - y no sólo al Tribunal Constitucional¨.No mesmo sentido, em comentários à Constituição portuguesa, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA apontam a possibilidade de aplicação direta de normas constitucionais, mesmo sem lei intermediária ou contra e em lugar dela, quando se trate de normas que dizem respeito a direitos, liberdades e garantias (GOMES CANOTILHO e MOREIRA, 1991, p. 46).De outro lado, como se viu, a supremacia constitucional não se limita ao plano formal, pois se reconhece uma “força conformadora” que não se limita apenas aos direitos e garantias individuais, mas se estende também aos campos da ordem econômica e social. Conforme GOMES CANOTILHO e MOREIRA,Também está em crise a concepção clássica de Constituição que restringe a sua função à limitação do poder e à garantia das liberdades públicas. O texto constitucional não pode nem deve ser considerado como simples estatuto jurídico de repartição do poder de Estado e de garantia dos direitos e liberdades. (GOMES CANOTILHO e MOREIRA, 1991, p. 43).Tal característica de vinculatividade se encontra em todas as normas constitucionais, pois, conforme RUBIO LLORENTE, ¨a Constituição, toda Constituição que possa assim ser chamada, é fonte de direito no sentido pleno da expressão, quer dizer, origem mediata e imediata de direitos e obrigações – e não somente fonte das fontes¨ (RUBIO LLORENTE, 1997, p. 52, trad)[16].Tal pensamento é incompatível com a ideia de normas praticamente destituídas de valor normativo, implícita no conceito de normas programáticas.2.3Da superação do conceito de “normas programáticas”Um dos aspectos mais importantes na análise do valor normativo da Constituição diz respeito à aceitação ou não de que determinadas normas constitucionais seriam destituídas de juridicidade, não tendo capacidade de tutelar qualquer tipo de direito ou de interesse.Tal equívoco decorre da ideia de que parte da Constituição possa constitui apenas uma “promessa política”, destituída de força normativa, desconhecendo-se seu compromisso histórico-institucional e invertendo-se a hierarquia interpretativa, de forma a dar prevalência à regra ordinária em relação à constitucional.VEZIO CRISAFULLI combate tal ideia, afirmando que, uma Constituição é, sempre e acima de tudo, um ato normativo, não diversamente da Lei Ordinária, mas dotada de um maior valor. Em conseqüência, as contradições internas devem ser eliminadas, dando-se prioridade às normas postas na Constituição, enquanto fonte superior a qualquer outra lei posterior. Ademais, o autor “reprova o procedimento administrativo e da jurisprudência de superar as contradições, suprimindo praticamente um dos termos (a Constituição nova), aplicando-se o direito precedente, como se a Constituição não fosse lei (ato normativo), e lei predominante e superior” (LYRIO PIMENTA, 1999, p. 151).GOMES CANOTILHO, a respeito da Constituição portuguesa, pondera ser pouco apropriado falar de “normas constitucionais programáticas”, preferindo o termo “normas-fim”, pois “informam uma atividade” e “dirigem materialmente à concreção constitucional” (GOMES CANOTILHO e MOREIRA, 1991, p. 89). Mesmo tais normas não são meras “exortações morais”, “promessas” ou “apelos ao legislador”, juridicamente não providos de qualquer vinculatividade, pois a elas se reconhece “positividade jurídico-constitucional”. O autor português as denomina “normas diretivas de ação estatal de alcance essencialmente político”, pois é certo quenão se limitam a legitimar a pressão política sobre os órgãos competentes, não sendo irrelevantes sob o ponto de vista jurídico-constitucional: por um lado, podem constituir fundamento constitucional de ações e medidas estatais que, sem elas, poderiam não ser constitucionalmente lícitas; por outro lado, elas consubstanciam valores constitucionais que não podem deixar de ser relevantes em sede de interpretação constitucional (e legais).(GOMES CANOTILHO e MOREIRA, 1991, p. 113)

O poeta, o cidadão & a cidade

Carlos Felipe MoisésOs poetas de antigamente, quando falavam da cidade, falavam no geral com admiração e orgulho, a paisagem urbana tinha para eles uma marca positiva, índice de dinamismo, progresso, modernidade. Havia uma ou outra voz destoante (o Baudelaire dos “Tableaux parisiens”, o T.S. Eliot de “The waste land”, o Cesário Verde de “O sentimento de um ocidental”), mas o que predominava era o fascínio e o encantamento.Já os poetas de hoje veem a cidade assim: Um slide[Sérgio Alcides, O ar das cidades, São Paulo, Nankin, 2000, págs. 30-31]Mal consigo ler a cidade no meio das letras a gente fora dos outdoors.Há muitos destroços de palavras e luzes, rebites e bits cobrindo o coração.Suponho que tem um coração (e erro).Não distingo seu ruído pelas ruas que clamam Pour Élise.Ponho este poema – um slide – deitado na linha do horizonte.Não desisto de desatar o enleio dos edifícios na paisagem-pregão.Se houver um desabamento o poema ficará no ar escorado nos gritos.Mas os letreiros, não.O Tietê não vai ao mar [Ruy Proença, Visão do térreo, São Paulo, Editora 34, 2007, págs. 39-40]Vem, Lídia, enlacemos as mãos e atravessemos correndo as sete pistas da via expressa para não sermos atropelados como os cães.Vem, Lídia, cheguemos mais perto do rio retificado ignoremos o barulho dos carros, o mato das margens. Ignoremos os detritos na correnteza e o cheiro nauseabundo.Vem, Lídia, mas não nos sentemos: que a surpresa de um cadáver com ratazanas pode nos casar a ferro quente para toda a eternidade.Vem, Lídia, desenlacemos as mãos, não mais nos toquemos. Simplesmente deixemos a vida passar como o rio passa: sem religião, um féretro, um morto.Labirinto [Tarso de Melo, Lugar algum, Santo André, Alpharrabio, 2007, pág. 45]é da ordem do lugar não conseguir voltar conscientemente ao mesmo ponto, perder a cada passo o rumo previsto e qualquer segurança no que vem a seguir; é comum mesmo quando há menos pessoas (e quase nunca há menos pessoas aqui), que lojas troquem de lugar quando as procuramos, barbearias virem casas de café que viram lojas de bugigangas que viram alfaiatarias que viram passa-se-o-ponto e desaparecem à luz do dia; é aventura do lugar fixar linhas imaginárias, afirmar pontos de referência, transpor a multidão de um ponto a outro levando na mente aquele de que se partiu e aquele a que se quer chegar (até que, nele, se desfaz a ilusão de achar que chegamos)“Meu avô não viu” [Annita Costa Malufe, Nesta cidade abaixo de teus olhos, Rio de Janeiro, 7Letras, 2007, pág. 17]meu avô não viu os anos noventa sob os monumentos dispersos na cidade antevejo algumas cicatrizes lugares que não foram meus tempos não são mais que lugares dispersos em uma cidade cicatriz que não foi nossa tempos dispersos e meu avô não viu os lugares não viu os nossos lugares naqueles anos meu avô e os monumentos da cidade os anos noventa e os outros anos – lugares a que não temos como ir “a cidade deserta” [Diniz Gonçalves Júnior, Decalques, São Paulo, Ed. do A., 2008, pág. 65] a cidade deserta lírica, imprecisa um menino atrás do seu sonho seu outubro fugindo da maquinaria incessante de seus dias iguaisUm outro homem inacabado [Donizete Galvão, O homem inacabado, São Paulo, Portal, 2010, pág. 61]Nesta cidade impermanente um homem jamais está inteiro. Parte perdeu-se em alguma rodovia, outra sonha com montanhas, água de bica, cachoeiras, maresia.Esta cidade de São Paulo nunca está arrematada, corpo sempre em retalhos, mutantes arquiteturas que não penetram nas veias.Nesta cidade de São Paulo um homem constroi sua casa como uma flor amarela que teima em brotar em zona de perigo.Efêmera, como outras, destinada à demolição. Casca fina e provisória, fraca diante das ventanias, das máquinas e da solidão.Nesta cidade dividida cada homem é estilhaço, entulho jogado na caçamba porque há outro na fila para ocupar o seu espaço.É só meia dúzia de exemplos, eu poderia acrescentar uma, duas dúzias, mas é o suficiente para mostrar que o fascínio exercido pela cidade aumentou (os poetas de hoje falam mais da cidade do que os antigos), só que aumentou no rumo negativo: a cidade moderna provoca desconforto, aversão, náusea; é um território hostil, ameaçador, repleto de entulho, dejectos, sinais de destruição; é o espaço percorrido pelas pessoas sempre como transeuntes, como se ninguém vivesse ali, como se todo mundo estivesse ali só de passagem, forçado; ninguém é de fato habitante da cidade, cidadão. Para o poeta, a cidade moderna é a negação da verdadeira vida, é símbolo de desumanização.Mas não vejo isso como negativo em si. Essa imagem desolada é manifestação de revolta, indignação, vontade de mudar, desejo de reumanizar o homem. Negativo seria os poetas olharem para isso tudo e acharem normal.

E agora, Brasil?

Fábio Konder ComparatoA Corte Interamericana de Direitos Humanos acaba de decidir que o Brasil descumpriu duas vezes a Convenção Americana de Direitos Humanos. Em primeiro lugar, por não haver processado e julgado os autores dos crimes de homicídio e ocultação de cadáver de mais 60 pessoas, na chamada Guerrilha do Araguaia. Em segundo lugar, pelo fato de o nosso Supremo Tribunal Federal haver interpretado a lei de anistia de 1979 como tendo apagado os crimes de homicídio, tortura e estupro de oponentes políticos, a maior parte deles quando já presos pelas autoridades policiais e militares.O Estado brasileiro foi, em conseqüência, condenado a indenizar os familiares dos mortos e desaparecidos.Além dessa condenação jurídica explícita, porém, o acórdão da Corte Interamericana de Direitos Humanos contém uma condenação moral implícita.Com efeito, responsáveis morais por essa condenação judicial, ignominiosa para o país, foram os grupos oligárquicos que dominam a vida nacional, notadamente os empresários que apoiaram o golpe de Estado de 1964 e financiaram a articulação do sistema repressivo durante duas décadas. Foram também eles que, controlando os grandes veículos de imprensa, rádio e televisão do país, manifestaram-se a favor da anistia aos assassinos, torturadores e estupradores do regime militar. O próprio autor destas linhas, quando ousou criticar um editorial da Folha de S.Paulo, por haver afirmado que a nossa ditadura fora uma “ditabranda”, foi impunemente qualificado de “cínico e mentiroso” pelo diretor de redação do jornal.Mas a condenação moral do veredicto pronunciado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos atingiu também, e lamentavelmente, o atual governo federal, a começar pelo seu chefe, o presidente da República.Explico-me. A Lei Complementar nº 73, de 1993, que regulamenta a Advocacia-Geral da União, determina, em seu art. 3º, § 1º, que o Advogado-Geral da União é “submetido à direta, pessoal e imediata supervisão” do presidente da República. Pois bem, o presidente Lula deu instruções diretas, pessoais e imediatas ao então Advogado-Geral da União, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, para se pronunciar contra a demanda ajuizada pela OAB junto ao Supremo Tribunal Federal (argüição de descumprimento de preceito fundamental nº 153), no sentido de interpretar a lei de anistia de 1979, como não abrangente dos crimes comuns cometidos pelos agentes públicos, policiais e militares, contra os oponentes políticos ao regime militar.Mas a condenação moral vai ainda mais além. Ela atinge, em cheio, o Supremo Tribunal Federal e a Procuradoria-Geral da República, que se pronunciaram claramente contra o sistema internacional de direitos humanos, ao qual o Brasil deve submeter-se.E agora, Brasil?Bem, antes de mais nada, é preciso dizer que se o nosso país não acatar a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ele ficará como um Estado fora-da-lei no plano internacional.E como acatar essa decisão condenatória?Não basta pagar as indenizações determinadas pelo acórdão. É indispensável dar cumprimento ao art. 37, § 6º da Constituição Federal, que obriga o Estado, quando condenado a indenizar alguém por culpa de agente público, a promover de imediato uma ação regressiva contra o causador do dano. E isto, pela boa e simples razão de que toda indenização paga pelo Estado provém de recursos públicos, vale dizer, é feita com dinheiro do povo.É preciso, também, tal como fizeram todos os países do Cone Sul da América Latina, resolver o problema da anistia mal concedida. Nesse particular, o futuro governo federal poderia utilizar-se do projeto de lei apresentado pela Deputada Luciana Genro à Câmara dos Deputados, dando à Lei nº 6.683 a interpretação que o Supremo Tribunal Federal recusou-se a dar: ou seja, excluindo da anistia os assassinos e torturadores de presos políticos. Tradicionalmente, a interpretação autêntica de uma lei é dada pelo próprio Poder Legislativo.Mas, sobretudo, o que falta e sempre faltou neste país, é abrir de par em par, às novas gerações, as portas do nosso porão histórico, onde escondemos todos os horrores cometidos impunemente pelas nossas classes dirigentes; a começar pela escravidão, durante mais de três séculos, de milhões de africanos e afrodescendentes.Viva o Povo Brasileiro!

O déficit democrático no processo de escolha dos ministros do STF

O conselho de administraçãoCom a publicação da aposentadoria do Ministro Eros Grau reacendeu-se o debate acerca do processo de nomeação do integrante do Supremo Tribunal Federal. Duas questões sobressaem: o fato de ser a nona indicação a ser feita pelo atual Presidente da República e a queixa de algumas categorias profissionais que entendem não estar devidamente representadas na composição da Corte.A par das insatisfações ideológicas ou corporativas, salta aos olhos um defeito do atual sistema de nomeação dos ministros: a inexistência de participação popular. O processo é realizado como se a sociedade pudesse ser abstraída e a escolha dissesse respeito apenas aos que, naquele momento, exercem certos cargos públicos.Trata-se, contudo, de um grave equívoco.O Estado de Direito é uma conquista decorrente das luta contra o absolutismo e constitui uma garantia de que o exercício do poder é limitado por normas gerais pré-estabelecidas, cuja observância é obrigatória. Essa concepção foi fundamental para a consolidação das liberdades individuais e coletivas, pois impede ou dificulta o exercício arbitrário e ilegal do poder.Com o fim da Segunda Grande Guerra e a queda das ditaduras nazifascistas, os Estados europeus reassumiram o papel de Estados de Direito, porém incorporaram uma nova dimensão política: a dimensão democrática. Segundo Habermas, do ponto de vista normativo, não há Estado de Direito sem democracia. Por outro lado, como o próprio processo democrático precisa ser institucionalizado juridicamente, o princípio da soberania dos povos exige, ao inverso, o respeito a direitos fundamentais sem os quais simplesmente não pode haver um direito legítimo.O modelo democrático de constituição foi adotado por grande parte das nações e, com isso, o papel das constituições se ampliou. Consolidou-se o princípio de interpretação segundo o qual a norma constitucional tem supremacia sobre todo o ordenamento jurídico. Houve uma expansão da jurisdição constitucional, com a adoção do controle concentrado de constitucionalidade, o que intensificou a interferência do Judiciário no processo político.No Estado Democrático de Direito cabe à constituição desempenhar dois papéis fundamentais, que consistem, por um lado, em estabelecer e garantir as regras do jogo democrático, assegurando a participação política ampla, o governo da maioria e a alternância de poder e, por outro lado, proteger os direitos e liberdades fundamentais, inclusive contra a vontade da maioria.A Constituição Brasileira de 1988 é um marco histórico desse novo modelo de Estado, pois garantiu direitos fundamentais, reorganizou as instituições, efetuou a distribuição do poder e estabeleceu as diretrizes formais e materiais que devem nortear o processo de produção das leis e demais atos normativos, não só no âmbito público, mas também das relações privadas.Ao Supremo Tribunal Federal foi atribuída a posição de intérprete final da Constituição, encargo que conferiu a essa Corte uma parcela de poder decisiva na organização das relações sociais públicas e privadas, pois suas decisões têm repercussão direta na vida dos cidadãos.Conquanto o STF desempenhe papel de protagonista na vida política do país e a escolha de seus integrantes seja ato de interesse primordial de toda a sociedade, o processo de nomeação continua desprovido de procedimentos que possibilitem a efetiva participação popular.Para Norberto Bobbio uma definição mínima de democracia pressupõe que seja atribuída a um elevado número de cidadãos, que gozem de liberdade para escolher entre alternativas reais, o direito de participar direta ou indiretamente da tomada de decisões coletivas. Essa participação, por sua vez, deve estar submetida a um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos.Percebe-se que a existência de procedimentos que regulem a participação popular é uma característica intrínseca do regime democrático e deve pautar os esforços que buscam seu constante aperfeiçoamento.Em nosso sistema jurídico, “os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal” (art. 101, parágrafo único, da Constituição Federal). A inspiração provém do modelo de indicação dos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos, no qual, após ser indicado pelo Presidente da República, o candidato é submetido a uma sabatina no Senado.Ocorre que o Senado norte-americano desempenha um papel destacado na nomeação, pois seu Comitê Judiciário envia um longo questionário ao candidato indicado pelo Governo, do qual constam perguntas que tanto aferem a qualificação jurídica como revelam sua visão sobre o direito e o papel do juiz na sociedade.Caso seja aprovado por esse Comitê, o indicado passa pela sabatina no plenário do Senado, onde intensos debates se estendem por vários dias e dos quais os vários segmentos da sociedade efetivamente participam e se fazem representar.A tradição democrática da sociedade norte-americana faz com que o procedimento da sabatina no Senado seja suficiente para viabilizar a participação popular no processo, visto que há grande mobilização social e dos meios de comunicação para revelar aos parlamentares qual a sua postura e expectativa quanto à indicação.Outras democracias consolidadas optaram por estabelecer diferentes métodos de escolha dos integrantes da Corte Constitucional, nos quais a indicação não fica a cargo apenas do Presidente da República, mas também de outras instituições. É o caso da Alemanha, onde os membros do Tribunal Constitucional Federal são escolhidos pelo Conselho Federal e pelo Parlamento Nacional. Da mesma forma, na Itália a Corte Constitucional é composta por quinze juízes nomeados um terço pelo Presidente da República, um terço pelo Parlamento em sessão comum e um terço pelas supremas magistraturas ordinária e administrativas.Em países que se encontram em fase de transição de regimes autoritários para a democracia — como é o caso do Brasil — é ainda mais premente o estabelecimento de procedimentos que permitam e estimulem a participação popular, inclusive no processo de escolha dos integrantes das cortes constitucionais.Nesse sentido, em 2003 o Presidente da República Argentina editou um Decreto no qual estabelece um procedimento de pré-seleção dos juristas cujo nome está em consideração para nomeação à Suprema Corte. Esse Decreto enumera uma série de providências que devem ser tomadas para viabilizar a participação da sociedade no processo de escolha do novo integrante da Corte Constitucional.Observe-se que, tal como em nosso país, na Argentina também se atribui ao Senado a aprovação do indicado, o que não impediu que fosse criado o referido procedimento prévio.O atual estágio da democracia brasileira já não admite que uma decisão de tamanha relevância como essa fique adstrita ao arbítrio quase exclusivo do Presidente da República. O dispositivo constitucional que atribui ao Chefe do Executivo Federal a nomeação dos Ministros deve ser interpretado de modo sistemático, em consonância com os princípios fundamentais que regem a República brasileira, que são o princípio democrático (art. 1°, caput) e o princípio da cidadania (art. 1, II). Nesse sentido, não há dúvida de que cabe ao Presidente da República o ato formal da indicação dos candidatos a Ministro do STF; não se trata, no entanto, de um ato de mera expressão de vontade pessoal do Chefe do Executivo, desvinculado dos demais princípios e valores que orientam o Estado brasileiro. Esse ato deve estar em consonância com tais princípios e valores, de modo que a indicação do membro do Supremo Tribunal deve ser o resultado de um processo político democrático no qual o Presidente da República estabeleça um amplo debate com a sociedade acerca do perfil dos possíveis candidatos e, com base nisso, fixe a sua escolha dos nomes dos candidatos de modo legítimo e fundamentado.Por essas razões, a Associação Juízes para a Democracia formulou um requerimento público dirigido ao Presidente da República, aberto a adesões, no qual pleiteia o estabelecimento de procedimento que permita a máxima divulgação do histórico dos juristas que são considerados para integrar o STF, assim como preveja um período de tempo razoável para o debate e a manifestação formal dos cidadãos, associações e entidades de classe acerca dos candidatos indicados.A participação popular proporcionará um debate efetivo e enriquecedor sobre o papel do STF no Estado Democrático de Direito e sobre a trajetória profissional e acadêmica e os compromissos assumidos pelo indicado durante sua carreira, o que acarretará um aperfeiçoamento institucional e o aumento do interesse dos cidadãos pela coisa pública, requisitos imprescindíveis à consolidação da democracia em nosso país.

O mineiros do Chile e os soterrados do Brasil

Jorge Luiz Souto MaiorA notícia do resgate dos trabalhadores (mineiros) no Chile fez emergir na sociedade um sentimento que estava há muito tempo soterrado: a solidariedade.É importante, de plano, deixar claro que a solidariedade é um sentimento mais profundo que a mera compaixão. A população em geral, mesmo fora dos limites territoriais do Chile, não apenas se condoeu com o sofrimento dos mineiros chilenos. Passou a se questionar como aquelas pessoas puderam ser submetidas a condições de trabalho tais que as expunham ao risco de tamanho sofrimento. As pessoas foram capazes de se colocar no lugar dos mineiros e esse é o atributo maior do sentimento de solidariedade, que nos impulsiona a análises mais sérias e a práticas concretas.O próprio Presidente do Chile, Sebastien Piñera, disse, expressamente, que iniciaria uma revisão completa da legislação trabalhista chilena para o efeito de conferir maior segurança no trabalho “nas áreas de mineração, agricultura e indústria”. Oportuno lembrar, como destacado por Emir Sader[1], que fora o próprio irmão do Presidente, José Piñera, que, no Chile, deu continuidade à idéia de “flexibilização laboral”, vinda desde Pinochet, a qual deixou muitos trabalhadores, e em especial os mineiros, sem qualquer proteção efetiva do Estado.O evento em questão, portanto, apresenta-se como uma oportunidade de se reconstituir a própria razão de ser da legislação trabalhista: o sentimento de solidariedade.Foi, vale lembrar, a indignação diante do abandono a que são deixadas as pessoas que trabalham para a produção de riquezas, as quais aproveitam, direta ou indiretamente, a toda a sociedade, que motivou, na história recente da humanidade, a partir do final do século XIX, com intensificação nos períodos pós-guerras, o surgimento das leis trabalhistas e, conseqüentemente, do Direito do Trabalho.A situação vivenciada pelos mineiros chilenos e a comoção social gerada nos permitem as seguintes indagações: alguém em sã consciência viria a público neste instante para defender que as péssimas condições de trabalho dos mineiros estariam justificadas em razão das exigências econômicas do mercado? Ou dizer que a redução das garantias trabalhistas dos mineiros era necessária para aliviar a empresa do custo que tais garantias correspondiam? Não, não diria, certamente...Como demonstra a situação a que toda a sociedade acabou sendo obrigada a ver graças ao vulto midiático atingido, o custo deve fazer parte da própria essência do permissivo jurídico e social da exploração do trabalho alheio. Não é legítimo a ninguém pleitear a utilização do trabalho de outra pessoa dentro da lógica do menor custo. Há regras da própria convivência humana a serem respeitadas, cujo descumprimento representa uma agressão a toda a sociedade, causando indignação. Assim, os direitos trabalhistas jamais podem ser vistos como custos, que possam ser simplesmente extraídos. A preservação da dignidade e a elevação da condição humana dos trabalhadores são papéis fundamentais dos direitos trabalhistas, que não podem ser postos em questão por nenhum argumento econômico.Um abalo sísmico, de natureza econômica, das bases fundamentais do Direito do Trabalho, poderia fazer com que se atraísse para a situação refletida no caso dos mineiros chilenos uma gama enorme de obstáculos à efetivação de direitos essenciais à preservação da condição humana. Diante da experiência extraída do cotidiano da Justiça do Trabalho no Brasil, fácil imaginar os tipos de argumentos que se utilizariam para negar aos mineiros chilenos algum direito. O dono da mina (se fosse identificado) diria: “eu não sou o empregador dos mineiros”; “não fui eu quem os contratou”; “não tendo contrato com os mineiros, não tenho responsabilidade legal quanto ao ocorrido, e ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei”. O sujeito que “contratou” os mineiros (se fosse localizado) diria: “eu não era empregador deles”; “eles eram meus colaboradores, prestadores de serviço autônomo”. No aspecto pertinente ao acidente propriamente dito, diriam, ambos: “não temos culpa pelo ocorrido, foi uma fatalidade”; “os mineiros cometeram ato inseguro, quando não seguiram as instruções de segurança”; “e, ademais, não houve concretamente um acidente do trabalho, pois não resultou qualquer lesão”; “do evento não resultou perda da capacidade laboral”; “os mineiros estão sãos e salvos e até devem ser gratos à empresa pois ganharam notoriedade internacional (eram meros desconhecidos, agora são personalidades)”; “sequer se pode dizer que houve sofrimento, muito pelo contrário, afinal, os mineiros se conheceram mais enquanto pessoas, aprendendo a explorar os seus limites de sobrevivência”...Se acatados fossem tais argumentos, o sofrimento dos mineiros, que causou indignação internacional, seria transformado em pó, e este seria, na verdade, o momento mais trágico do evento em questão, que, provavelmente, não teria visibilidade midiática junto à comunidade internacional. O risco, portanto, é o de que a solidariedade se transforme em frívola compaixão, cuja manifestação sirva apenas a propósitos não revelados.A sobrevivência é, por certo, o bem imediatamente mais importante, mas a sobrevida deve ser acompanhada do resgate da dignidade de cada um, sendo esta a dimensão necessária do direito. Mais do que presentes e festejos, os trabalhadores em questão precisam ver valer, em concreto, os seus direitos, que lhes pertencem não por um favor ou ato de benevolência, caridade ou compaixão de quem quer que seja. O efetivo resgate dos mineiros, portanto, ainda está por ser completado.Cumpre verificar, ainda, que argumentos como os acima apresentados também tem sido utilizados, com freqüência, em lides trabalhistas que tratam de acidentes de trabalho no Brasil e, infelizmente, de forma não tão rara se vêem acatados, o que transforma a situação de milhões de trabalhadores brasileiros quase tão terrível quanto àquela que tiveram que suportar os mineiros chilenos. O fato é que, diariamente, no Brasil, direitos trabalhistas, cuja base existencial foi a solidariedade internacional, estão sendo soterrados a cada dia.Assim, enquanto, no Chile, os mineiros eram reconduzidos à superfície, no Brasil incontáveis eram: os trabalhadores submersos em jornadas de trabalho de 12 horas ou mais; os “terceirizados” segregados no ambiente do trabalho, aos quais se recusam até o direito ao próprio nome; os trabalhadores no meio rural, e mesmo urbano, reduzidos à condição análoga à de escravos; as crianças e os adolescentes, até 16 anos de idade, explorados sob o pretexto de estarem sendo ajudados; os empregados submetidos a um sistema perverso de banco de horas, com alterações constantes de horários de trabalho, que lhes nega a mínima previsibilidade sobre a própria vida; empregados mascarados em PJs, cooperados ou “associados”, sem qualquer garantia trabalhista; as empregadas domésticas submetidas a trabalhar sem qualquer limitação da jornada de trabalho, sem proteção contra acidentes do trabalho, sem recebimento de salário mínimo, sem FGTS, amparo do seguro-desemprego etc; os motoristas de ônibus, caminhões ou carretas, expostos à necessidade de dirigirem dias e noites a fio, sob o risco de sofrerem graves acidentes; os estudantes utilizados como mão-de-obra barata, ou seja, sem as garantias trabalhistas integrais, sob a formalização de contratos com aparência legal como o de estágio e o de residência médica; os serventes e pedreiros trabalhando em vultosas obras sem a devida proteção jurídica trabalhista, mediante a suposição, fraudulentamente fixada, de serem empreiteiros; os trabalhadores em atividades insalubres sem as devidas proteções individuais, executando atividades com esforço repetitivo; trabalhadores sem o devido registro em Carteira; trabalhadores conduzidos às filas do desemprego sem o recebimento das denominadas “verbas rescisórias”, vendo-se obrigados, assim, a suportar os trâmites infindáveis de uma lide processual; os trabalhadores submetidos a revistas íntimas, invadidos em sua intimidade e privacidade, sob o argumento da preservação do patrimônio do empregador...Ou seja, no mesmo momento em que a comunidade internacional comemorava o resgate formal dos mineiros chilenos, milhões de trabalhadores brasileiros continuavam soterrados na mais profunda injustiça, sem ser alvo sequer de alguma compaixão por parte dos demais membros de nossa sociedade, vez que a mídia não estava preocupada em difundir tal realidade. Não se pode deixar de consignar, por oportuno, que parte dessa mesma mídia durante muito tempo, bem ao contrário, tem se postado em estado de guerra contra os direitos dos trabalhadores, buscando abalar o “status” de cidadãos dessas pessoas.E, ademais, como se está procurando dizer, mesmo uma compaixão não seria suficiente. Para alterar essa realidade, é preciso um efetivo exercício de solidariedade, que permita transportar para si as aflições, as angústias e os sofrimentos alheios, como forma de se atingir, com plenitude, a esfera da ordem jurídica. É neste sentido, como dito, que o caso dos mineiros chilenos não se resolve com o resgate de seus corpos e o mesmo efeito deve se produzir, com urgência, com relação a milhões de trabalhadores brasileiros, que merecem, até por dever jurídico, diante da incontestável vigência dos preceitos constitucionais, o empenho de nossa mais irrestrita e sincera solidariedade, que constitui o pressuposto necessário à eficácia de seus direitos. Afinal, diante de tragédias como a de lá e as de cá, a natureza essencial dos direitos trabalhistas ninguém há de negar! (*) Juiz do Trabalho, titular da 3ª. Vara de Jundiaí e professor livre-docente de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP.[1]. http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=1&post_id=564, acesso em 15/10/10.

A Balança e a Espada

Professor Fábio Konder Comparato* Tradicionalmente, a deusa greco-romana da justiça é representada pela figura de uma mulher, portando em uma mão a balança e na outra a espada. A simbologia é clara: nos processos judiciais, o órgão julgador deve sopesar criteriosamente as razões das partes em litígio antes de proferir a sentença, a qual se impõe a todos, se necessário pelo uso da força. Entre nós, porém, a realidade judiciária não corresponde a esse modelo consagrado. Aqui, nas causas que envolvem relações de poder, com raríssimas exceções, os juizes prejulgam os litígios antes de apurar o peso respectivo dos argumentos contraditoriamente apresentados; e assim procedem, frequentemente, sob a pressão, explícita ou mal disfarçada, dos que detêm o poder político ou econômico. A verdade incômoda é que, entre nós, a balança da Justiça está amiúde a serviço da espada, e esta é empunhada por personagens que não revestem a toga judiciária. O julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 153, concluido pelo Supremo Tribunal Federal em 30 de abril de 2010, constitui um dos melhores exemplos dessa triste realidade. O fundamentos da petição inicial Na peça inicial da demanda, a Ordem dos Advogados do Brasil pediu ao tribunal que interpretasse os dispositivos da Lei nº 6.683, de 1979, à luz dos preceitos fundamentais da Constituição Federal. Arguiu que a expressão "crimes conexos", acoplada à de "crimes políticos", não podia aplicar-se aos delitos comuns praticados por agentes públicos e seus cúmplices, contra os opositores ao regime militar. E isto, pela boa e simples razão de que a conexão criminal pressupõe uma comunhão de objetivos ou propósitos entre os autores das diversas práticas delituosas, e que ninguém em sã consciência poderia sustentar que os agentes, militares e civis, que defendiam o regime político então em vigor, atuassem em harmonia com os que o combatiam. Arguiu, demais disso, que ainda que se admitisse ser a conexão criminal cabível entre pessoas que agiram umas contra as outras – o que é simples regra de competência no processo penal, e não uma norma de direito penal substancial (Código de Processo Penal, art. 76, I, in fine) –, essa hipótese seria de todo excluida no caso, pois os autores de crimes políticos, durante o regime militar, agiram contra a ordem política e não pessoalmente contra os agentes públicos que os torturaram e mataram. Arguiu, finalmente, a OAB que, mesmo que dita lei fosse interpretada como havendo anistiado os torturadores de presos políticos durante aquele período, ela teria sido revogada, de pleno direito, com o advento da Constituição Federal de 1988, cujo art. 5º, inciso XLIII, considerou expressamente a tortura um crime inafiançável e insuscetível de graça e anistia. As razões do acórdão A essas razões de pedir, a maioria vencedora no tribunal respondeu de duas maneiras. O relator invocou a noção germânica de "lei-provimento" (Massnahmegesetz), pretextando que a anistia teria surtido efeitos imediatos e irreversíveis. Das duas, uma: ou aquele julgador desconhece o sentido do conceito técnico por ele invocado; ou tem perfeita ciência do que significa a expressão, e resolveu utilizá-la unicamente para impressionar a platéia. Há muito a ciência jurídica estabeleceu a distinção entre lei e provimento administrativo (em alemão, Verwaltungsmassnahme); a primeira geral e abstrata, o segundo concreto e específico. Foi com base nessa distinção tradicional que Ernst Fortshoff,[1] após a Segunda Guerra Mundial, impressionado pelo crescimento do poder normativo das autoridades governamentais, máxime na implementação do Plano Marshall de reconstrução da Europa, passou a denominar Massnahmegesetze normas com forma de lei, mas de conteúdo idêntico ao de provimentos administrativos. Por exemplo, a lei que determina a construção de uma barragem, ou que fixa um termo final para os trabalhos de modernização de ferrovias. O deprimente em toda essa estória é que o Ministro relator, ao mesmo tempo em que, na esteira da Procuradoria-Geral da República, considerou enfaticamente que a anistia dos crimes cometidos pelos agentes públicos contra oponentes políticos fora um "acordo histórico", sustentou que ele nada mais seria, afinal, do que um simples provimento administrativo. De qualquer modo, pretender que a Lei nº 6.683 teve efeitos imediatos e irreversíveis constitui grosseiro sofisma, por dois singelos motivos. Em primeiro lugar, porque a premissa maior do silogismo já é a sua conclusão (vício lógico denominado petição de princípio); ou seja, a possibilidade de se reconhecer a conexão criminal entre delitos praticados com objetivos ou propósitos contraditórios. Em segundo lugar, porque, ao assim se exprimir, o magistrado demonstrou ignorar o fato óbvio de que os alegados efeitos imediatos de uma lei de anistia não podem estender-se a crimes continuados (como o de ocultação de cadáver), cujos autores permanecem no anonimato. A segunda via de refutação das razões apresentadas na petição inicial foi também trilhada pelo relator, neste ponto pressurosamente acompanhado pela Ministra que o sucedeu na ordem de votação. Entendeu, assim, o relator de desconsiderar o teor literal do pedido formulado na petição inicial, para sustentar que a demanda não objetivava uma interpretação da Lei nº 6.683, mas sim a sua revisão; o que só o Poder Legislativo tem competência para fazer.É fartamente conhecida a distinção, de que o relator do acórdão usa e abusa, entre norma e texto normativo. Como o hábito do cachimbo deixa a boca torta, Sua Excelência resolveu aplicar o discrime à própria petição inicial da demanda. A arguente, afirmou ele, posto haver pedido literalmente ao Tribunal que interpretasse a Lei nº 6.683, de 1979, à luz dos preceitos fundamentais Constituição Federal de 1988, objetivou, na verdade, alcançar com a demanda uma alteração legislativa substancial. Que se saiba, em nenhum país do mundo incluiu-se na competência jurisdicional a faculdade de psicanalisar as partes demandantes, a fim de descobrir, por trás de suas declarações em juizo, intenções recalcadas no subconsciente. Teríamos admitido isso entre nós por meio de alguma Massnahmegesetz secreta?O realmente curioso é que nenhum dos julgadores tenha se lembrado de que, quase um ano antes, dia por dia, ou seja, em 29 de abril de 2009, o mesmo tribunal decidira que a Constituição Federal havia revogado de pleno direito a lei de imprensa de 1967, promulgada doze anos antes da lei de anistia. Nesse outro julgado, o Supremo Tribunal Federal declarou interpretar a lei à luz dos preceitos fundamentais da Constituição Federal. Dois pesos e duas medidas para a mesma balança? Tudo isso, sem falarmos no fato – gravíssimo – de que a decisão proferida pela nossa mais alta Corte de Justiça, ao julgar a ADPF nº 153, violou abertamente preceitos fundamentais do direito internacional. Ressalte-se, em primeiro lugar, que o assassínio, a tortura e o estupro de presos, quando praticados sistematicamente por agentes estatais contra oponentes políticos, são considerados, desde o término da Segunda Guerra Mundial, crimes contra a humanidade; o que significa que o legislador nacional é incompetente para determinar, em relação a eles, quer a anistia, quer a prescrição. Com efeito, o Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, de 1945, definiu como crimes contra a humanidade, em seu art. 6, alínea c, os seguintes atos:"o assassínio, o extermínio, a redução à condição de escravo, a deportação e todo ato desumano, cometido contra a população civil antes ou depois da guerra, bem como as perseguições por motivos políticos e religiosos, quando tais atos ou perseguições, constituindo ou não uma violação do direito interno do país em que foram perpetrados, tenham sido cometidos em consequência de todo e qualquer crime sujeito à competência do tribunal, ou conexo com esse crime." Essa definição foi depois reproduzida no Estatuto do Tribunal Militar de Tóquio de 1946, que julgou os criminosos de guerra japoneses. Em 3 de fevereiro e 11 de dezembro de 1946, a Assembléia Geral das Nações Unidas, pelas Resoluções nº 3 e 95 (I), confirmou "os princípios de direito internacional reconhecidos pelo Estatuto do Tribunal de Nuremberg e pelo acórdão desse tribunal". Em 26 de novembro de 1968, a Assembléia Geral das Nações Unidas, pela Resolução nº 2.391 (XXIII), aprovou o texto de uma Convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade, ainda que tais delitos não sejam tipificados pelas leis internas dos Estados onde foram perpetrados. O Estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998, por sua vez, definiu, em seu art. 7º, dez tipos de crimes contra a humanidade, e acrescentou ao elenco uma modalidade genérica: "outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental". Estabeleceu como condição de punibilidade que tais atos criminosos sejam cometidos "no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque"; o que bem corresponde ao regime político repressivo vigente entre nós entre 1964 e 1985. Desse conjunto normativo decorre a definição de crime contra a humanidade como o ato delituoso em que à vítima é negada a condição de ser humano. Nesse sentido, com efeito, indiretamente ofendida pelo crime é toda a humanidade. Eis porque, como dito acima, ao legislador nacional carece toda competência para regular, nessa matéria, a anistia ou a prescrição. Repita-se que a Assembléia Geral das Nações Unidas, nas duas citadas Resoluções de 1946, considerou que a conceituação tipológica dos crimes contra a humanidade representa um princípio de direito internacional. Ora, os princípios, como assinalado pela doutrina contemporânea,[2] situam-se no mais elevado grau do sistema normativo. Eles podem, por isso mesmo, deixar de ser expressos em textos de direito positivo, como as Constituições, as leis ou os tratados internacionais. Quem ignora, afinal, que o primeiro princípio historicamente afirmado do direito constitucional, a saber, a competência do Judiciário para declarar a inconstitucionalidade de leis e outros atos normativos, foi consagrado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em Marbury v. Madison (1803), não obstante o completo silêncio a esse respeito da Constituição norte-americana? A razão desse regime jurídico diverso é que a fonte dos princípios, sobretudo em matéria de direitos humanos, não reside na lei positiva ou na convenção internacional, mas na consciência ética da humanidade. É por isso que a Constituição Federal de 1988 reconheceu que os direitos e garantias nela expressos "não excluem outros, decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados" (art. 5º, 2º). No plano do direito internacional, por fim, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, em seu art. 53, veio dar à noção de princípio geral de direito, sob a denominação de norma imperativa de direito internacional geral (jus cogens), uma noção precisa, que se aplica cabalmente à repressão dos crimes contra a humanidade:É nulo o tratado que, no momento de sua conclusão, conflita com uma norma imperativa de direito internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de direito internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu conjunto, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por nova norma de direito internacional geral da mesma natureza. Não foi apenas essa, porém, a violação praticada pelo Supremo Tribunal Federal contra os preceitos fundamentais de direitos humanos, reconhecidos internacionalmente. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em reiteradas decisões, já fixou jurisprudência no sentido da nulidade absoluta das leis de auto-anistia. Será preciso lembrar, nesta altura da evolução jurídica, que em um Estado de Direito os governantes não podem isentar-se, a si próprios e a seus colaboradores, de responsabilidade alguma por delitos que tenham praticado? Pois bem, diante da invocação desse princípio irrefutável, o Ministro relator e outro Ministro que o acompanhou afirmaram que a Lei nº 6.683, de 1979, não se inclui nessa proibição categórica, pois ela teria configurado uma anistia bilateral de governantes e governados. Ou seja, segundo essa preciosa interpretação, torturadores e torturados, em uma espécie de contrato de intercâmbio (do ut des), teriam resolvido anistiar-se reciprocamente... Na verdade, essas surpreendentes declarações de voto casaram-se com a principal razão apresentada, não só pelo grupo vencedor, mas também pela Procuradoria-Geral da República, para considerar legítima e honesta a anistia de assassinos, torturadores e estupradores de oponentes políticos durante o regime militar: ela teria sido fruto de um “histórico” acordo político. Frise-se, desde logo, a repugnante imoralidade de um pacto dessa natureza: o respeito mais elementar à dignidade humana impede que a impunidade dos autores de crimes hediondos ou contra a humanidade seja objeto de negociação pelos próprios interessados. O relator, citando Hartmann (evidentemente em alemão), não encontrou melhor argumento para responder a essa objeção do que afirmar que a propositura da demanda representara a ocorrência de uma “tirania dos valores”! É de se perguntar se Sua Excelência julga a ela preferível o deboche ético e institucional do regime político da época. Seja como for, o propalado "acordo histórico" de anistia dos crimes atrozes praticados pelos agentes da repressão não passou de uma rasteira conciliação oligárquica, na linha de nossa mais longeva tradição. Senão, vejamos. Qualquer pacto ou acordo supõe a existência de partes legitimadas a conclui-lo. Se havia à época, de um lado, chefes militares detentores do poder supremo, quem estaria do outro lado? Certamente não a oposição parlamentar, pois o projeto de lei de anistia foi aprovado na Câmara dos Deputados (onde não havia parlamentares "biônicos", como no Senado) por apenas 5 (cinco) votos: 206 a 201. Pergunta-se: as vítimas ainda vivas e os familiares de mortos pela repressão militar foram, porventura, chamados a negociar esse acordo? O povo brasileiro, como titular da soberania, foi convocado a referendá-lo? O mais escandaloso de toda essa farsa de acordo político é que, após a promulgação da Lei nº 6.683, em 28 de agosto de 1979, os militares continuaram a desenvolver impunemente sua atividade terrorista. Em 1980, registraram-se no país 23 (vinte e três) atentados a bomba, entre os quais o que vitimou, na sede do Conselho Federal da OAB, a secretária da presidência, Dª Lyda Monteiro da Silva. Em 1981, houve mais 10 (dez) atentados, notadamente o do Riocentro, cujos responsáveis, ambos oficiais do Exército, foram considerados, no inquérito policial militar aberto em consequência, vítimas e não autores! E – pasme o leitor – tal inquérito foi arquivado pela Justiça Militar com fundamento na própria Lei nº 6.683, cujo art. 1º fixou, como termo final do lapso temporal da anistia, a data de 15 de agosto de 1979. Tais fatos estarrecedores assinalam mais uma escandalosa contradição na leitura feita pelo tribunal dessa mesma lei. É que o § 2º do seu art. 1º excetuou "dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal". Ou seja, na interpretação do Supremo Tribunal Federal, o terrorismo, o sequestro e o atentado pessoal são ações criminosas, tão-só quando praticadas por adversários do regime militar, não quando cometidos pelos agentes públicos da repressão. E não se venha justificar essa afirmação escandalosa, com o argumento literal de que nenhum destes últimos foi condenado por tais crimes, pois durante todo o regime inaugurado pelo golpe de Estado de 1964, todos, absolutamente todos os governantes e seus sequazes, tanto civis quanto militares, gozaram da mais completa irresponsabilidade. Eles pairavam acima das leis e das "constituições", que eles próprios redigiam e promulgavam. Em suma, como salientou Napoleão – não o grande general francês, mas o ditador suino de Animal Farm, de George Orwell –, em nosso querido país "todos são iguais perante a lei; alguns, porém, são mais iguais do que os outros". Lições de um triste veredicto Em matéria de regimes políticos, é preciso separar o substantivo do adjetivo. A oligarquia e a democracia pertencem à primeira categoria, o Estado de Direito à segunda.Em certa passagem de seu tratado sobre a política (1298 a, 1-4), Aristóteles observa que toda politéia, ou seja, aquilo que poderíamos denominar Constituição substancial, deve regular três questões fundamentais: 1) quem é titular do poder supremo (kýrion), com competência para deliberar sobre o bem comum de todos (peri tôn koinôn): 2) quem pode exercer a função de governante (arkhôn) e qual a sua competência; 3) quem deve assumir o poder de julgar (ti to dikázon).Dessas três questões fundamentais destacadas pelo filósofo, as duas primeiras pertencem ao plano substantivo, a última ao adjetivo. Com efeito, qualquer que seja o regime político – que se define justamente pela titularidade da soberania e a forma de governo –, pode ou não haver a submissão do soberano e dos governantes à ordem jurídica. Hoje, é comum presumir-se que toda democracia é um Estado de Direito. Esquecemo-nos, ao assim pensar, que a democracia ateniense, não raras vezes, descambou para a “okhlocracia” (de okhlos, ralé, populacho), onde a maioria pobre, logo após a tomada do poder, não hesitava em exilar, confiscar e, no limite, exterminar a minoria rica. Ora, a função constitucional do Judiciário, desde sempre, consiste em ser ele o garante máximo da submissão de todos os titulares de poder – inclusive o próprio soberano! – ao império do Direito. Por isso mesmo, juizes e tribunais, segundo a boa concepção da república romana, não têm propriamente poder (potestas, imperium). Montesquieu, no famoso capítulo 6 do livro XI de O Espírito das Leis, após descrever a arquitetura constitucional tripartida da Inglaterra, anotou: "des trois puissances dont nous avons parlé, celle de juger est en quelque façon nulle". Faltou, porém, dizer que se o Judiciário não tem propriamente poder – no sentido de dispor legitimamente de força própria –, ele deve possuir aquela qualidade política eminente, que os romanos denominavam auctoritas; vale dizer, o prestígio moral que dignifica uma pessoa ou uma instituição, suscitando a confiança e o respeito no seio do povo. Sucede que neste "florão da América" o Judiciário nunca gozou da confiança popular. Em 2007, uma pesquisa de opinião pública realizada por CNT/Sensus sobre o grau de confiança das diferentes instituições, públicas ou privadas, em nosso país, revelou que apenas 9,5% dos entrevistados confiavam na Justiça. Juizes e tribunais só estavam acima dos governos (5%), da polícia (3,4%) e do Congresso Nacional (1,1%). Naquele mesmo ano, a Associação de Magistrados Brasileiros divulgou outra pesquisa, realizada segundo critérios diversos pela Opinião Consultoria. De acordo com esse último levantamento de opinião pública, o Poder Judiciário gozaria da confiança de menos da metade da população brasileira, ou, mais exatamente, 41,8%. Ora, a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o âmbito dos efeitos da lei de anistia de 1979, além de em nada contribuir para minorar essa desconfiança popular nos órgãos da Justiça, representou certamente um golpe profundo no grau de credibilidade do Judiciário brasileiro no plano internacional, em matéria de direitos humanos. Com efeito, de todos os paises sul-americanos, o Brasil é hoje o único que se recusa a levantar a total impunidade de governantes e seus subordinados, pelos crimes violentos praticados durante o período de regime político autoritário. Em estudo recente,[3] Anthony W. Pereira mostrou como essa situação escandalosa, quando comparada com as severas condenações judiciais sofridas na Argentina e no Chile pelos governantes – inclusive ex-chefes de Estado! –, durante o regime de exceção, tem sua causa na infamante colaboração que entre nós se estabeleceu, no mesmo período, entre a magistratura e os chefes militares. Naqueles paises, a Justiça foi posta de lado pelos militares em sua ação repressiva. Aqui, a competência da Justiça Militar foi ampliada, para abarcar os crimes contra a ordem pública e a segurança nacional, ainda que cometidos por civis. Suspenderam-se o habeas-corpus e as garantias da magistratura, e três Ministros do Supremo Tribunal Federal foram afastados pelo então chefe de Estado. Mas o Judiciário continuou a funcionar como se nada tivesse acontecido. Estávamos numa "democracia à brasileira", como disse o general que prendeu o grande advogado Sobral Pinto. Ao que este retrucou dizendo que só conhecia "peru à brasileira"... Para que possamos, portanto, instaurar neste país um verdadeiro Estado de Direito, impõe-se realizar, o quanto antes, uma reforma em profundidade do Poder Judiciário. Ela deve centrar-se na garantia de completa independência de juizes e tribunais em relação aos demais órgãos do Estado, combinada com a instituição de eficientes controles da atuação do Judiciário, em todos os níveis. O costume institucional brasileiro, oriundo de uma longa tradição portuguesa, mantém a Justiça sob a influência avassaladora dos governantes. Não foi, pois, surpreendente verificar que, no caso objeto destes comentários, a espada militar interferiu despudoradamente no funcionamento da balança judicial. Importa, pois, antes de tudo, libertar o Judiciário – e da mesma forma o Ministério Público – da velha hegemonia que sobre eles sempre exerceu o mal chamado Poder Executivo. É indispensável e urgente eliminar o poder atribuido aos chefes de governo de nomear os integrantes da magistratura nos tribunais. O que se tem visto ultimamente, sobretudo no preenchimento de vagas no Supremo Tribunal Federal, é um prélio acirrado entre dezenas de candidatos à nomeação, disputando as boas graças do chefe do Executivo, sendo certo que a aprovação das indicações presidenciais pelo Senado Federal é mera formalidade. Nessa peleja pessoal, o que menos conta são os princípios éticopolíticos. O principal trunfo de cada candidato consiste em "ser amigo do rei", ou pelo menos contar com o apoio direto de um dos próximos de sua majestade. Escusa dizer que os assim nomeados ficam sempre submetidos ao poder dominante daquele, graças ao qual passaram a ocupar o alto posto judiciário. Ainda no campo da necessária independência do Poder Judiciário, impõe-se a eliminação, o quanto antes, da Justiça Militar, em razão de seu caráter essencialmente corporativo. Aliás, durante todo o longo período autoritário, como frisou o autor acima referido,[4] a Justiça castrense colaborou fielmente com os responsáveis pela política de terrorismo de Estado. Outra nefasta tradição brasileira é a irresponsabilidade de fato dos magistrados. Até a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, os únicos controles de iure, sobre eles existentes, eram exercidos no campo penal dentro do próprio Poder Judiciário, por iniciativa do Ministério Público; e em matéria financeira, pelos Tribunais de Contas. Mas tais controles sempre tiveram uma eficácia muito reduzida. A referida emenda constitucional, ao criar o Conselho Nacional de Justiça, foi um primeiro passo no sentido de se instaurar um regime de efetiva responsabilização dos magistrados. É preciso agora avançar nesse rumo, por meio de várias providências, a saber: 1) tornar o Conselho um órgão efetivamente externo ao Poder Judiciário; 2) submeter à necessária fiscalização do órgão o próprio Supremo Tribunal Federal, que permanece ainda imune a todo controle; 3) dar ao Conselho poderes de punição severa e exemplar dos magistrados que delinquem (recentemente, como se recorda, um Ministro do Superior Tribunal de Justiça, julgado responsável pela venda de decisões, foi simplesmente aposentado com vencimentos integrais); 4) desdobrar o Conselho em órgãos regionais, de modo a dar-lhe maior capacidade de atuação local. Tudo isso diz respeito ao controle por assim dizer horizontal. Importa, porém, instituir também uma fiscalização vertical, fazendo com que o próprio povo participe da função de vigilância da atuação do Poder Judiciário. Sem isto, com efeito, a soberania popular tende a ser, nesse particular como em vários outros setores, meramente retórica. A Constituição do Império de 1824 tinha, a esse respeito, uma disposição avançada, não reproduzida por nenhuma das Cartas Políticas subsequentes. Dispunha o seu art. 157 que "por suborno, peita, peculato e concussão, haverá contra eles (Juizes de Direito) ação popular, que poderá ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo estabelecida em Lei". Não se tem notícia do uso efetivo dessa ação popular, mas é inegável que, pelo simples fato de existir, era ela, em si mesma, um instrumento de real pedagogia política. Convém, pois, recriá-la, aperfeiçoando os seus contornos. Além disso, seria de grande importância instituir ouvidorias populares dos órgãos da Justiça, em todos os níveis, com competência para exigir explicações oficiais sobre a atuação administrativa dos magistrados. O Judiciário tem sido tradicionalmente, aos olhos do povo, o mais hermético de todos os Poderes do Estado. É inútil procurar reduzir a desconfiança dos jurisdicionados em relação aos juizes, se entre uns e outros continuarmos a manter uma linha divisória intransponível. Toda essa reforma institucional, no entanto, será vã, caso não logremos mudar a mentalidade de nossos magistrados, a qual, sob a aparência de fiel adesão ao princípio republicano e ao ideal democrático, permanece de fato essencialmente oligárquica e subserviente aos "donos do poder". Sem dúvida, temos de reconhecer que, ultimamente, algum progresso foi alcançado. Basta lembrar a fundação, há alguns anos, da AssociaçãoJuizes para a Democracia, que por sinal ingressou como amica curiae ao lado da OAB, no processo da ADPF nº 153 no Supremo Tribunal Federal. Mas não se há de ignorar que a mudança de mentalidades coletivas só se alcança por força de um trabalho sistemático e prolongado de educação: no caso, especificamente, de educação ética e política, centrada nos direitos humanos. À guisa de conclusão "Quem é o juiz do Supremo Tribunal Federal?", perguntou Rui Barbosa[1]. E respondeu: "Um só é possível reconhecer: a opinião pública, o sentimento nacional". Essa respeitável opinião, certamente válida na época em que foi emitida, já não é hoje admissível. No início do século passado, a opinião pública era formada em grande parte, entre nós, pelas manifestações publicadas na imprensa, que não se achava, então, submetida a poder algum, estatal ou privado. Hoje, porém, o conjunto dos meios de comunicação de massa, ou seja, não apenas a imprensa, mas também o rádio e a televisão, estão sujeitos à dominação de um oligopólio empresarial, que representa um dos maiores sustentáculos do regime oligárquico. Não foi por outra razão que o julgamento pronunciado pelo Supremo Tribunal Federal a respeito da lei de anistia de 1979, salvo raras e honrosas exceções, não mereceu nenhuma reprovação no conjunto dos meios de comunicação social. Mas há ainda outra razão para se recusar o alvitre de Rui Barbosa acima lembrado. A partir da segunda metade do século XX, criou-se um sistema supra-estatal de proteção dos direitos humanos, consubstanciado em tribunais internacionais. A Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, por exemplo, instituiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com competência para julgar quaisquer casos de violação das suas disposições. O Brasil aderiu formalmente àquela Convenção e acha-se, por conseguinte, submetido à jurisdição da citada Corte. Temos, pois, hoje, um juiz internacionalmente reconhecido do nosso tribunal supremo. Doravante, o poder da espada já não é capaz de desequilibrar, impunemente, a balança da Justiça.* Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.1 Lehrbuch des Verwaltungsrecht, C. A. Beck, Munique, 1973, p. 9.2 Cf. Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, Harvard University Press, Cambridge, 1978, pp. 22 e ss. e 294 e ss.; Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, 3ª ed., Frankfurt am Main, Shurkamp. 1996, cap. 3.3 Political (In)Justice: Authoritarianism and the Rule of Law in Brazil, Chile, and Argentina (University of Pittsburgh Press), 2005; editado no Brasil sob o título Ditadura e Repressão – O autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina (Paz e Terra), 2010.4 Cf. nota anterior.5 Obras Completas, publicação da Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, tomo XX, I, p. 153

Greve e salário

Jorge Luiz Souto MaiorA greve, porque provoca uma alteração no cotidiano, gera as mais diversas reações de contrariedade, sobretudo daqueles que, de certo modo, são atingidos por ela.Boa parte da inteligência humana, por conseguinte, durante muito tempo foi voltada para limitar o exercício da greve. Com o necessário aprimoramento da estrutura democrática, chegou-se à concepção da greve como um direito dos trabalhadores. Mas, a mera consideração da greve como direito não é suficiente para que se compreenda a importância e o alcance social da greve, causando-lhe limites indevidos.Não que direitos não possam ter limites, mas no caso da greve os limites impostos podem gerar a conseqüência paradoxal de impedir-lhe o efetivo exercício. O direito de greve, assim, pode ser negado pelo próprio direito.A bem compreender, a greve não é um modo de solução de conflitos e sim uma forma pacífica de expressão do próprio conflito. Trata-se de um instrumento de pressão, legitimamente utilizado pelos empregados para a defesa de seus interesses.Em uma democracia deve-se abarcar a possibilidade concreta de que os membros da sociedade, nos seus diversos segmentos, possam se organizar para serem ouvidos. A greve, sendo modo de expressão dos trabalhadores, é um mecanismo necessário para que a democracia atinja às relações de trabalho.Na ordem jurídica atual conferiu-se aos trabalhadores, no choque de interesses com o empregador, o direito de buscarem melhores condições de trabalho, recriando, a partir da solução dada, a própria ordem jurídica. Um ato que ao olhar do direito civil tradicional seria considerado uma ilegalidade, pois conspira contra o direito posto, na esfera trabalhista, inserido no contexto do Direito Social, ganha ares de exercício regular do direito.No Direito Social, ou melhor, na formação do Estado Social de Direito, os valores humanísticos desenvolvidos na experiência do convívio social foram incorporados ao direito como valores jurídicos de caráter genérico (direito à vida, por exemplo). O próprio ordenamento reconhece que essas expressões normativas de caráter genérico requerem concretização e isso somente pode se dar em hipóteses determinadas. Assim, quando o ordenamento jurídico trabalhista confere aos trabalhadores a possibilidade de se rebelarem contra o direito contratualmente posto, para reconstrução dos limites obrigacionais, não se está, propriamente, estabelecendo uma contradição dentro do sistema, que exporia o Direito do Trabalho à condição de um anti-direito, muito ao contrário, o que se permite é uma possibilidade concreta de se tornarem reais as “promessas” contidas nas fórmulas genéricas do Estado Social.Pode-se imaginar que essa “luta” por melhores condições de trabalho seja mais uma questão sociológica que jurídica, pois a todas as pessoas, mesmo nas relações civis, é dada a liberdade para defenderem seus interesses e a partir daí firmarem relações jurídicas que atendem a tais interesses. A diferença é que no Direito do Trabalho essa “luta”, ela própria, é garantida pelo direito, resultando na formação, institucional de um direito à luta pelo direito.Interessante perceber, ainda, que a consagração pelo próprio direito da possibilidade de se reconstruir, em situações concretas, a ordem jurídica, representa um relevante fator de estabilização das relações sociais, pois permite sua constante evolução, evitando, assim, a solução mais comum quando os interesses, sobretudo econômicos, entram em conflito com o conteúdo obrigacional, fixado no contrato, que é a da cessação do vínculo, sendo de se destacar que no contexto coletivo mais amplo a impossibilidade de composição dos conflitos pode gerar o completo desajuste social.Importante, também, destacar que a abrangência desse direito não se limita à reavaliação das normas contratuais estabelecidas. Integra-lhe, igualmente, a lacuna (o vazio), ou seja, o que não fora fixado em cláusulas específicas, já que o vazio não é apenas um nada, e sim a ocupação de um lugar daquilo que lá poderia estar. Trata-se de uma regulação específica, quando necessária, de um valor jurídico de caráter genérico.Deve-se recordar, ainda, que o Estado Social, ao considerar os trabalhadores como classe e atraí-los, nessa configuração, para o contexto social, conferiu-lhes o direito de defenderem os seus interesses, o que se traduziu juridicamente como o princípio da constante melhoria da condição social e econômica da classe trabalhadora, que se insere no conceito mais amplo de justiça social e que representa a parcela mais importante do compromisso firmado pelos detentores do poder, no período pós segunda guerra mundial, de desenvolverem um capitalismo socialmente responsável.É assim, portanto, que o Direito permite aos trabalhadores defenderem, por meio da greve, os interesses que considerarem relevantes para a melhoria da sua condição social e econômica até mesmo fora do contexto da esfera obrigacional com um empregador determinado.A greve vista, pela ótica do Direito Social, conseqüentemente, é um instrumento a ser preservado. Ao direito não compete limitá-la e sim garantir que possa ser, efetivamente, exercida e a forma mais rudimentar de cumprir esse objetivo é não impor aos trabalhadores o sacrifício do próprio salário do qual dependem para sobreviver. O direito não pode meramente fixar os contornos de um jogo no qual quem pode mais chora menos. O que o direito deve fazer é permitir que o jogo seja jogado, atribuindo garantias aos trabalhadores para que o valor democrático possa ter um sentido real.Oportuno registrar que muitas das pessoas que hoje abominam a greve não se recordam que as garantias jurídicas de natureza social que possuem, aposentadoria, auxílio-doença, licenças, férias, limitação da jornada de trabalho etc. etc. etc., além de direitos políticos como o voto e a representação democrática das instituições públicas advieram da organização e da reivindicação dos movimentos operários.Negar aos trabalhadores o direito ao salário quando estiverem exercendo o direito de greve equivale, na prática, a negar-lhes o direito de exercer o direito de greve, e isto não é um mal apenas para os trabalhadores, mas para a democracia e para a configuração do Estado Social de Direito do qual tantos nos orgulhamos!Conforme Ementa, da lavra de Rafael da Silva Marques, aprovada no Congresso Nacional de Magistrados Trabalhistas, realizado em abril/maio de 2010: “não são permitidos os descontos dos dias parados no caso de greve,salvo quando ela é declarada ilegal. A expressão suspender, existente no artigo 7 da lei 7.783/89, em razão do que preceitua o artigo 9º. da CF/88, deve ser entendida como interromper, sob pena de inconstitucionalidade, pela limitação de um direito fundamental não-autorizada pela Constituição federal”.Ora, se a greve é um direito fundamental não se pode conceber que o seu exercício implique o sacrifício de outro direito fundamental, o da própria sobrevivência. Lembrando-se que a greve traduz a própria experiência democrática da sociedade capitalista, não se apresenta honesto impor um sofrimento aos trabalhadores que lutam por todos, que, direta ou indiretamente, se beneficiam dos efeitos da greve.É importante destacar esse aspecto da contrariedade pessoal que se possa ter em face das greves (que é, como dito, totalmente injustificável), pois é, afinal, essa visão negativa da greve, advinda de preocupações individualistas, que motivam as interpretações limitadoras do direito de greve.Para negar aos trabalhadores o direito ao recebimento de salário no período em que exercem o direito de greve escora-se em previsão contida na Lei n. 7.789/89, que assim dispõe:“Artigo 7º - Observadas as condições previstas nesta Lei, a participação em greve suspende o contrato de trabalho, devendo as relações obrigacionais, durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho.”Imagina-se que este dispositivo tenha retirado dos trabalhadores o direito de recebimento de salário durante o período da greve, mas de fato, vale reparar, não há disposição expressa neste sentido. Esse, ademais, é o primeiro dado a ser observado, pois a perda do salário só se justifica em caso de falta não justificada e é mais que evidente que a falta de trabalho, decorrente do exercício do direito de greve, está mais que justificada, pois, afinal, a greve é um direito do trabalhador.Cumpre verificar, também, que quando o trabalhador está exercendo o direito de greve sequer se pode falar em “falta ao trabalho”, pois a greve pressupõe ausência de trabalho e não ausência ao trabalho. Os trabalhadores em greve comparecem ao local de trabalho – ou próximo a ele – para fazerem suas manifestações e reivindicações. É interessante perceber que em alguns locais de trabalho a experiência humana, dos pontos de vista cultural, acadêmico, político e democrático, é muito mais intensa nos períodos de greve, quando se deixa de lado o trabalho burocratizado, mecanizado, e se estabelece um debate aberto sobre a própria estrutura na qual o trabalho se insere.Acrescente-se que legalmente falando não há diferença entre interrupção e suspensão do contrato de trabalho, embora a doutrina tenha criado essa diferenciação em razão da expressão trazida como denominação do Capítulo IV da CLT: “Da Suspensão e da Interrupção”.O fato é que embora o nome do Capítulo seja este, a própria CLT não definiu as figuras em questão. Por esforço classificatório, a doutrina nacional tratou de separar as hipóteses. Mas, sem o pressuposto de uma definição legal, formou-se na doutrina uma divergência a respeito do assunto, pois para alguns a suspensão seria caracterizada pela ausência total de efeitos jurídicos[2] enquanto que para outros a produção de alguns efeitos não a descaracterizaria[3]. Para estes últimos, o elemento diferenciador seria apenas o recebimento, ou não, do salário, com a conseqüente contagem do tempo de serviço.Na verdade, a discussão acadêmica acerca do melhor critério para separar interrupção e suspensão tem pouca ou nenhuma importância, pois os efeitos jurídicos atribuídos a cada situação devem ser determinados na lei.Assim, quando a Lei n. 7.783/89 traz a expressão suspensão não se pode atribuir a ele os efeitos jurídicos postos por uma classificação de caráter doutrinário, que sequer se apresenta de forma unânime.Do ponto de vista da doutrina estrangeira, por exemplo, não se tem essa diferenciação. Todas as hipóteses em que não há prestação de serviço por parte do empregado e se mantém vigente a relação de emprego são tratadas como suspensão[4][5][6].Orlando Gomes e Élson Gottschalk, por exemplo, também tratam as hipóteses como sendo apenas de suspensão, subdivididas em suspensão total e suspensão parcial: “Entre nós, a Consolidação no Título IV, Capítulo IV, trata da Suspensão e da Interrupção do contrato de trabalho, e grande parte da doutrina, seguindo esta distinção, entende que como suspensão se deve encarar a total paralisação dos efeitos do contrato de trabalho, e como interrupção, procura-se explicar, compreende-se a manutenção de alguns efeitos e a paralisação de outros. Trata-se de técnica peculiar apenas ao direito pátrio, sem correspondência no direito alienígena, e que, em verdade, se trata de mais uma terminologia ineficaz para substituir a suspensão parcial do contrato, cujo vinculo júris não se rompe nem se interrompe com ocorrências de determinadas causas, que apenas suspendem temporariamente a relação de emprego.”[7]Ao manterem a distinção, embora com outra nomenclatura, os autores mencionados buscam fixar um critério para identificá-la: “A suspensão pode ser total ou parcial. Dá-se, totalmente quando as duas obrigações fundamentais, a de prestar o serviço e a de pagar o salário, se tornam reciprocamente inexigíveis. Há suspensão parcial quando o empregado não trabalha e, não obstante, faz jus ao salário.”[8].Nestes termos, do ponto de vista terminológico, com base na doutrina de Orlando Gomes e Élson Gottschalk, a suspensão da relação de emprego, sendo parcial, pode implicar a obrigação do pagamento de salário.O que importa, unicamente, é saber o que a lei considera suspensão da relação de emprego e quais efeitos jurídicos são por ela, a lei, mantidos vigentes durante o período correspondente, sabendo-se que o efeito da manutenção da relação de emprego está sempre presente, pois, afinal, é este efeito que diferencia a situação de outra que lhe é, esta sim, concretamente avessa, que é a cessação da relação de emprego.Arnaldo Süssekind comentando a origem da distinção, que se espelhou nas experiências do direito comparado, que se utiliza, no entanto, das figuras da suspensão total ou parcial, dá o relato de uma tese apresentada à Universidade de Brasília, por Sebastião Machado Filho, que, igualmente, já havia refutado tanto a nomenclatura quanto a distinção adotadas pela Consolidação das Leis do Trabalho, “sustentando que se verifica, apenas a ‘suspensão da prestação de execução de serviço’.”[9]No tema pertinente à suspensão da relação de emprego, o que importa é, portanto, verificar quais os efeitos obrigacionais são fixados por lei. Não cabe à doutrina dizê-lo. E, de fato, no caso da greve cumpre reparar que a lei nada estabeleceu sobre os efeitos obrigacionais. Apenas restou dito que “a greve suspende o contrato de trabalho”. Ora, se o legislador não fixou diferença entre suspensão e interrupção e, ademais, considerando o pressuposto da experiência jurídica estrangeira, trouxe essa forma de nominação fora de um parâmetro técnico, não se pode dizer que quando, em lei especial, referiu-se apenas à suspensão tenha acatado a classificação feita pela doutrina, que, ademais, como dito, não é unânime quando aos critérios de separação entre hipóteses de suspensão e interrupção. Do ponto de vista doutrinário, é mais correto dizer que a lei de greve corrigiu uma incoerência nominativa trazida na CLT, nada mais que isso.Aliás, não pode mesmo ser outra a conclusão, considerando o que diz, na seqüência, a referida Lei n. 7.783/89: “...devendo as relações obrigacionais, durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho.” – grifou-seOra, o que diz a lei é que os efeitos obrigacionais não estão fixados pela lei. Assim, não pode o empregador, unilateralmente, dizer que está desobrigado de pagar salários durante a greve, pois não terá base legal nenhuma a embasá-lo.E, como se está procurando demonstrar, o direito do recebimento de salário é um efeito obrigacional inegável na medida em que, por lei, o não recebimento de salário somente decorre de falta injustificada ao serviço, ao que, por óbvio, não se equipara a ausência de trabalho em virtude do exercício do direito de greve. É evidente que o exercício de um direito fundamental, o da greve, não pode significar o sacrifício de outro direito fundamental, o do recebimento de salário.A interpretação extensiva dos termos da lei, implicando na negativa ao direito de recebimento de salários, é imprópria mesmo sob o prisma das técnicas de interpretação do direito comum, quando mais em se tratando de um direito social. É evidente que a preocupação do legislador, ao dizer que a greve “suspende o contrato de trabalho”, foi a de dar ênfase à preservação da relação de emprego, evitando que o empregador considerasse os dias parados como faltas ao trabalho e propugnasse pela cessação dos vínculos jurídicos. É o que consta, ademais, com todas as letras no parágrafo único do artigo 7º., da lei em questão: “É vedada a rescisão de contrato de trabalho durante a greve, bem como a contratação de trabalhadores substitutos, exceto na ocorrência das hipóteses previstas nos artigos 9º e 14.”Interessante observar que essas garantias legais para o exercício do direito de greve não se dão sem uma contrapartida. O artigo 9º. determina que “Durante a greve, o sindicato ou a comissão de negociação, mediante acordo com a entidade patronal ou diretamente com o empregador, manterá em atividade equipes de empregados com o propósito de assegurar os serviços cuja paralisação resultem em prejuízo irreparável, pela deterioração irreversível de bens, máquinas e equipamentos, bem como a manutenção daqueles essenciais à retomada das atividades da empresa quando da cessação do movimento.” – grifou-seAssim, a greve, como instituto jurídico de natureza coletiva, deve se realizar de modo a não gerar dano irreparável ao empregador do ponto de vista de seu maquinário. Essa situação elimina, por completo, a visão individualista que ainda insiste em assombrar a greve e mesmo a conclusão de que o salário não é devido durante o período de parada. Ora, quem deve definir como esses serviços serão executados, conforme dispõe a lei, é o sindicato (ou a comissão de negociação), mediante acordo com a entidade patronal ou diretamente com o empregador. Não será, portanto, o empregador, sozinho, que deliberará a respeito junto com os denominados empregados “fura-greves”. A manutenção das atividades do empregador, com incentivos pessoais a um pequeno número de empregados, que, individualmente, resolvem trabalhar em vez de respeitar a deliberação coletiva dos trabalhadores, constitui uma ilegalidade, uma frustração fraudulenta ao exercício legítimo do direito de greve.Neste sentido, não se pode opor, no ambiente de trabalho, o direito liberal, de ir e vir, perante o direito de greve, cuja deflagração se deu coletivamente. A lei, ademais, é clara quanto ao aspecto de que a continuação das atividades inadiáveis do empregador deve ser definida em negociação com o sindicato ou a comissão de negociação.Dentro deste contexto, a atuação dos trabalhadores em greve de impedir, pacificamente, que os “fura-greves” adentrem o local de trabalho, ou seja, a realização do conhecido “piquete”, constitui parte essencial do exercício do direito de greve. Neste aspecto, ademais, falham os sindicatos ao não levarem ao Judiciário, a fim de obterem uma tutela jurisdicional a respeito, a questão pertinente à continuidade das atividades do empregador durante a greve sem a devida negociação com os sindicatos.Votando ao problema do salário, veja-se que o dispositivo do art. 9º constitui uma pá de cal na argumentação contrária à que se expressa neste texto. Ora, se todos os trabalhadores, manifestando sua vontade individual, deliberam entrar em greve, o sindicato, como ente organizador do movimento, deve, segundo os termos da lei, organizar a forma de execução das atividades inadiáveis do empregador. Para tanto, deverá indicar os trabalhadores que realizarão os serviços, os quais, mesmo tendo aderido à greve, terão que trabalhar. Prevalecendo a interpretação de que a greve representa a ausência da obrigação de pagar salário, de duas uma, ou estes trabalhadores, que apesar de estarem em greve e que trabalham por determinação legal, não recebem também seus salários mesmo exercendo trabalho, ou em os recebendo cria-se uma discriminação odiosa entre os diversos trabalhadores em greve.Dito de forma mais clara, se todos os trabalhadores do setor de manutenção resolvem aderir à greve, por determinação legal estarão obrigados a realizar serviços inadiáveis. Definirão, então, entre si quais os trabalhadores farão os serviços e mesmo poderão deliberar a realização de um revezamento para a execução de tais serviços. É claro que não se poderá criar entre os que estarão trabalhando, por deliberação também coletiva, uma diferenciação jurídica acerca do direito ao recebimento, ou não, de salários.Veja-se o que se passa, igualmente, nas denominadas atividades essenciais. O artigo 11 da lei de greve dispõe que “Nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”, acrescentando o parágrafo único do mesmo artigo que “São necessidades inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”.Ora, se cumpre aos trabalhadores em greve manter os serviços essenciais, é natural que, pelo princípio da isonomia, não se crie uma diferenciação entre os empregados que estão trabalhando por determinação legal, para atender as atividades inadiáveis da comunidade, e os que não estão trabalhando, ainda mais porque a deliberação acerca de quem deve trabalhar no período da greve não é uma decisão individual e sim coletiva, como estabelece a própria lei.Neste sentido, repita-se: a decisão de trabalhar, ou não, no período de greve não pertence a cada trabalhador, individualmente considerado, daí porque, também, se torna legítima toda forma, pacífica, de impedir que o trabalho, para além das necessidades inadiáveis, continuem sendo executados, seja por vontade individual de um trabalhador, seja pela contratação, por parte do empregador, de empregados para a execução dos serviços, não se admitindo até mesmo que empregados de outras categorias, como terceirizados, por exemplo, supram as eventuais necessidades de mera produção dos empregadores no período.Assim, piquetes e até ocupações pacíficas do local de trabalho se justificam para que se faça prevalecer, em concreto, o legítimo e efetivo exercício do direito de greve.Nunca é demais lembrar que os efeitos benéficos da negociação advinda da greve atingirão a todos os trabalhadores, indistintamente, e não apenas àqueles que de fato levaram adiante a luta pela conquista de melhores condições de trabalho.Interessante perceber, também, que o ato da paralisação do trabalho, a greve propriamente dita, porque aparece publicamente, acaba fazendo crer que os trabalhadores cometem uma agressão contra o empregador e mesmo contra a sociedade ao executá-la. Mas, pouco se percebe que para chegarem à greve os trabalhadores já foram alvo de intensa violência, embora velada.Essa inversão de análise, aliás, vem imperando em nossa realidade, em diversos aspectos, chegando ao ponto de motivar a consideração de que direitos trabalhistas são privilégios e que cumpre a sociedade reprimir os grevistas, segundo tem proposto o atual reitor da Universidade de São Paulo, como se os trabalhadores não fossem, também eles, integrantes dessa mesma sociedade.Recentemente, a Presidência do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª. Região, nos “considerandos” do Ofício n. 306/2010-DGCA, definiu a greve como um “direito dos cidadãos” e buscou ver na lei de greve uma espécie de regulação da defesa dos interesses da sociedade em face dos grevistas. E, como ameaça à realização da greve por parte dos servidores chegou mesmo a sugerir que a demora da prestação jurisdicional seria culpa dos servidores, que estariam desrespeitando o “interesse público”. Determinou, assim, o corte dos salários dos servidores em greve como forma de punição pelo sacrifício imposto ao “público jurisdicionado”, que teria ficado “frustrado em sua expectativa de solução breve de suas lides trabalhistas”, integradas por créditos, em sua maioria, “de caráter alimentar”, como se o salário dos servidores, cujo corte fora determinado, não fosse da mesma natureza.De um direito, a greve se tornou, por si, mesmo sem avaliação do conteúdo das reivindicações, um ato ilícito, e, pior, segundo posicionamento advindo do interior da própria instituição criada para a defesa dos direitos dos trabalhadores, a Justiça do Trabalho. E, na perspectiva dos trabalhadores, em vez de um direito, a greve se transforma em um ato de heroísmo ou ignorância, já que se põe em risco o próprio pescoço para lutar por outros que, por medo ou desprezo, não aderem ao movimento...Interessante verificar que fora com base na lei de greve que a Presidência do Tribunal fixou, unilateralmente, quais seriam as atividades inadiáveis e o percentual de servidores (50%, em cada unidade) que deveriam permanecer trabalhando, contrariando, no entanto, frontalmente, os próprios termos da lei a que se refere, a qual, repita-se, determina que essa deliberação deve ser feita de “comum acordo” com os trabalhadores (art. 11).O fato é que as ameaças econômicas, como represálias à adesão a atividades sindicais – e a greve é a principal delas – para intimidar e gerar medo nos trabalhadores, constituem atos anti-sindicais, tais como definidos na Convenção 98 da OIT (ratificada pelo Brasil, em 1952), que justificam, até, a apresentação de queixa junto ao Comitê de Liberdade Sindical da referida Organização.A questão é muito simples e como tal deve ser encarada: a greve é um direito dos trabalhadores e para o efetivo exercício desse direito, conforme garantido pelo artigo 9º., da Constituição Federal, não se pode tolerar o desconto de salário dos dias parados, salvo a partir do momento em que a greve, sendo o caso, for declarada ilegal pelo Poder Judiciário, sendo de se destacar que esse é o efeito máximo que o Judiciário pode conferir à greve, ou seja, não cumpre ao Judiciário determinar que os trabalhadores voltem compulsoriamente ao trabalho. A estes, unicamente, caberá assumir os riscos referentes aos eventuais efeitos jurídicos pelas ausências ao trabalho que passam, aí sim, a ser injustificadas.Cumpre lembrar que para a Organização Internacional do Trabalho sequer a solução judicial da greve é possível, cumprindo às partes, de comum acordo, buscarem o mecanismo de solução, a não ser nos casos de serviços essenciais, no sentido estrito do termo, quais sejam, “aquellos cuya interrupción podría poner en peligro la vida, la seguridad o la salud de la persona en toda o parte de la población”, conforme definido no caso n. 1839, julgado pelo Comitê de Liberdade Sindical, tratando da greve dos petroleiros de 1995. Nunca é demais recordar que no mesmo caso em questão o governo brasileiro foi criticado pelas dispensas de 59 trabalhadores grevistas (que, posteriormente, acabaram sendo reintegrados) e pelas multas que o Tribunal Superior do Trabalho impôs ao sindicato em razão de não ter providenciado o retorno às atividades após a declaração da ilegalidade da greve.Vale acrescentar que no que se refere aos servidores públicos, aos quais a Constituição brasileira assegurou o direito de greve, por tradição histórica, o não-desconto de salários em caso de greve se incorporou ao patrimônio jurídico dos servidores. Qualquer alteração neste sentido, portanto, além de ilegal, conforme acima demonstrado, representa um grave desrespeito aos princípios do não-retrocesso social e da condição mais benéfica, até porque as experiências democráticas no sentido da construção da cidadania devem evoluir e não retroceder.Em suma: só há direito à greve com garantia plena à liberdade de reivindicação por parte dos trabalhadores, pois, afinal, os trabalhadores em greve estão no regular exercício de um direito, não se concebendo que o exercício desse direito seja fundamento para sacrificar o direito à própria sobrevivência, que se vincula ao efetivo recebimento de salário.[1]. Juiz do Trabalho, titular da 3a. Vara do Trabalho de Jundiaí. Professor de direito do trabalho da Faculdade de Direito da USP.[2]. SÜSSEKIND, Arnaldo e outros. Instituições de Direito do Trabalho. 21ª ed. Vol. 1. São Paulo: Ltr, 2003, p. 281 e 301.[3]. CATHARINO, José Martins. Contrato de emprego: comentários aos arts. 442/510 da CLT. 2a ed. Rio de Janeiro: Edições trabalhistas, 1965, p. 242; DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr. 2002. p. 1032.[4]. CUEVA, Mário de La. Derecho Mexicano Del Trabajo. Tomo I. México: Porrua. 1960. p. 773.[5]. TORRES, Guillermo Cabanellas de. Compendio de Derecho Laboral. 3ª ed. Tomo I. Buenos Aires: Heliasta. 1992. p. 848.[6]. Embora mesmo nesta exista os que a adotam como BUEN L., Néstor de. Derecho del trabajo. 2ª ed. Tomo I. México: Porrúa. 1977. p. 541-542.[7]. GOMES, Orlando e GOTTSCHALK Elson, Curso de Direito do Trabalho. Vol. I. Rio de Janeiro:Forense. 1981. p. 454.[8]. GOMES, Orlando e GOTTSCHALK Elson, Curso de Direito do Trabalho. Vol. I. Rio de Janeiro:Forense. 1981. p. 454.[9]. SÜSSEKIND, Arnaldo e outros. Instituições de Direito do Trabalho. 21ª ed. Vol. 1. São Paulo: Ltr. 2003. p. 490.

Anistia no STF: o nome da rosa

Marcio Sotelo FelippeO ministro Eros Grau iniciou seu voto condutor no julgamento sobre a Lei da Anistia com uma concepção doutrinária que lhe é cara: a distinção entre texto normativo e norma. Se o texto normativo diz que “é proibido o trânsito de veículos no parque”, o juiz pode extrair deste enunciado várias normas. Pode dizer que uma bicicleta é um veículo ou pode dizer que uma bicicleta não é bem um veículo. De plano, neste singelo exemplo, já extraímos duas normas de um só texto. O que o juiz faz é optar por uma delas, com base em razões assentadas em valores sociais (que tendem a reproduzir valores expressivos ou dominantes na sociedade), conceitos jurídicos formais, concepções culturais e filosóficas, mas também em meras escolhas políticas. Simplesmente opções políticas, que podem determinar (tratando-se de julgamento do Supremo Tribunal Federal) tanto o rumo da República quanto o destino de nosso patrimônio, de nossa liberdade, de nossa integridade física, espiritual e cultural como indivíduos ou como povo. Vamos então dar um salto para a parte final do voto do ministro Eros. Disse ele: somente o Congresso pode rever a lei de anistia e estabelecer aquilo que a OAB pedia ao Judiciário. Somente o Congresso pode afirmar que os crimes contra a humanidade — torturas, homicídios, desaparecimentos forçados, crimes sexuais, etc. — cometidos pelos agentes do Estado ao longo da ditadura militar não tinham conexão com os crimes políticos e não foram anistiados. O que nos leva a concluir que o ministro Eros recusou-se a fazer o que o professor Eros ensina que os juízes façam: extrair uma norma do texto normativo e julgar. Não há contradição entre as duas pontas do voto. Eros Grau, ao fim e ao cabo, decidiu não decidir. Fechou as portas do Judiciário e nos remeteu ao bispo — no caso, o Legislativo. Na verdade, isto não seria nenhuma anomalia teórica. Tem um nome e uma longa tradição na história das ideias. O nome da rosa é Razão de Estado e o leitor logo compreenderá do que estou falando: Maquiavel foi um de seus formuladores. Em determinados momentos da vida de um Estado, as circunstâncias exigem que normas jurídicas, regras morais e preceitos importantes para a convivência social sejam deixados de lado a bem da segurança política. Em suma, o que é central e o que realmente interessa no voto de Eros, deixando de lado razões subsidiárias e recursos retóricos, é este ponto: fez-se um acordo político para a transição para a democracia e, como em todo acordo, as partes entregam uma coisa para conseguir outra. O Judiciário não desfará esse acordo. Ponto final. Sou amigo do ministro Eros e sei de sua trajetória e bagagem intelectual como professor e juiz. Mas pessoas honestas e raz oáveis podem ter divergências honestas e razoáveis, ainda que profundas e irreconciliáveis, e parte indissociável da ideia de amizade é o respeito às convicções do outro. Sei a força que tem a ideia de Razão de Estado e as razões teóricas que levam alguns a entender que às vezes pode ser justificada, ainda que na imensa maioria dos casos eu tenda a discordar. Intuo como isso pesou em seu voto. No entanto, se vivesse até o final dos tempos não mudaria de ideia sobre duas coisas relativas à ordem de considerações que motivou o Ministro. Uma fática, outra moral. A fática: a Lei de Anistia não tem absolutamente nenhum resquício deste contexto de transição política e acordo para a democracia, que só teríamos cinco anos depois, quando milhões de brasileiros foram às ruas exigindo eleições diretas (o que a ditadura militar não deu...). Foi apenas produto de uma estratégia política da ditadura. Jamais de transição para a d emocracia. Ditada pelo regime militar a um Congresso ilegítimo e impotente, desprovido da elementar condição necessária para pactuar — a liberdade política — sabem até as pedras da rua que o regime militar a promulgou como e quando lhe interessava, visando não a segurança jurídica e política da República, mas a segurança política e jurídica de seus agentes criminosos e a sua própria sobrevivência, para a qual convinha naquele momento um certo afrouxamento diante da resistência e clamor social contra o arbítrio. Não é possível denominar isto de acordo de transição sem violentar a História. A moral: a partir do Iluminismo, tudo que se construiu para chegar a um estágio mínimo de civilização teve o sentido de impor limites à Razão de Estado. Democracia, direitos e garantias políticas e sociais e direitos humanos são formas normativas de exercer poder junto ao Poder, seja em modo negativo, seja em modo positivo, determinando que o Estado faça ou deixe de fazer. Devemos aqui também dar o nome à coisa. O nome da rosa é dignidade humana. Segundo o conceito filosófico clássico, que devemos a Kant, significa que há formas de tratar um homem que são inadmissíveis em qualquer hipótese. Não tem preço e não pode ser negociada. Não há Razão de Estado que permita transigir com a dignidade humana. O Estado não pode torturar aviltando no mais alto grau a humanidade do outro. O Estado não pode fazer desaparecer as pessoas, condenando seus próximos a indizível sofrimento e marcando para sempre suas vidas. O Estado não pode acobertar crimes sexuais cometidos em seus porões e toda sorte de crueldades praticadas por seus agentes. Se o Judiciário, chamado a dizer que isto tudo não pode omite-se, deixa de cumprir sua básica função constitucional republicana. Instrumentos jurídicos existiam. O ponto final deve ser sempre a dignidade humana. Nunca houve aquele “acordo”. E se acordo houvesse, seria nulo diante da cláusula pétrea da dignidade humana a partir de 5 de outubro de 1988. MARCIO SOTELO FELIPPE foi procurador-geral do Estado de São Paulo de 1995 a 2000, e Diretor da Escola Superior da Procuradoria-Geral do Estado, de 2007 a 2008.

Como se Fosse um Sonho

Amini HaddadNeste mês, estive “transitando”, em completa aspiração, por entre os grupos sociais. Nesses devaneios, percebi homens e mulheres lado a lado. A ilusão me fez vivenciar uma diferenciada harmonia nas pessoas e em suas decisões, como um complementar de experiências, estas, sim, em uma unidade jamais vista.Enfim, pude constatar o equilíbrio, advindo da magnífica criação: o Feminino e o Masculino. Senti, imensamente, a totalidade do Ser Humano, na completude da conjugação das expressões da vida. Não me senti isolada, tal como antes. Por vezes, com a voz quase esquecida. Afinal, havia igualdade de mulheres e homens debatendo grandes temas, proferindo julgamentos de interesse da sociedade. Também vivenciei projetos diferenciados de Leis e Resoluções com ênfase no interesse público. De igual forma, as mulheres acresciam horizontes às empresas multinacionais. Elas não mais se encontravam intimidadas pela maciça presença masculina, em espaços que, permanentemente, eram excluídas. Preenchiam as suas cotas, como parte do todo. O resultado dessa conjugação fez-nos todos melhores. Afinal, as moldagens da personalidade e vivências são diferenciadas no olhar de cada homem e de cada mulher. As diferenças, contudo, não justificam qualquer inferioridade. As mesmas, ao contrário, pertencem à completude do TODO. Exatamente por isso, existe esse binômio. Afinal, não nascemos de um só.Se essa é a experiência da vida, não podemos nos afastar dela.Durante séculos, foi-nos extirpada a oportunidade do livre pensar e agir, da participação equânime, da efetiva construção social, igualitária e de Justiça. Utilizaram argumentos sórdidos para nos fazer acreditar que não poderíamos tomar decisões e conduzir as nossas vidas. Fizeram de tal forma, que muitas mulheres, de capacidade e competência infinitas, acreditaram e procederam com as referidas justificativas em suas vidas. Enterram-se vivas sem perceber a absurda estória conduzida por outros que não por elas mesmas. Quantas mulheres permaneceram cegas, surdas, mudas. Um destino injusto, desigual, esquecido. Será que detiveram identidade? Alguns ainda tentam impingir mácula à expressão dessa igualdade tanto perseguida. Mas, os sonhos permanecem em nossos horizontes e fortalecem as nossas almas, como se ocorresse um renascimento diante das dificuldades experimentadas. Exatamente por isso, tomei a iniciativa de redigir projeto de lei, bem como suas justificativas, objetivos e fundamentos (Projeto Lei da Igualdade), conclamando para que TODOS participem desse ideário de justiça, acrescendo assinaturas digitais no endereço eletrônico: http://www.amamcba.org.br/. O referido projeto objetiva conceder melhores condições de vida (igualdade de salários, participação e acesso) às mulheres e respectivas famílias e, portanto, a toda a sociedade, tendo-se em vista que o custo da discriminação de gênero deturpa a educação das gerações futuras, instiga a violência e legitima a exclusão social, descaracterizando, pois, a própria dignidade humana. Assim, a possibilidade da concreção da igualdade deverá passar pela conscientização dos direitos humanos na perspectiva de gênero, inclusive no concernente aos conceitos básicos (integridade física, psicológica, moral, sexual e patrimonial). Afinal, mundialmente, a violência de gênero apresenta-se, por vezes, até institucionalizada, pela própria forma de Estado (leis, sistemas, hierarquias e culturas excludentes). A superação da concepção de espaços pré-destinados é outra questão de suma importância para se vencer as distinções discriminatórias secularmente prescritas. Portanto, a sua participação é imprescindível à obtenção de assinaturas suficientes ao referido projeto, de iniciativa popular, em observância aos limites de percentual necessários à obtenção de um milhão de assinaturas. Como se fosse um sonho ou um amanhã de novas realidades. Termino esta aspiração com as palavras magníficas de Hannah Arendt: “Consoladora, inclina-te suavemente para o meu coração. Dá-me, silenciosa, alívio para a dor. Coloca tua sombra sobre tudo por demais brilhante. Deixa-me teu silêncio, teu abrandamento refrescante. Deixa-me embrulhar em tua escuridão tudo o que é mau. Quando a claridade doer com novas visões. Dá-me a força para seguir adiante com firmeza” (Por Amor ao Mundo). Amini Haddad Campos. É Juíza de Direito. Doutrinadora em Direitos Humanos e Gênero. Membro da Academia Mato-Grossense de Letras e da Academia de Magistrados. Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. document.getElementById('cloak1c7219e4da585db9ce1f8f96d4da17bb').innerHTML = ''; var prefix = 'ma' + 'il' + 'to'; var path = 'hr' + 'ef' + '='; var addy1c7219e4da585db9ce1f8f96d4da17bb = 'amini' + '@'; addy1c7219e4da585db9ce1f8f96d4da17bb = addy1c7219e4da585db9ce1f8f96d4da17bb + 'terra' + '.' + 'com' + '.' + 'br'; var addy_text1c7219e4da585db9ce1f8f96d4da17bb = 'amini' + '@' + 'terra' + '.' + 'com' + '.' + 'br';document.getElementById('cloak1c7219e4da585db9ce1f8f96d4da17bb').innerHTML += ''+addy_text1c7219e4da585db9ce1f8f96d4da17bb+''; .

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