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Flores e Velas em Homenagem a Jean Charles, Morto há dois Anos pela Polícia Britânica

Márcia Novaes Guedes A notícia da morte de Jean Charles nos colheu na Itália, e dessa janela, observamos, por dois anos, acontecimentos que cremos decisivos para o futuro da democracia. A execução do jovem eletricista, o modo como foi conduzido o inquérito, a parcialidade da Comissão Independente de Queixa à Polícia (IPCC), livrando Ian Blair, responsável direto pela operação, por fim, a absolvição dos envolvidos contra as evidências, são fatos que somente podem ser compreendidos quando inseridos num contexto mais amplo, que resulta da opção da UE pela liberdade de mercado em detrimento dos direitos humanos. Desse mesmo contexto fazem parte muitas outras tragédias, como a de Portopalo de Capo Passero, no canal da Sicília, em 1996, e àquelas que culminaram com a revolta dos jovens incendiários franceses. Na manhã daquela fatídica sexta-feira (22/07/05) quando o eletricista brasileiro Jean Charles de Menezes deixou o pequeno apartamento que dividia com duas primas na tranqüila colina de Tull Hill em Londres e foi perseguido e executado na estação do metrô de Stockwell por agentes a paisana da Scotland Yard, o mundo ainda não sabia que essa tragédia selava a opção da UE de se fechar numa fortaleza, dividindo a condição humana entre "os de dentro" e os "de fora", acompanhando o declínio incontrastável que segue a experiência democrática interna dos americanos do Norte depois do 11 de setembro. Ao perscrutar os pressupostos do totalitarismo e seus corolários, os campos de concentração e a "solução final", o extermínio em escala industrial de cerca de 11 milhões de pessoas, Hannah Arendt notou que, toda vez que aparecem pessoas que não pertencem a um estado-soberano, os direitos humanos que deveriam ser universais e inalienáveis, independentes de qualquer governo, se revelam uma falácia. Infelizmente, os efeitos colaterais da globalização provam que, tanto ontem como hoje, as pessoas enxotadas pela ordem social ou pelo progresso econômico, que perderam um lugar no mundo, não perderam apenas os direitos humanos, mas todos os direitos. Conseqüentemente, o primado de que todos são iguais perante a lei não as alcança. A democracia européia, paradigma para tantas gerações de brasileiros e latino-americanos, soçobra diante da globalização globalitária e não há uma instituição em grau de frear a devastação produzida pela escolha da liberdade de mercado em detrimento das liberdades individuais e dos direitos humanos. No cenário globalizado ressurgem os novos desplaced persons, os sans papier, o refugo da terra, os rejeitados do mundo, enfim, os supérfluos que a new economy, "descontaminada" de valores morais, produz sem solução de continuidade. A mundialização da economia afrouxa os laços culturais e desenraíza as pessoas, ampliando os corredores migratórios. Fugindo da fome, da miséria e da guerra, populações inteiras da Ásia e da África, atravessando desertos e mares, imigram para a Europa. A política de tolerância zero e o combate sem trégua à imigração, no entanto, fizeram surgir um frutuoso e rentável negócio de tráfico humano. Traficantes singram mares e oceanos em naus com porões carregados de homens, mulheres e crianças. São imigrantes políticos ou econômicos. Muitas dessas embarcações naufragam sem socorro na Costa da Itália. Na noite de 25 para 26 de dezembro de 1996, uma embarcação saída do Porto de Malta com cerca de 300 imigrantes afunda no canal da Sicília. Um barco sem nome recebeu uma carga do navio Yoahan de cerca de 300 pessoas entre homens, mulheres e crianças oriundos do Siri Lanka, da Índia e do Paquistão e naufraga no mar em tempestade, em frente à vila de pescadores de Portopalo de Capo Passero. Os corpos, ainda não decompostos, se embrenhavam nas redes dos pescadores que, vendo o descaso das autoridades, optaram por devolvê-los ao mar. Ao retornarem do trabalho à noite, nos bares da cidadezinha, a baixa voz, os pescadores contavam histórias de horrores. A polícia italiana preferiu ignorar as evidências do naufrágio descrito nos boletins de ocorrência da polícia grega, apesar do registro de um crânio humano enfiado numa haste de ferro e colocado, por brincadeira, na porta de um açougue de Portopalo. Mesmo tendo o legista comprovado a presença de conchas e siris no interior da ossada, as autoridades não se interessaram em descobrir a identidade do morto, nem procurar a família do náufrago fantasma. Cinco anos depois, o jornalista Giovanni Maria Bellu passa a investigar o caso e, com a ajuda de um pescador, descobre os destroços do navio afundado e os restos humanos. Em 15 de junho de 2001, o Jornal La Repubblica notícia a descoberta do cemitério a mais de 100 metros de profundidade e o navio afundado no canal da Sicília. Nesse mesmo dia, os quatro italianos ganhadores do prêmio Nobel fazem um apelo ao governo para que resgate os restos mortais das vítimas. No pedido se ressalta o "dever moral da Itália" e a advertência de que "deixar os corpos no fundo do mar seria o último ultraje à memória das vítimas numa Europa conhecida por sua defesa dos direitos humanos". O governo italiano segue ignorando essa tragédia, pois naquele ano, o Governo de Romano Prodi havia sido fortemente advertido a observar as regras do acordo de Schengen, vale dizer, impedir o ingresso de imigrantes, sob pena de Itália ser cortada da União Européia. Diante do silêncio oficial, Bellù publica o livro intitulado I Fantasmi di Portopalo - La morte di 300 clandestini e il silenzio della Itália (Mondadori. Milão, 2004). Em 26 de dezembro de 2004, ao retornar a Portopalo para fazer o lançamento do livro, o jornalista é ameaçado e obrigado a deixar o local, sob escolta. O Prefeito alega que o livro joga todos na lama. A cidade e os pescadores se escondem atrás da conspiração do silêncio e o pároco local propõe aceitar o mal, dizendo que o mar é um lugar de paz tanto e talvez mais do que a terra (sic). Ocorre que aceitar conviver com o mal é o mesmo que criar as condições não apenas para banalizá-lo, como também para que se repita. "Paris - Segunda-feira. Enquanto retornava para casa, Bambaya Coumba viu uma criança voar. ´Parecia que boiava no ar´, recorda. No edifício da rua Roi-Doré, no bairro histórico de Marais, tinha começado um violento incêndio e a mãe do pequeno pensou que para salvá-lo deveria jogá-lo fora das chamas. Ela morreu intoxicada pela fumaça, a criança, de apenas seis anos, morreu em seguida aos ferimentos provocados pela queda. Bambaya, um rapaz imigrado da Costa do Marfim, agora chora de raiva, mas tenta sorrir porque não quer parecer descortês, chora e sorri. E depois se pergunta: ´por que são sempre os africanos que estão queimando´?" (La Repubblica, Quarta-feira, 31 de agosto de 2005). Essa tragédia foi a gota d´água que faltava para romper o silêncio e fazer explodir a revolta de 3 (três) gerações de franceses imigrantes. Após a crise nas periferias, porém, o jornal "Le Monde" publicou em sua manchete uma pesquisa sobre a imagem do Front National. De acordo com o jornal, as idéias da extrema direita, representadas por Jean-Marie Le Pen, continuam se banalizando, e diminui significativamente o número de franceses que rejeita as propostas desse partido para a solução dos problemas do país. Apesar de escancarar a profunda crise de identidade que perpassa a Europa, intelectuais de proa são convocados para atribuir a culpa da revolta dos jovens à miscigenação. Precisamente quando surge a oportunidade histórica de provar que seu sistema de valores, baseado no respeito aos princípios universais do direito, como o direito de asilo e a fraternidade era pra valer, a Europa se fecha em busca de um novo lebensraum, de um espaço vital. Na Itália, a Lei Bossi-Fini de autoria dos senadores Roberto Bossi, chefe da Liga Norte de tendência xenófoba, e Gianfranco Fini, político que se notabilizou em manter viva a Marcha de Mussolini sobre Roma, tem por filosofia a drástica rejeição da imigração e uma exasperante distinção entre "os de dentro" e "os de fora", entre os que estão no mundo e os que perderam um lugar no mundo. O lebensraum, implantado por Hitler, tinha por pressuposto a eugenia racial, a existência de uma raça pura (ariana), a eliminação dos "ímpios" (judeus, ciganos, homossexuais e todos aqueles considerados inadequados para o perfeito funcionamento do sistema), e a escravização dos povos de origem eslava. O direito de pertencer ao mundo é a pré-condição para conduzir uma vida humana digna deste nome num século que se notabilizou pela eliminação em escala industrial de seres considerados supérfluos, advertia Hannah Arendt em 1948! Os direitos humanos que têm origem na Carta Magna da Inglaterra, outorgada por João Sem Terra, em 1215, evolui com o Bill of Rights de 1789, se afirma com a Declaração dos Direitos do Homem da França, e se revigora com as constituições modernas, em resposta ao totalitarismo. Mais recentemente, a Carta de Nice, que trata dos direitos fundamentais na UE, ainda que com exceções, assegura que estes prescindem da cidadania. A Corte Constitucional italiana, também, possui jurisprudência reiterada de que o princípio de igualdade se estende também ao estrangeiro e não apenas ao cidadão, quando se trata de assegurar tutela a direitos fundamentais. Até mesmo o código Civil, em respeito à convenção 143 da OIT, ratificada pela Lei 158 de 10/04/1981, garante a todos os trabalhadores estrangeiros, regularmente admitidos no país, a paridade de tratamento extensivo à família e plena igualdade de direitos com respeito aos trabalhadores italianos. Em Portopalo todo esse edifício jurídico naufragou. O problema do século XXI é o terrorismo e "nós devemos nos preparar para combater o pacifismo pilatesco"(!). Essa frase do senador e ex-ministro italiano Gianfranco Fini é uma chave de leitura para compreendermos a execução de Jean Charles de Menezes, que nos lembra a história de "Cabra Marcado pra Morrer". Na Europa de hoje, como nos anos de 1934-1945, a polícia se torna onipresente e espectral, na medida em que faz a lei em vez de se contentar em aplicá-la. O combate ao terrorismo justifica a expressiva rejeição dos pedidos de asilo político, e, mesmo sem lei que o defina, tanto na França quanto na Itália, já existe o "delito de hospitalidade", do qual é acusado todo aquele que dá hospitalidade a um imigrante clandestino. Os naufrágios na Costa da Sicília se repetem por falta de socorro dos pesqueiros. A violência policialesca, ensina Walter Benjamin, é sem figura, sem forma e, por isso mesmo, resta sem responsabilidade, não é apreensível como tal, esclarece Jacques Derrida. Interessante notar, como faz o filósofo francês, que o Projeto de Lei Toubon, que propõe tratar como ato terrorista qualquer hospitalidade concedida ao estrangeiro irregular, coincide com uma famosa ordenança emanada durante a ocupação militar da França pela Alemanha, que considerava "ato ilegal" qualquer ajuda ao estrangeiro em situação irregular. Para os imigrantes recalcitrantes de hoje estão sendo construídas prisões no Norte da África, aos poucos a idéia dos "transit processing", do ex-primeiro ministro, Tony Blair, vai se concretizando. Se para "os de fora" prevalece a intolerância, para "os de dentro", intensifica-se a precarização com a exploração intensiva do trabalho vivo, parca retribuição e ausência de garantias sociais. Na Itália, a Lei Biagi marca a descontinuidade com a tradição jurídica, criando um atalho ao sistema modelado pela Lei 300 de 1970, Estatuto dos Trabalhadores. A minoria de trabalhadores que ainda resiste no velho modelo do contrato por tempo indeterminado e goza da garantia no emprego (art. 18) possui mais de 50 anos de idade. Com a flexibilização, eles trotam para a aposentadoria com passos inseguros, diante do medo da deslocalização das empresas para a China ou outro país da Ásia, e com a certeza de que seus filhos dificilmente poderão atingir o padrão de vida por eles conquistado na idade dos direitos. A escolha pela liberdade de mercado resulta no desenganchamento entre poder e política, daí a necessidade de se institucionalizar o medo como forma de controle social. A guerra ao terrorismo apenas adensou a escolha em favor do livre mercado e contra a democracia. Por ironia, essa escolha acabou evidenciada na adulteração do texto escolhido pelos constituintes de Estrasburgo para o preâmbulo da constituição européia, preterida pelos franceses. Como os europeus crêem que a Grécia de Péricles pertence à Europa, e tomando por certo que a democracia nasceu na Grécia, nada mais lógico do que antepor e refinar o preâmbulo da constituição com a citação de uma passagem clássica. O texto escolhido foi um epitáfio que Tucides (430 A.C) atribui a Péricles. No preâmbulo da constituição européia está escrito o seguinte: "A nossa constituição é chamada democracia porque o poder está nas mãos não de uma minoria, mas do povo inteiro". Esse texto, segundo o filólogo Luciano Cânfora, é uma falsificação daquilo que efetivamente Péricles disse. Importa aqui tentar compreender o porquê de tamanha "baixeza filológica". Péricles emprega com desgosto o termo democracia e aposta tudo na liberdade, por isso diz: «se usa a palavra democracia para definir o nosso sistema político, simplesmente porque nos acostumamos a aceitar o critério da maioria, porém entre nós existe a liberdade»! Pode-se sofisticar quanto queira, mas a substância é que Péricles põe em antítese democracia e liberdade - ensina Canfora. Dentro desse novo espaço vital, a liberdade é a grande vencedora, a liberdade de mercado, bem compreendido, aquela que esconjura a democracia e considera cerceamento toda e qualquer medida de proteção aos mais fracos. Os notáveis constituintes de Estrasburgo, dedicando-se à escritura de uma constituição e pensando apenas em realizar um exercício de retórica, extraindo de Péricles o epitáfio, sem querer, acertaram o alvo - ironiza o filólogo italiano. Fizeram recurso, sem saber, ao texto mais nobre que se poderia utilizar para dizer não aquilo que deveria servir de retórica edificante, mas efetivamente aquilo que deveria ter sido dito. Isto é, que no mundo rico, venceu a liberdade com todas as terríveis conseqüências que isso comporta e comportará para os outros. A democracia é adiada para outras épocas e será repensada por outros homens, talvez, não mais europeus, conclui Canfora. Seguramente pelos "fantasmas" que rondam a Europa, únicos capazes de fazer saltar o continuum da história. Márcia Novaes Guedes é juíza do trabalho, doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de Roma - Tor Vergata e membro da Associação dos Juízes para a Democracia

A Defesa de sua Independência: Um Dever do Magistrado

Jorge Luiz Souto Maior e Marcos Neves Fava “Da dignidade do juiz depende a dignidade do direito. O direito valerá, em um país e em um momento histórico determinados, o que valham os juízes como homens. No dia em que os juízes têm medo, nenhum cidadão pode dormir tranqüilo.” (Eduardo Couture). Quando se fala em independência do juiz tem-se logo a idéia de que se está cuidando de uma prerrogativa particular do juiz. Não é bem isto. Embora hoje em dia a opinião pública venha sendo levada, pelos meios de comunicação, a confundir “garantias da magistratura” com “privilégios dos juízes”, é certo que as três garantias constantes do Texto Constitucional mostram-se essenciais ao exercício das funções do juiz, a saber: vitaliciedade, irredutibilidade de vencimentos e inamovibilidade. A Carta Política é clara ao instituí-las em seu artigo 95, incisos I, II e III. Chamam-se garantias de independência , eis que visam a promover julgamentos isentos de pressão, seja da sociedade organizada, seja dos interesses de grupos políticos ou econômicos, seja dos próprios órgãos jurisdicionais. Seu conjunto, somado à imunidade do Juiz ao proferir suas decisões , conformam o perfil da independência no exercício da magistratura. A independência do juiz, primeiro, é uma garantia do próprio Estado de Direito, pelo qual se atribuiu ao Poder Judiciário a atribuição de dizer o direito, direito este que será fixado por normas jurídicas elaboradas pelo Poder Legislativo, com inserção, ao longo dos anos, de valores sociais e humanos, incorporados ao direito pela noção de princípios jurídicos. A independência do juiz, para dizer o direito, é estabelecida pela própria ordem jurídica como forma de garantir ao cidadão que o Estado de Direito será respeitado e usado como defesa contra todo o tipo de usurpação. Neste sentido, a independência do juiz é, igualmente, garante do regime democrático. Importante, ademais, destacar que a questão da independência dos juízes tratou-se mesmo de uma conquista da cidadania, pois nem sempre foi a independência um atributo do ato de julgar. Dalmo de Abreu Dallari, assim se pronuncia a respeito: “Essa idéia de independência da magistratura não é muito antiga. Há quem pense que isso acompanhou sempre a própria idéia de magistratura — eu ouvi uma vez alguma coisa assim no Tribunal de Justiça de São Paulo — o que é um grande equívoco. São fatos, fenômenos novos, situações novas, que estão chegando há pouco e que provocam crise, provocam conflitos. Paralelamente a isso verifica-se, nesse ambiente de mudanças, o crescimento da idéia de direitos humanos. Há um aspecto da história da magistratura que eu vou mencionar quase que entre parênteses, é uma coisa que corre paralelamente à história européia, mas fica lá num plano isolado, que é o aparecimento de uma magistratura independente, de fato independente, nos Estados Unidos. É oportuno lembrar a atitude política dos Estados Unidos durante todo século XIX, ficando numa posição de isolamento do resto do mundo, sem participar de guerras ou alianças. Também o seu direito tinha outro fundamento, pois era basicamente o direito costumeiro e por isso não se refletiu nos direitos de estilo e tradição romanística, mas é muito interessante esse aspecto da história dos Estados Unidos.“ No Brasil, por exemplo, no período imperial, a composição do Judiciária se fez de modo a manter sob controle os juízes a fim de “manter uma estrita dependência com relação às luta eleitorais entre facções das classes dominantes escravistas” . A Constituição de 1824 conferia ao imperados a possibilidade de suspender juízes e não consagrou a garantia da inamovabilidade. Assim, segundo Décio Saes, citando Carlos Maximiliano, em um só dia, em 1843, por motivos políticos, procedeu-se a remoção de 53 juízes . O vergonhoso artigo 177 da Constituição da República de 1937 preceituava que o juiz poderia ser removido “no interesse público ou por conveniência do regime”, igualmente como regularam os atos institucionais, no golpe seguinte (de 1964), números 1, 2 e 5, revelando-se claramente o caráter precário da independência de que poderiam gozar os magistrados de então. Historicamente, foi com a Constituição americana, que, efetivamente, se consagrou a separação de poderes, conferindo autonomia ao Poder Judiciário, que a noção de independência da magistratura foi incorporada ao ordenamento jurídico: “Desde o começo da vida norte-americana já se discutia a questão da independência dos juizes. Quando os norte-americanos aplicaram na prática, inserindo na Constituição, o sistema de separação de poderes, a coisa talvez mais importante que eles fizeram naquele momento foi ampliar as idéias anteriores para valorizar o Judiciário, para dar ao Judiciário autonomia e atribuir-lhe a categoria de poder político. E comum a gente ler nos manuais que a separação de poderes foi invenção de Montesquieu, o que é absolu¬tamente equivocado. A defesa dessa idéia já aparece em Aristóteles e depois ressurge com um autor italiano do século XV, Giovanni Gravina e depois reaparece com Maquiavel. (....) Os norte-americanos avançaram muito em relação a isso. Tinham o temor do absolutismo, mas também tinham a lembrança, pela sua própria origem de uma espécie de absolutismo do Parlamento, que tinha ocorrido na Inglaterra. E, por isso conceberam o sistema que foi chamado de “freios e contrapesos”, que é o que está na Constituição americana, segundo o qual todo o Poder Legislativo cabe ao Congresso, o Congresso é quem legisla. Até hoje o presidente dos EUA não tem iniciativa de projetos de lei. A participação dele é relativamente pequena em termos de legislação e o Executivo, então, é o executor das leis. A idéia era essa: o Poder Legislativo fixa as normas e o Executivo é obrigado a agir nos limites dessas normas, a fazer aquilo que a norma determina e a não fazer aquilo que a norma proíbe. Mas os constituintes norte-americanos acrescentaram um terceiro poder político, que foi o Judiciário. Segundo essa concepção, o Judiciário é o elemento de equilíbrio, ele é o controlador do respeito à Constituição. Desde o início da vida norte-americana essa questão foi muito ressaltada e muito cedo se chamou a atenção para a importância que o Judiciário assumia. E extremamente interessante e muito referida, às vezes com certa ligeireza, a famosa decisão do juiz Marshall no caso Marbury versus Madison, no ano de 1803. O que foi realmente que Marshall fez que foi tão importante? Uma afirmação da competência do Judiciário para controle de constitucionalidade dos atos dos outros dois poderes. Sim, isto também. Mas o que de fato aconteceu foi que durante o período de implantação do Estado norte-americano já apareceu a idéia de que era fundamental que houvesse um Judiciário independente. E aí aparece a idéia do Judiciário constitucionalmente independente, do Judi¬ciário que vai garantir os direitos fundamentais, inclusive contra os eventuais abusos do próprio Legislativo, do juiz que para isso precisa ser independente.“ A independência dos juízes, portanto, foi fixada como fator essencial da proteção dos direitos fundamentais, inserindo-se como importante fator de construção e efetivação dos direitos humanos. Novamente é Dalmo Dallari que assim recorda: “Mas a partir daí surge o problema da eficácia das normas de direitos humanos. Agora elas têm eficácia jurídica, mas como garantir na prática esta eficácia? E aí que se começa a ressaltar a extraordinária importância dos juizes para o cumprimento deste papel. Em muitas obras já se fala nisso, em muitos tratados isto foi mencionado e os próprios pactos de direitos humanos mencionam a necessidade da independência do juiz, ao mesmo tempo em que falam na garantia de julgamento independente e imparcial como um dos direitos humanos fundamentais. (....) Para concluir, acho que há necessidade de nós reconhecermos, primeiro, que é fundamental a independência da magistratura. E voltando à minha questão: a independência da magistratura é importante para quem? Será que não é um privilégio do juiz querer ser independente? Peço licença para ler uma frase do meu livro O Poder dos Juizes, onde eu trato desta questão. Eu digo isto: “longe de ser um privilégio para o juiz, a independência da magistratura é necessária para o povo, que precisa de juizes independentes e imparciais para harmonização pacífica e justa dos conflitos de Direito” . Exatamente por isto, é possível verificar a consagração da independência do juiz em diversos dispositivos internacionais ligados aos Direitos Humanos: Declaração Universal Dos Direitos do Homem, 1948: Artigo 10: Todo o homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, 1948: Artigo XVIII - Toda pessoa pode recorrer aos tribunais para fazer respeitar os seus direitos. Deve poder contar, outrossim, com processo simples e breve, mediante o qual a justiça a proteja contra atos de autoridade que violem, em seu prejuízo, quaisquer dos direitos fundamentais consagrados constitucionalmente. Pacto de São José da Costa Rica, 1969: Artigo 8º - Garantias judiciais. 1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. Artigo 1º - Obrigação de respeitar os direitos. 1. Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social. Em nível supranacional também pode ser citada a Recomendação n. (94) 12, do Comitê dos Ministros do Conselho da Europa, de 13 de outubro de 1994, que trata da independência dos juízes . Também é possível verificar a consignação da idéia da independência dos juízes na Constituição de vários países, além, naturalmente, dos Estados Unidos, que fora, conforme antes mencionado, o propulsor da garantia Alemanha: “Os juízes são independentes e somente se submetem à lei” (art. 97). Áustria: “Os juízes são independentes no exercício de suas funções judiciárias” (art. 87) Dinarmarca: “No exercício de suas funções os magistrados devem se conformar à lei.” (art. 64) Espanha: “A justiça emana do povo e ela é administrada em nome do rei por juízes e magistrados que constituem o poder judiciário e são independentes, inamovíveis, responsáveis e submetidos exclusivamente ao império da lei.” (art. 117). “Toda pessoa tem o direito de obter a proteção efetiva dos juízes e tribunais para exercer seus direitos e seus interesses legítimos, sem que em nenhum caso esta proteção possa lhe ser recusada” (art. 24) França: “O presidente da República é garante da independência da autoridade judiciária. Ele é assistido pelo Conselho superior da magistratura. Uma lei orgãnica traz estatuto dos magistrados. Os magistrados de carreira são inamovíveis.” (art. 64) Grécia: “A justiça é composta por tribunais constituídos de magistrados de carreira que possuem independência funcional e pessoal.” (art. 87-1) “No exercício de suas funções, os magistrados são submetidos somente à Constituição e às leis; eles não são, em nenhum caso, obrigados a se submeter a disposições contrárias à Constituição.” (art. 87-2) Irlanda: “Os juízes são independentes no exercício de suas funções judiciárias e submetidos somente à presente Constituição e à lei.” (art. 35-2) Itália: “A justiça é exercida em nome do povo. Os juízes se submetem apenas à lei.” (art. 101) Portugal: “Os juízes são inamovíveis. Eles não poderão ser multados, suspensos, postos em disponibilidade ou exonerados de suas funções fora dos casos previstos pela lei.” (art. 218-1) “Os juízes não podem ser tidos por responsáveis de suas decisões, salvo exceções consignadas na lei.” (art. 218-2) Assim, tem inteira razão Jean-Claude Javillier, quando diz que “não há nenhuma sociedade democrática sem uma independência da magistratura: ela é a garantia de uma efetividade das normas protetoras dos direitos essenciais do homem” . Neste mesmo sentido, conclui Fábio Konder Comparato: “A independência funcional da magistratura, assim entendida, é uma garantia institucional do regime democrático. O conceito institucional foi elaborado pela doutrina publicista alemã à época da República de Weimar, para designar as fontes de organização dos Poderes Público, cuja função é assegurar o respeito aos direitos subjetivos fundamentais, declarados na Constituição.” Há, no entanto, uma outra dimensão da independência do juiz que o atinge na condição de pessoa humana. O juiz está jungido à ordem jurídica e suas posições, sempre fundamentadas, devem respeitar os limites do direito, que, diga-se de passagem, diante das grandes possibilidades argumentativas que lhe são conferidas pela noção de princípios jurídicos e pelas técnicas de interpretação, não são tão restritos como muitas vezes equivocadamente se imagina. Mas, nesta segunda dimensão o que se tem em vista não é isto e sim o fato de que a decisão do juiz pode ser avaliada quanto ao aspecto de saber se ela extrapola ou não os limites do instrumento que tem em mãos, que é o direito, até porque em nome da própria independência o juiz pode acabar agindo de modo a negligenciar os direitos fundamentais do cidadão, mas não se poderá ir além, determinando ao juiz que pense de um modo determinado. O mais relevante passo que se deu na evolução do processo a partir da era medieval foi a inserção do convencimento racional do juiz como base do funcionamento da própria Justiça. Isto resta bem claro pela evolução da prova judiciária. Inicialmente, no tempo das ordálias, a sorte do próprio acusado decidia o processo, porque não havia prova propriamente dita, mas um sorteio, aplicando-se o direito a partir do resultado aleatório do sistema. Em seguida, a prova foi quantificada, e o juiz precisava apenas saber contar. Duas testemunhas do autor, uma do réu: venceu o autor a causa. Este procedimento vigorou entre nós, com a vigência das Ordenações Reinóis no início do Brasil Colônia. O patamar a que chegamos e que se estabelece até os dias atuais é o do livre convencimento racional do juiz. Não importa o número de testemunhas, tampouco a qualidade formal da prova, mantendo-se o juiz desprendido para julgar consoante os movimentos de sua consciência, apoiada no direito vigente, desde que apresente seus fundamentos racionais. Suas razões de decidir. Os motivos pelos quais, do vasto campo de possibilidades que se espraia no universo do ordenamento, porque aplicou esta, mas não aquela, porque se afetou por este princípio, superando aquele outro. Eis o limite da atuação do juiz: a necessidade de fundamentação de suas decisões, comando, aliás, com sede constitucional – artigo 93, IX. Para corrigir equívocos jurídicos do juiz, isto é, para avaliar os limites do exercício da função jurisdicionial, foi que se estabeleceram, no próprio ordenamento jurídico, garantias aos cidadãos, que são: a necessidade de que as decisões judiciais sejam fundamentadas, o devido processo legal (possibilidade de ampla defesa e contraditório), em certas situações, o duplo grau de jurisdição, e, ainda, mecanismos de correção das de possíveis arbitrariedades do juiz (mandado de segurança, por exemplo). As decisões proferidas pelo juiz estão sujeitas ao crivo da própria sociedade, a quem a ordem jurídica confere mecanismos institucionais para correção. Para isto são sempre públicas e fundamentadas. Assim, desde que atendido o princípio constitucional da fundamentação de suas decisões, a partir de argumentos jurídicos, nenhum juiz pode ser punido pelo fato de que suas decisões foram consideradas equivocadas, pois a divergência de entendimentos, aliás, é natural dentro de um regime democrático, que tem como pressuposto de organização o direito, ainda mais sabendo-se, como se sabe, que o direito, sendo um dado cultural, construído por valores e palavras, pode dar margem a interpretações divergentes. Além disso, tendo o direito um conteúdo ético e um necessário sentimento de justiça, o maior equívoco que pode cometer um juiz é deixar-se levar pelos formalismos da lei, não extraindo, assim, toda instrumentalidade conferida pelo direito para que esses valores, essenciais à sociedade, sejam efetivados. Esta compreensão mais ampla do direito, aliás, é importantíssima, como elemento de preservação dos direitos humanos (em todas as suas dimensões), do regime democrático e das garantias conferidas pela cidadania, pois a própria lei, em certas circunstâncias históricas determinadas, pode acabar desprezando tais valores, instituindo, como já se viu na história, tribunais de exceção, agressão ao princípio da irretroatividade da lei penal, perseguição política, julgamentos sumários por questão ideológica (apenas para citar alguns exemplos), e a resistência dos juízes, com apoio em sua independência, é a força fundamental com a qual a sociedade pode contar. Sob um ponto de vista da organização interna dos tribunais, a independência do juiz transforma-se em uma garantia pessoal para que o juiz seja, efetivamente, livre de qualquer ingerência da própria estrutura judiciária. Cuida-se do respeito à dignidade do que julga, bem capitada pela lição de Calamandrei: “Não conheço qualquer ofício em que, mais do que no de juiz, se exija tão grande noção de vil dignidade, esse sentimento que manda procurar na própria consciência, mais do que nas ordens alheias, a justificação do modo de proceder, assumindo as respectivas responsabilidades.” Como diz Flávio Dino, “A independência dos Juízes não é submetida somente a ameaças vindas de fora da instituição judiciária. Pressões internas, oriundas dos órgãos de cúpula do Poder, também podem comprometer a imparcialidade que se almeja como fator de legitimação das decisões judiciais. Esta possibilidade de subordinação pode concretizar-se por intermédio de interferências diretas no ato de julgar – invadindo-se a esfera competencial do Juiz de primeira instância – ou por métodos indiretos – como o mau uso do poder administrativo para impelir ao alinhamento eventuais dissidentes dos padrões estabelecidos pelos órgãos de cúpula. Atualmente no Brasil, a primeira hipótese é de difícil realização. Quanto à segunda, o mesmo não pode ser dito. Além da ‘natural’ tendência de todas as instituições a moldar consciências e comportamentos, as chances de ocorrerem tentativas de ‘enquadramento’ mediante desvio de poder administrativo são significativas, à vista da monopolização das competências desta natureza pelos Tribunais.” No mesmo sentido, Fábio Konder Comparato: “...dizem-se independentes os magistrados, quando não há subordinação hierárquica entre eles, não obstante a multiciplidade de instâncias e graus de jurisdição. Com efeito, ao contrário da forma como é estruturada a administração pública, os magistrados não dão nem recebem ordens, uns dos outros.” Essa independência do juiz, para proferir suas decisões, sem qualquer tipo de pressão interna, acaba, por via reflexa, representando a efetivação da noção da independência institucional da magistratura como garante do Estado de Direito, ainda mais quando se tenha à vista o Estado Social e os seus conseqüentes direitos humanos de segunda geração (os direitos sociais). Quando a estrutura judiciária “determina” ao juiz que profira decisão em um certo sentido tem-se a completa desconsideração de toda a evolução da humanidade no sentido da construção de um Estado de Direito, consubstanciando-se, portanto, em ato que sequer precisa ser declarado nulo para que não tenha eficácia, pois despido, naturalmente, de qualquer autoridade. Todo atentado à independência do juiz é nulo de pleno direito, não precisando ser, judicialmente, declarado como tal, para que o juiz possa rechaçá-lo. Se imaginássemos que, diante de um ato externo ou interno de agressão à sua independência, o juiz tivesse que se socorrer de uma tutela jurisdicional, para preservar sua garantia institucional, seria o mesmo que dizer que a independência, em concreto, não existe, pois admitiríamos a hipótese de que ela poderia ser afastada “ad nutum” por qualquer tipo de ato arbitrário ou, ainda, advindo de coação política ou econômica. Assim, incontestável que o juiz possui a autotutela de sua garantia da independência e, pelos motivos já expostos, tem o dever de exercê-la. Isto significa que a garantia somente pode ser questionada, em processo regular, que se desenvolva com respeito ao amplo contraditório, quando se alegue que o juiz, em nome da independência, exorbita os limites do ordenamento jurídico, para obtenção de algum benefício pessoal. De todo modo, mesmo nesta situação o resultado nunca poderá ser a “determinação” de que o juiz profira uma decisão em certo sentido. Ou seja, em termos recursais, o efeito da decisão de segundo grau é substituir a decisão de primeiro grau. Em termos disciplinares, o efeito é a aplicação de sanções ao juiz. Em nenhuma das duas hipóteses se tem como resultado, portanto, a imposição ao juiz de um certo modo de dizer o direito. Em suma, nenhum cidadão ou organização privada, nenhum governante ou instituição pública, nenhum poder constituído ou seus membros, pode impor ao juiz um modo de dizer o direito, pois isto contraria a própria essência na qual se funda o Estado democrático de direito, como visto acima, e também porque interfere naquilo que é próprio de todo ser humano: a sua consciência. Nem por meio do sistema recursal próprio, nem mediante a utilização de meios impróprios de modificação do julgado, como a ação rescisória, o mandado de segurança, possível é que alguém, ou alguma instituição, determine ao juiz qual deva ser seu julgamento. Isto se torna ainda mais impossível, quando da utilização da correição parcial, expediente decidido monocraticamente pelo juiz corregedor regional, depois de provocação da parte contra ato não reformável por recurso próprio, que constitua error in procedendo e traga manifesto prejuízo aos litigantes, porque decorrente da violação do devido processo legal por parte do magistrado de primeira instância. Nem por meio de decisão em correição parcial, repita-se, é possível conceber que um juiz diga ao outro qual deve ser sua decisão, ainda mais porque este tipo de procedimento, de caráter administrativo, se dá sem contraditório e sem previsão de qualquer espécie de recurso para o magistrado. O juiz, insista-se, não é independente para fazer o que bem entende. Ele responde por seus atos e omissões, tendo, portanto, sempre graves responsabilidades. Mas, sua atuação não é mecânica. Suas decisões expressam sentimentos e valores, respeitando sempre os limites do direito e o dever de fundamentação. Sua conduta é determinada pelo direito. Seu soberano é a sociedade. Seus valores supremos: o humanismo, a justiça e a ética. A defesa de sua independência, pelo juiz, é, portanto, fator essencial para a preservação do Estado democrático de direito, que está sempre ameaçado por interesses particulares de toda ordem, já que, como é sabido, as instituições podem ser perfeitas, já os homens... Diante de uma tal ameaça o juiz, por conseguinte, tem o dever de se rebelar, de reagir, de não ceder, de reafirmar, enfim, a sua independência, pois é isto que a humanidade, que debruçou sobre o direito toda a regulação das relações de poder, espera dele. Um juiz que, por conveniência, se curva ao entendimento de outros juízes, proferindo decisões contrárias à sua convicção jurídica; que, por comodidade, aplica uma lei que fere a Constituição ou algum preceito dos direitos humanos ou direitos fundamentais; que, por receio de qualquer natureza ou medo, acaba cumprindo uma “ordem” ilegal; ou, que, meramente, se abstém de “denunciar” as ameaças que sofra com relação à sua independência; que não exerce com liberdade e responsabilidade as suas atribuições, deixa de ser digno da função que exerce, perde, enfim, na essência, a designação de um autêntico magistrado e quem perde com isto é toda sociedade. Em certa medida, fora esta, ademais, uma das principais preocupações dos juízes trabalhistas, reunidos no VIII Congresso Nacional dos Magistrados do Trabalho, no qual firmou-se posição no sentido de que: "Os juízes devem lutar pela defesa de suas prerrogativas constitucionais e pelo exercício independente e imparcial da jurisdição, que são garantias da plena cidadania." Em outras palavras, um juiz somente pode ser repreendido quando descumpre o dever de lutar por sua independência ou porque fere, ele próprio, a regra da independência (artigos 312 e ss. do Código Penal). Lembre-se, a propósito, que a própria ONU, em 1994, aprovou a Recomendação número 41. Como explica Dalmo de Abreu Dallari, “Por esta resolução, a Comissão de Direitos Humanos decidiu recomendar a criação do cargo de relator especial sobre a independência do Poder Judiciário. Isso quer dizer que se considerava tão importante que houvesse o Judiciário independente, reconhecia-se que isso era indispensável para a garantia dos direitos, e por isso foi designado um Relator Especial permanente.” Esclarece o mesmo autor: “A Comissão de Direitos Humanos da ONU, que funciona em Genebra, fez esta recomendação ao ECOSOC — o Conselho Econômico e Social — e o Conselho aprovou a proposta. E desde então existe este relator. Anualmente ele apresenta o seu relatório, mas permanentemente faz o acompanhamento da situação da independência da magistratura no mundo. E é interessante verificar — eu sintetizo aqui em três itens — os objetivos que foram atribuídos a este Relator Especial: 1) investigar denuncias sobre restrições à indepen¬dência da magistratura e informar o Conselho Econômico e Social sobre suas conclusões; 2) Identificar e registrar atentados à independência dos magis¬trados, advogados e pessoal auxiliar da Justiça, identificar e registrar progres¬sos realizados na proteção e fomento dessa independência; 3) fazer recomen¬dações para aperfeiçoar a proteção do Judiciário e da garantia dos direitos pelo Judiciário. Isso está implantado desde 1994 e, como uma seqüência procurando reforçar esse trabalho e dar publicidade a ele, a Comissão Internacional de Juristas, uma ONG com sede em Genebra que assessora a ONU para Direitos Humanos, no ano de 1971 , criou um Centro para a Independência de Juizes e Advogados. Aliás, nesse caso juízes não é a expressão mais adequada. Melhor seria magistrados, porque tanto na Itália quanto na França, a magistratura incluiu também o Ministério Público. Então é o Centro para a Independência da Magistratura e dos Advogados. Um dado importante é que anualmente a Comissão Internacional de Juristas publica uni relatório sobre a situação da independência de magistrados e advogados 110 mundo. O último publicado foi sobre o ano de 1999 e nele constam vários casos de ofensas, agressões, restrições a magistrados e advogados no Brasil.” Conclusão. Assim, somados todos esses fatores, torna-se inevitável que um juiz, que tenha a consciência do importante papel que cumpre na sociedade, que não se deixe levar por nenhum tipo de influência, externa ou interna, para proferir, com independência, as suas decisões. A defesa de sua independência constitui, como se pôde inferir, imprescindível dever do magistrado. Afinal, “o Juiz, no seu juízo, não tem amigos. Nem inimigos. Nem superiores, nem subordinados. Tem, isso sim, de buscar o justo, aplicando a norma. O que se almeja, na decisão judicial, é a satisfação de interesses individuais lesados. Pelo Estado ou por outro indivíduo”. Jorge Luis Souto Maior . Juiz do Trabalho, Titular da 3ª Vara de Jundiaí, livre-docente e professor de direito do trabalho da Faculdade de Direito da USP. Membro da Associação Juízes para a Democracia. Marcos Neves Fava . Juiz do Trabalho Substituto na 2ª Região, mestre em direito do trabalho pela USP, diretor de Direitos e Prerrogativas da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA – para o biênio 2005-07.

A Duras Penas

Marcelo SemerNO ANO DE 1990, após o sequestro de um empresário de renome, o Congresso aprovou, em regime de urgência, a Lei dos Crimes Hediondos. Era preciso "debelar a escalada da criminalidade", dizia-se, e impor penas e regimes mais severos para evitar a prática de condutas graves. Paradoxalmente, a partir da década de 90, a prática de extorsões mediante seqüestro foi sensivelmente maior do que antes, fato que se repetiu, aliás, com outros tantos delitos mais ou menos hediondos. Ainda assim, para atender o suposto reclamo da opinião pública, nesse período o Congresso viria a incrementar o rol das condutas hediondas, quase sempre acompanhando momentos em que a criminalidade teve maior exposição na mídia. Desatentos a esses dados, e na esteira dos acontecimentos que abalaram São Paulo, os senadores se jactaram de anunciar a aprovação de um pacote repressivo após uma única reunião. E mesmo magistrados vieram a público para repetir o bordão de que tempos duros exigem leis duras ("A verdade real", Folha, 31/05). A violência das últimas semanas, entretanto, não pode ser considerada filha direta da impunidade, mas, ao contrário, fruto da própria punição. A experiência tem reiteradamente mostrado que a expressão costuma ser invertida: penas mais rígidas é que tornam os tempos mais duros. O rigorismo penal não trouxe nenhuma melhora na segurança pública, mas como efeito colateral superlotou penitenciárias. Isso se deve em grande monta às seguidas legislações de emergência. Mas não só. Também tem contribuído uma certa jurisprudência do pânico. Decisões judiciais se fizeram mais severas, ao contrário do que o senso comum pode supor. O regime fechado para o cumprimento de penas se generalizou, mesmo quando a lei permite o semi-aberto; mantêm-se casos de detenções em crimes de bagatela; prisões processuais tornaram-se regra. Ainda que se tenha construído na última década mais penitenciárias do que em toda a história do Estado, elas continuam abrigando um contingente prisional bem acima de sua capacidade de ocupação, em um déficit que espelha a corrida do cachorro em torno de seu próprio rabo. São Paulo tem hoje, sozinho, a população carcerária que o país tinha há uma década, cerca de 150 mil presos. De outro lado, nunca se sentiu tanto a ausência do Estado em seu próprio reduto. Não somos capazes de agir para trazer os presos ao convívio social nem para mantê-los sob a necessária disciplina. Não se cumprem normas mínimas de respeito à integridade dos detentos e não há instrumentos de ressocialização, faltando vagas de trabalho ou estímulo ao estudo. Amontoamos os presos à espera do nada. Sua situação está muito distante das tais "benesses intoleráveis", mencionadas pelos magistrados no mesmo artigo. Todos sabemos o efeito deletério dessa ausência estatal. Como diz a máxima política, não existe vácuo de poder. Nos morros do Rio de Janeiro, abandonados pelo Estado, traficantes ocuparam as instâncias de poder, ora prestando serviços à população carente, ora intimidando moradores, tornando os locais quase inexpugnáveis à presença da polícia. O mesmo tem ocorrido com as prisões. Facções criminosas dividem territórios, filiam presos como organizações partidárias e vendem favores e proteção como verdadeiras máfias. Como temos visto, encher as prisões não é sinal de êxito na segurança pública, ou de menor preocupação para a sociedade. Por isso, o discurso fácil da pena mais severa pode desembocar numa situação mais grave. Tempos duros exigem serenidade, principalmente das autoridades. O momento de perplexidade já propicia por si só a efervescência de soluções mágicas e ineficazes, ainda mais na antevéspera do processo eleitoral. Há muito o que fazer na segurança pública. Retomar o controle dos presídios e aplicar efetivamente a lei de execução penal; fortalecer a carreira policial, fulminada pela depreciação generalizada do funcionalismo; aumentar a capacidade de integração e a inteligência dos sistemas de segurança, unificando as polícias, que até hoje competem entre si. Mas não é necessário recrudescer a legislação penal. Nem é certo que seja esse o desejo da maioria dos julgadores, que ao contrário do que se apregoou, não se constrangem na aplicação de direitos fundamentais. Seguro é que um grau exagerado de prisionalização fará aumentar ainda mais o exército de desesperançados à disposição das organizações criminosas. Se o fizermos, aí sim estaremos apagando fogo com querosene.MARCELO SEMER , 40, é juiz de direito em São Paulo e presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia [artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 18/06/06]

A AJD e o Combate à Corrupção nas Eleições

Marlon Jacinto ReisRepensar e propor alternativas para o aprimoramento da democracia no interior do Poder Judiciário e na sua própria vida interna são ações presentes no cotidiano da AJD. Nesse aspecto, o próprio nome da entidade já anuncia seu compromisso para com a igualdade de todos no acesso e no exercício do poder político, seja em que esfera o mesmo se demonstre presente. Uma das experiências de maior repercussão desse envolvimento inato da AJD para com o aprofundamento da experiência democrática é sem dúvida seu engajamento no Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE). Embora de fato a rede de entidades que envolvem a CNBB, OAB, CONTAG, UNAFISCO, IBASE, ANPR, CONAMP dentre tantas outras, só tenha recebido essa denominação em julho de 2002, o MCCE foi surgindo entre 1998 e 1999, quando se elaborou o projeto que viria a se converter na primeira (e única até o momento) lei de iniciativa popular da História do país: a Lei nº 9.840, de 28 de setembro de 1999. Exatamente 1.039.175 brasileiros subscreveram o anteprojeto que, após cerca de 45 dias de tramitação no Congresso Nacional, originou dispositivos que desde então “roubaram a cena” no mundo do Direito Eleitoral e do combate à corrupção da vontade do eleitorado. Entre 2000 e 2004, 154 pessoas já haviam perdido mandatos por conta da aplicação da Lei, cujo mais famoso dispositivo é o art. 41-A da Lei das Eleições. Este artigo torna passível de afastamento do pleito, por simples decisão administrativa, o candidato descoberto na prática da captação ilícita de sufrágio. Os primeiros levantamentos posteriores à Eleição de 2004 indicam que esse número crescerá consideravelmente. Só entre os Estados de São Paulo e Pará 92 diplomas ou registros eleitorais foram cassados nos últimos oito meses. No Rio de Janeiro, um dos poucos lugares onde até então não se tinha notícia de aplicação positiva da lei, já foram diversos casos desde outubro de 2004, a maior parte dos quais relacionados ao uso eleitoral de programas sociais. A Associação Juízes para a Democracia se orgulha de haver participado da equipe de redação da minuta do projeto de lei. Foi às ruas na campanha pela coleta de assinaturas e segue firme na aliança com as entidades comprometidas com o desenvolvimento das nossas instituições democráticas, pelo que participa ativamente do Comitê Nacional do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral. Graças à grande aplicabilidade da lei, que veio a suprir omissões normativas que inviabilizavam a atividade fiscalizadora da Justiça Eleitoral, novos desafios se vêm apresentando. A meta atual do MCCE é manter a lei a salvo dos seus poderosos adversários, que vêm buscando meios interpretativos e até a modificações legais, sempre almejando sufocar essa conquista da cidadania brasileira. Mais uma vez a AJD segue em seu compromisso com esse movimento, e se soma àqueles que unem seus esforços para manter incólume a Lei 9840 e atuam para que conquistas como essa sejam aprofundadas. Marlon Jacinto Reis – Juiz Estadual no Maranhão e membro da AJD

As Crises que não se Reformam

Marcelo SemerSe a reforma do Judiciário pretende combater a morosidade processual ou a impenetrabilidade na administração da Justiça, pode-se supor que seus resultados estarão bem aquém das expectativas. A esperança de que uma perspectiva democrática e popular arejasse a hierarquizada estrutura do Judiciário e permitisse um maior controle social sobre o exercício do Poder frustrou-se. A proposta aprovada muda pouco e os congressistas desperdiçaram a oportunidade para uma reforma radical na Justiça. Entre mortos e feridos, sobraram mais ações retóricas do que efetivas para garantir a celeridade dos julgamentos, além de um significativo aumento da verticalização do poder.A idéia, louvável, de abrir o Judiciário a um controle social, foi mal aproveitada. Ao final, foi criado um órgão integrado à estrutura do próprio Judiciário, com nítido viés disciplinar. O Conselho Nacional de Justiça será composto em sua maioria de indicados dos Tribunais Superiores e coadjuvantes históricos da Justiça. Se fosse moral o problema do Judiciário, até se entenderia a preocupação do legislador em pensar em um novo órgão correcional –para responder ao invocado reclamo da opinião pública, ou a opinião que se faz pública, de que o principal objetivo é sempre combater a impunidade. O maior problema do Judiciário, contudo, não é ético, é sistêmico, de estrutura –e por isso um órgão a mais com caráter disciplinar dificilmente irá solucioná-lo.Recentemente a secretaria de reforma do Judiciário, afeta ao Ministério da Justiça, concluiu que os recursos injetados nos Judiciários do país são mal empregados. Há nitidamente uma crise de gestão. Mas, sendo este o problema, não basta um órgão disciplinar –a má administração nem sempre se traduz em atos ilegais. Em passado não remoto, um Tribunal do Estado mais desenvolvido do país empregou verba de modernização do serviço na aquisição de veículos oficiais, numa equivocada escolha das prioridades públicas. Para resolver problemas como esse, melhor seria se o novo conselho tivesse um perfil de planejamento, servindo de instrumento para que a sociedade, por intermédio de seus representantes, pudesse participar destas escolhas da política judiciária. No começo dos trabalhos da Reforma, ainda na Câmara dos Deputados, a Associação Juízes para a Democracia apresentou um projeto neste sentido: a criação de Conselhos de Planejamento e Ouvidoria, em níveis estaduais e federal, junto a todos os tribunais. Isto faria com que esses órgãos, compostos por membros do Judiciário e pessoas da sociedade civil, pudessem participar, por exemplo, da elaboração orçamentária, ou ainda que o próprio órgão tivesse por si só iniciativa legislativa. Isto quebraria o monopólio dos tribunais na proposição de leis e tornaria pública a discussão política acerca dos gastos judiciários, se dirigidos a prédios suntuosos ou para a já atrasada informatização. Antes e não depois que as decisões fossem tomadas. Da proposta original, infelizmente, restou acolhida apenas a idéia de Ouvidorias nos Estados.Nas mudanças processuais propriamente ditas, a reforma foi tímida. Não avançou para a reivindicação histórica de uma Corte Constitucional, que pudesse resolver o problema da enormidade de recursos no Supremo Tribunal, liberando-o para o julgamento rápido de ações diretas e feitos de intensa repercussão. Nem estabeleceu regras mais nítidas para ampliar as ações coletivas. Optou-se por um caminho perigoso e incerto: diminuir o número de processos com as súmulas de efeito vinculante, que violam diretamente a independência do juiz. A idéia da decisão vinculante, de seguimento obrigatório, e de orientação que só poderá ser alterada pela própria Corte Suprema, engessa firmemente a criação jurisprudencial. Esta é, em regra, proveniente das decisões das instâncias inferiores, quando enfrentam e não apenas reproduzem paradigmas tradicionais. Assim se deu, por exemplo, com o reconhecimento dos direitos da concubina, até a sua proteção legal, e tem-se dado atualmente com o incremento de tutela em prol de consumidores e cidadãos, para com planos de saúde, ou na exigência judicial de prestações públicas não adimplidas pelo Estado. Com o Conselho Nacional de Justiça, composto por indicações dos tribunais superiores, e as súmulas vinculantes, aumenta-se a verticalização do Judiciário, com maior concentração de poder administrativo e jurisdicional nas cúpulas. O fato de as decisões judiciais ficarem mais previsíveis com as súmulas, como sempre pretendeu o sistema financeiro internacional, de modo a padronizar caminhos para investidores estrangeiros, não significa que ficarão mais democráticas ou mais populares. Ao revés, tendem a ficar ainda mais elitistas.Nem tudo é equívoco na reforma, dentro de um conjunto tão sortido de disposições legais. Assim, embora quase acaciano, é importante a explicitação de que as sessões dos tribunais devam ser abertas (para evitar que sejam secretas), que as decisões devem ser sempre fundamentadas, mesmo as administrativas, e que todos os processos nos tribunais sejam imediatamente distribuídos a seus juízes. É pertinente a extinção dos últimos tribunais de alçadas do país, otimizando recursos ao unificar cortes, e sem dúvida positiva a incorporação de tratados internacionais sobre direitos humanos como matéria constitucional, mesmo que a eles se tenha imposto a aprovação por um quórum qualificado. É também elogiável a autonomia das defensorias públicas, predicado necessário, conquanto não suficiente, para compelir o Estado cercado por gerentes neo-liberais, a despender recursos para as atividades sociais.Mas a frustração com o conjunto final não é menos intensa por causa destes acertos. De uma reforma produzida na gestão de um governo composto por pessoas historicamente comprometidas com a causa popular, esperava-se, no mínimo, que a redemocratização que atingiu o país desde a década de 80 finalmente alcançasse o Judiciário. Continuamos, no entanto, sob estruturas arcaicas, trombando quase sempre com a síndrome dos desiguais, reafirmando mais as nossas diferenças do que a igualdade na cidadania. Mantém-se a distinção entre juízes de instância inferior e os membros dos tribunais: só os últimos participam da escolha dos dirigentes do poder, como se fosse uma eleição censitária, estimulando o corporativismo de cúpula. A Justiça Militar subsiste, como uma Justiça criminal entre pares, contribuindo para a perpetuação de altos índices de violência policial nas cidades. O fôro privilegiado não só sobrevive como ainda será incrementado para nele incluir os ex-ocupantes de cargos públicos (afinal todos que estão agora no poder um dia serão ex) e abranger ações cíveis de improbidade. Isto resulta em concentrar na cabeça do poder o julgamento dos ilícitos das autoridades, o que nunca produziu resultados satisfatórios no país, principalmente pela extensa vinculação entre crime organizado e poder político. E as cúpulas do Judiciário, fortemente revigoradas na reforma, continuam sendo escolha exclusiva do chefe do Executivo.Em suma, nem resolvemos a crise de legitimidade, nem atacamos a de eficiência.Marcelo Semer, presidente do Conselho Executivo da AJD

Uso Conservador de um Instrumento Democrático

Marcelo Semer A idéia de controle social sobre os atos político-administrativos do Judiciário tem sentido em uma concepção que visa implementar a democratização e ser propulsor da independência judicial. A primeira gestão do Conselho Nacional de Justiça não fez nem uma coisa nem outra. Inverteu-se, é certo, o centro de poder do Judiciário, por obra da reforma constitucional. Esperava-se mais, no entanto, desse novo desenho institucional, sobretudo pelo início alvissareiro do órgão com a corajosa resolução antinepotismo. Mas o desempenho do Conselho a partir desta resolução mostrou-se aquém das expectativas. Tíbio para com a democratização interna, tímido no enfrentamento das oligarquias do poder, e em namoro explícito com o corporativismo, além de uma visão marcadamente conservadora de aspectos essenciais como independência, ética e cidadania. Confrontado com um pedido de providências para assegurar a garantia do princípio do Juiz Natural, apresentado pela Associação Juízes para a Democracia, o CNJ negou-lhe procedência. Evitou decidir, por exemplo, a questão da concentração de liminares nas mãos de vice-presidentes, competência retirada dos relatores naturais dos processos originários de tribunais. Da mesma forma, ignorou a importância do predicado da inamovibilidade, prestigiando leis estaduais que permitem, ainda hoje, remoções injustificadas de juízes vitalícios, a critério das presidências dos tribunais, por motivos mais ou menos escusos. Quanto à democratização interna, o avanço com o CNJ foi pífio. As eleições para a composição dos órgãos especiais foram obstadas pelo Conselho, quando determinadas pelo TJ de São Paulo, depois que vários tribunais já as haviam realizado. Deu-se duvidosa interpretação para garantir direito adquirido em órgão de representação, impedindo maior renovação de seus membros. E ainda, sem lastro em nenhum dispositivo constitucional, esvaziou-se por completo a competência dos tribunais plenos, privilegiando mais uma vez a concentração de poder e, com isso, atrasando a modernização da Justiça. No aspecto disciplinar, a gestão passou praticamente em branco. Não que o órgão devesse ter se transformado em uma super-corregedoria, o que ninguém esperava. Mas é certo que manteve o mesmo olhar caolho sobre a disciplina interna, dirigido às bases e não às cúpulas, onde o controle sempre foi mais frágil. O CNJ não se preocupou em corrigir antigas distorções, como o fato de que as corregedorias dos tribunais alcançam apenas juízes de primeira instância e não desembargadores. Compactuou com a reprodução da regra do foro privilegiado interna corporis: quanto mais alto o status do servidor, mais difícil a fiscalização, o controle e a punição. Ao invés de se debruçar sobre estes assuntos, que envolvem questões de fundo quanto a um sistema permissivo de irregularidades e a anomalia de uma rede de proteção das autoridades, o CNJ vem se dedicando a disciplinar atos que podem contribuir ainda mais para comprimir a independência e a cidadania do juiz. Recentemente, o órgão regulamentou norma de duvidosa constitucionalidade da Lei Orgânica da Magistratura sobre proibição da participação de juízes em entidades não governamentais. Desprezando a constitucional liberdade de associação, vem exigindo dos magistrados que declarem não fazer parte da direção da maçonaria, de sociedade espírita, benemérita, de APAEs e etc. Equivoca-se o CNJ nessa draconiana regulamentação: é o que magistrado faz escondido que pode por em risco a imparcialidade, não o exercício público de sua cidadania. No final desta gestão, o CNJ ainda iniciou a preparação de um Código de Ética para o juiz, insinuando a possibilidade de criação de punições administrativas ao arrepio da lei. Mas os vícios estão longe de serem meramente formais. O projeto original contém mandamentos de cunho genérico e de âmbito periférico em relação aos verdadeiros problemas do Judiciário, chegando inclusive a tangenciar questões ligadas a comportamentos morais. O projeto prevê que seja vedado a qualquer juiz interferir na atuação jurisdicional de outro. Mas ao desprestigiar o princípio do Juiz Natural, o próprio órgão abriu mão de estabelecer os mecanismos pelos quais a independência dos magistrados deva ser assegurada, inclusive, e principalmente, em relação às cúpulas, onde reside justamente quem tem poderes para interferir na atuação jurisdicional de outro. A proposta de Código estabelece que o juiz evite “comportamentos que possam ser entendidos como de busca injustificada e desmesurada de reconhecimento social”, balaio tão genérico que pode incluir gatos de qualquer natureza, até aqueles que militam em movimentos sociais pela afirmação substancial dos direitos humanos. Baseado, em grande parte, em um projeto de código ibero-americano, a proposta de nosso conselho curiosamente suprime aquela que pode ser a mais importante das regras do projeto que importou: “As instituições que garantem a independência judicial não estão dirigidas a situar o juiz numa posição de privilégio”. Ou seja, a interlocução com a sociedade é uma infração, a cidadania do juiz é um perigo, mas o abuso nos privilégios, um direito adquirido. É a justiça de sempre, com a ética própria de um inspetor de colégio interno, preocupado com os deslizes morais dos alunos, mas não com as arbitrariedades do diretor. A última do Conselho, noticiada por esta revista eletrônica , é o entendimento de que símbolos religiosos em espaços públicos não comprometem o sentido laico do Estado. Embora ainda não tenha sido encerrada a votação dos pedidos de providência, registra-se que a maioria dos conselheiros já se manifestou contrária à determinação de retirada de crucifixos de prédios do Judiciário. Tais símbolos não deveriam guarnecer qualquer espaço público, quanto mais os fóruns, casas da Justiça que são. A separação Igreja-Estado que vige entre nós há mais de duzentos anos, parece ainda não ter chegado aos tribunais. A Justiça, como os demais serviços públicos, deve ser universal –não pode guiar-se por idéias, pensamentos ou crenças que sirvam à exclusão de quem com eles não se identifica. A liberdade de crença é um direito fundamental, mas a religião, aspecto da vida privada das pessoas, não pode ser professada por entes públicos, nem identificada nos edifícios do Estado. O uso dos símbolos em prédios da Justiça, especialmente os cristãos, é tradicional entre nós. Mas se era para manter e revigorar tradições não republicanas, como já acontece com o foro privilegiado e o corporativismo da magistratura, o CNJ seria desnecessário. A Justiça é um serviço público e deve responder ao princípio da transparência, permitindo ao cidadão o controle de seu funcionamento. Por isso, a idéia em si de controle externo não pode ser descartada. Mas sem o apego a princípios básicos, como o prestígio à independência do juiz e à moralidade administrativa sem espírito de corpo, bem ainda o respeito à democracia republicana, o órgão dificilmente se desincumbirá de seus objetivos. Espera-se da segunda gestão que logo será empossada uma visão mais arejada dos princípios e dos objetivos do Judiciário. Marcelo Semer é Juiz de Direito, membro da AJD

Democracia e Modernização nos Tribunais

Marcelo Semer Depois do fim do nepotismo e da limitação do teto salarial, outra questão se encontra em pauta no Conselho Nacional de Justiça e no Supremo Tribunal Federal na agenda de moralização e modernização do Poder Judiciário: a eleição para os órgãos especiais dos tribunais. A Constituição autoriza aos Tribunais com mais de 25 membros que instituam órgãos especiais atribuindo a estes a competência administrativa e jurisdicional delegada do Tribunal Pleno. Servem tais órgãos para deliberar pelo Tribunal, quando a reunião dos membros da Corte não se reveste de praticidade –como é o caso de São Paulo, integrada por 360 desembargadores. Na esfera política, funcionam como um parlamento, co-responsáveis pela formulação de diretrizes administrativas. A Reforma do Judiciário buscou modernizar a composição dos órgãos, até então restrita aos desembargadores mais antigos. Estipulou a regra de que metade dos componentes deve ser eleita. Para além da democracia, o escopo de propiciar mudanças na administração das cortes, quase sempre refratárias a avanços tecnológicos ou respeito a padrões de eficiência. A regra da composição paritária entre antigos-eleitos estava na Constituição Paulista desde 1999. O TJ-SP recusou-se a aplicar a lei e foi ao STF para declarar sua inconstitucionalidade, pois a mudança tinha de estar expressa na Constituição Federal. Mesmo com a emenda da Reforma do Judiciário, os desembargadores mais antigos continuaram resistentes à eleição. O argumento é de que a mudança da Constituição não é suficiente, sendo necessário, então, aguardar-se o Estatuto da Magistratura (cuja proposta dormita há anos no STF), ainda que nada no texto constitucional indique a dependência desta lei. O Conselho Nacional de Justiça não se debruçou sobre o assunto no primeiro ano de sua existência. Enquanto isso, seis dos 15 tribunais brasileiros que têm órgãos especiais realizaram suas eleições, sem nenhum impedimento, estabelecendo regras em seu próprio regimento, como autoriza o art. 96, I, da Constituição Federal. O silêncio do CNJ sinalizou que o órgão de controle não só anuía com a auto-aplicabilidade da emenda constitucional, como concordava com a regulamentação nos regimentos internos. Por tudo isso, causou espanto na comunidade jurídica, a decisão monocrática do conselheiro Marcus Faver, do CNJ, suspendendo a portaria que criou grupo de estudos no Tribunal de Justiça de São Paulo, para preparar a eleição, uma das primeiras providências do desembargador Celso Limongi ao assumir a presidência. A decisão atendeu a pedido de desembargadores paulistas, que pretendem permanecer no órgão sem disputar eleição. A reação contrária da comunidade jurídica, aí incluídas entidades de magistrados, a expressiva maioria de desembargadores do Estado e parte significativa dos conselheiros, fez o CNJ reapreciar a matéria com uma inusitada urgência. A polêmica interna suscitou até a realização de uma sessão reservada (que em relação aos tribunais, a Constituição expressamente proíbe), em que se discutiu o assunto à exaustão, como revelado na sessão pública. O resultado foi que o relator, retrocedendo do entendimento anterior, sugeriu que um acordo entre os conselheiros viabilizaria edição de resolução pelo CNJ em 30 dias, regulamentando as eleições em todo o país. Enquanto isso, a liminar foi estendida, suspendendo todos os processos de eleição nos tribunais, não apenas em São Paulo. O princípio contido no art. 93, XI, da Constituição Federal, que determina a realização de eleição, é auto-aplicável. Como o próprio CNJ já decidiu em relação a outros princípios do mesmo dispositivo (regras do concurso de ingresso, fixação do teto, proibição de férias forenses, critérios de promoção), não há necessidade de aguardar o Estatuto da Magistratura. A questão que agora se coloca para evitar as eleições é uma espécie de “direito adquirido ao poder”, algo inconciliável com o conceito de democracia. Inamovibilidade é princípio constitucional que impede seja o juiz afastado sem punição de seu cargo jurisdicional, prerrogativa para evitar que seja ele manietado ou pressionado a julgar de uma forma ou outra. Não alcança, no entanto, funções de direção ou representação, como são aquelas desempenhadas nos órgãos especiais. Em relação a São Paulo, há outra particularidade interessante. Logo após a Emenda 45, os desembargadores do Órgão Especial decidiram se afastar de suas Câmaras originais, para julgar apenas as questões administrativas e as poucas jurisdicionais que são apresentadas semanalmente ao plenário. O Judiciário de São Paulo ficou com duas dezenas de seus melhores julgadores fora da distribuição ordinária no momento em que mais se fazia necessário –pois a reforma constitucional determinou a distribuição imediata de todos os processos represados, quase meio milhão nesta Corte. A decisão, que outorgou aos desembargadores a perpetuação do poder sem o mesmo ônus dos demais juízes, vem sendo hoje utilizada como fundamento contrário à eleição: os desembargadores mais antigos seriam inamovíveis no Órgão Especial, justamente porque não teriam mais assentos nas Câmaras para voltar. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, do qual faz parte o conselheiro Marcus Faver, se negou a fazer a eleição, e por este motivo a questão foi levada ao STF, em ação movida pela AMB e desembargadores cariocas. O ministro Joaquim Barbosa indeferiu a liminar, mas sugeriu rapidez no processamento para apreciação do pedido em plenário. Espera-se, agora, que o Conselho Nacional de Justiça e o Supremo Tribunal Federal prossigam na tarefa de modernizar o Judiciário brasileiro, afastando os interesses corporativos e fazendo cumprir as determinações da reforma do Judiciário. Resistências existirão, mas o resultado seguramente aproveitará à sociedade. Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo e presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia [publicado no Jornal "O Estado de S. Paulo", edição de 24/05/06]

O Pânico e sua Reação

Marcelo SemerNão há quem não tenha assistido, estarrecido, aos acontecimentos do final de semana do dia das mães no Estado de São Paulo. Cadeias entregues aos detentos, policiais entregues à própria sorte e a população entregue ao pânico. Nos dias seguintes, outro medo tem tomado conta da sociedade, de que a barbárie enfim tenha prevalecido, e que suspeitos estejam sendo executados numa ação de revide. É importante que a reação à afronta às instituições seja firme, mas não ilegal. Os fatos devem ser esclarecidos e responsáveis punidos na forma da lei, cujo respeito é indispensável para a preservação do Estado Democrático de Direito. O momento exige serenidade, inclusive para evitar que o sensacionalismo e a demagogia provoquem mudanças legislativas que piorem a situação. É preciso ter em conta que o recrudescimento da legislação penal instalado na década de 90 (em especial com a Lei dos Crimes Hediondos), aumentou exponencialmente a população carcerária, sem qualquer impacto na redução da criminalidade. O Estado de São Paulo tem hoje, sozinho, a população carcerária que o Brasil tinha há cerca de dez anos atrás, cento e cinquenta mil presos. Nunca se sentiu tanto a ausência do Estado em seu próprio reduto. Nem somos capazes de agir para trazer os reeducandos ao convívio social, nem para mantê-los sob disciplina. Não se cumprem normas de respeito à integridade dos detentos e não há instrumentos de ressocialização. Tampouco funcionam mecanismos de controle. Cinco anos depois da rebelião que tomou o controle de dezenas de instituições prisionais, ainda soa como promessa a proibição de celulares, presos aparecem portando armas, e a droga corre solta nas cadeias. No vácuo de poder, facções criminosas filiam presos como se fossem organizações partidárias, intimidam detentos e vendem proteção como verdadeiras máfias. É necessário retomar o controle dos presídios, fortalecer as polícias e aumentar a capacidade de integração dos sistemas de segurança. Mas não é necessário recrudescer a legislação, basta cumpri-la. Maior prisionalização só fará aumentar o exército de franco-atiradores à disposição das organizações criminosas. Marcelo Semer, é juiz de direito em São Paulo e presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia

A Ação do PCC e a Questão Social à Deriva

Jorge Luiz Souto Maior Há muito venho tentando compreender como um país de extremas desigualdades estrutura-se sem uma verdadeira tensão social. Desde a época em que a legislação social foi implementada no Brasil, procura-se dizer que no Brasil não há uma questão social, pois as classes sociais convivem harmonicamente. Muitos, ademais, usaram esta visão para dizer que foi um equívoco estabelecer direitos trabalhistas, pois isto implicaria uma forma de incentivar um conflito onde de fato ele não existia. Claro, tudo isto era uma visão distorcida da realidade, comprometida, ademais, com a produção do resultado de manter uma exploração capitalista sem o mínimo de responsabilidade social. Além disso, um movimento reivindicatório por parte dos trabalhadores havia. Mas, deve-se reconhecer, não era assim tão organizado a ponto de poder gerar, por si só, uma ameaça ao sistema político e econômico. Isto, por óbvio, não pode se constituir argumento para, por outro lado, negar a importância da legislação social, como sendo ela a causadora da falta de uma maior consciência de classe entre os trabalhadores. Equivocam-se, portanto, tanto os que disseram que a legislação social incentivou um conflito onde não existia, quanto aqueles que a acusam de evitar a evolução da consciência de classe no Brasil. O papel do direito social é suprimir a injustiça. Reconhecendo-se que uma dada situação fática gera injustiça não há como possa o direito social ficar alheio à situação. De todo modo, mesmo não desconsiderando a importância do movimento sindical havido nos idos de 80, no ABC paulista, sob o comando do atual Presidente da República, e a greve dos petroleiros em 94, o fato é que um movimento social organizado de caráter estrutural nunca se viu no Brasil. Mesmo a abolição, que foi precedida de revoltas, com a formação de quilombos, não se estruturou na forma de uma criação de uma sociedade economicamente mais justa. A abolição foi parte de um projeto da classe média em formação, que, em seguida, na instauração da República, deixou de lado os ex-escravos, e estruturou um poder de cunho liberal aliado à própria classe que detinha o poder econômico: os ex-senhores de escravos. Também as reações de algumas classes de trabalhadores, na busca de maiores salários e melhores condições de trabalho, não se constituíram uma tentativa organizada de reestruturação do modelo de sociedade. A injustiça social provocada por razões fincadas no modo como o Estado brasileiro se constituiu nunca foi alvo de uma verdadeira indignação. A condução do PT ao poder representou a esperança de que algo neste sentido poderia haver, mas, sem entrar na discussão das razões, o fato é que isto acabou não ocorrendo. Claro, a qualquer pessoa que se dê ao trabalho de estudar o direito social, o problema da injustiça social se põe como proposição necessária. Busca-se, por meio do direito, corrigir a realidade, mas esbarra-se sempre nas amarras burocráticas criadas pelo próprio sistema para impedir uma “revolução” das estruturas por meio do direito. Embora não seja irrelevante o efeito que se possa atingir com a imposição do direito social, o fato é que, diante das amarras criadas pelo sistema, a eficácia do próprio direito e de sua capacidade de mudança depende muito da consciência das classes às quais o direito social se volta: de não aceitarem as condições indignas que a estrutura econômica lhes impõe; de reagirem contra a opressão; de lutarem, enfim, por seus direitos. Mas, há nisto dois obstáculos de ordem cultural quase intransponíveis, primeiro o da informação completa sobre os direitos e, segundo, e mais relevante, o de que estas pessoas precisam acreditar no Judiciário, que, no entanto, faz parte da própria estrutura que os oprime. Além disso, as experiências de insucessos nas ações intentadas, provocadas por diversos fatores que não vale a pena explorar, acabam causando uma sensação (injustificada, ou não, pouco importa), de que a Justiça é para ricos (ou, pior, de que só pobre vai para a cadeia). Os próprios movimentos de trabalhadores são atingidos pela retórica de que tudo pode ser pior, diante da malsinada globalização econômica. O fatalismo impõe uma postura de conformismo com a situação atual. Tem-se, pois, uma realidade marcada pela notória injustiça social, sem que haja, nesta mesma realidade, algum tipo de tensão, que pudesse constituir a força necessária para a sua mudança. Assistindo as ações do PCC, iniciadas na semana passada, pensei: eis o início de uma revolta popular. Ledo engano. Embora, claro, no fundo de tudo esteja a questão social (e se pensarmos em como evitar a ocorrência desses fatos, teremos que pensar na diminuição da injustiça social e não na ampliação da truculência da segurança pública, pois não há como prender 4/5 da população e deixar 1/5 solto), o fato é que a leitura dos eventos ocorridos nos conduz a uma conclusão de certo modo até surpreendente: o crime organizado não lutava contra o sistema. Não lhe impulsiona um projeto de mudança da sociedade. Na sua base não está uma indignação contra a injustiça social. No fundo, o que o crime organizado almeja é, simplesmente, estabelecer uma relação de simetria com o Estado. Mostrar-se forte o bastante para que o Estado o suporte, sob pena de sucumbir com ele. Isto porque o crime organizado se alimenta do próprio sistema. Bem ou mal, conduzidos por falta de opção, frutos de um desajuste sócio-econômico criado pela própria elite dominante, os que foram “marginalizados” da sociedade encontraram no narcotráfico a fonte de sua subsistência e também uma estrutura paralela de poder, que, paradoxalmente, se alimenta da própria elite e, mais ainda, da própria falência moral e ética do Estado e que, além disso, se organiza por meio de relações hierarquizadas, fincadas na exploração de uns sobre outros. Neste sentido, quanto mais a corrupção se alastra pelas artérias do Estado, quanto mais a sociedade se desacredita da existência de um projeto de país, quanto mais pessoas se inserem na lógica de uma desesperança, quanto mais as estruturas do Estado e do direito estão descomprometidas com a solução da questão social, quanto mais um projeto econômico neoliberal alija pessoas do seio da sociedade, mais o narco-tráfico alimenta sua razão de ser, reproduzindo-se de forma cada vez mais organizada e, conseqüentemente, cada vez mais poderosa. Todos os que se indignam com a injustiça social e que têm alguma ilusão quanto à solução da questão social no Brasil assistem atônitos a tudo isto. As relações de poder estão bem definidas: de um lado, um Estado, que se estruturou no correr de séculos (que mesmo um governo Lula não foi capaz de mudar), para sustentação dos interesses de uma classe econômica dominante (que faz parte, desse modo, da mesma estrutura de poder), de outro, o crime organizado. Ambos, no entanto, não querem a mudança do sistema e não têm como preocupação central acabar com a injustiça social no Brasil. A sociedade civil, composta do que resta (uma classe média, que almeja ser um dia classe dominante, uma classe trabalhadora, que luta para manter seus empregos, uma classe de excluídos, acomodados com a própria sorte), não tem organização ou projeto. Aliás, diante da verificação do que realmente ocorre, não há nesses seguimentos sociais sequer uma noção de classe. Impulsionados pelo medo da crise econômica, as pessoas, como é natural diga-se de passagem (não havendo aqui, portanto, nenhuma avaliação de ordem moral), voltam-se a projetos individuais. Neste ponto uma indagação se impõe: queremos mudar esta realidade? Eis uma questão fundamental a ser respondida. Pois se não queremos, basta que continuemos assistindo tudo pela televisão, ao mesmo tempo em que nos trancafiamos em condomínios fechados, carros blindados e não deixamos nossos filhos andar pelas ruas, torcendo para que eles um dia não sejam vítimas da droga. Mas, se queremos, é importante, primeiro, reconhecer que a idéia de maior repressão, de “truculência” contra a criminalidade, só faz aumentar ódios e, pior, não ataca a causa do problema, o qual, sem um enfrentamento verdadeiro, vai apenas, como demonstrado, continuar se reproduzindo. Em segundo lugar, é preciso reconhecer que não há movimento social capaz de impulsionar esta mudança. Ou seja, não há como esperar uma revolta popular, pois esta não virá. É preciso, então, tomar o pulso da história. Ainda que por razões que possam ser diversas, uma parte da população, instruída e bem alimentada, precisa voltar-se contra o sistema como um todo, exigindo a reformulação completa do Estado e da própria sociedade brasileira, buscando dentre outras iniciativas: ensino público de qualidade; preservação e efetivação dos direitos sociais; tributação de grandes fortunas; tributação da especulação financeira; defesa da indústria nacional; autêntica e verdadeira reforma agrária; melhoria da estrutura do Judiciário; punição dos corruptos e corruptores; reforma do sistema prisional brasileiro, mantendo-se inabalável a defesa dos direitos humanos; política de integração social; democratização das instituições que estruturam a sociedade etc. Por fim, necessário ter a consciência de que esses efeitos não se produzem nos debates acadêmicos. A discussão teórica da reformulação da sociedade brasileira tem sido apenas alimento da abstração da intelectualidade e fonte de renda para muitos. É preciso que se apóie em um movimento verdadeiramente social. Não podemos, como vem sendo apregoado, continuar trabalhando como se nada estivesse acontecendo (neste momento muitos “suspeitos” estão sendo mortos, para o acalanto da sociedade). É preciso colocar a questão social na bandeira de uma ação concreta, de um movimento que ganhe, literalmente, as ruas. Reconheço, evidentemente, as dificuldades disso. Não tenho, ademais, a fórmula mágica para isto e nem me considero apto a encabeçar tal movimento. Fica aqui, de todo modo, como sugestão às organizações sociais (associações e instituições de todos os níveis), que se unam para a formação deste movimento. Só não se esqueçam de me dizer dia e hora em que terá início, para que eu possa estar lá, engrossando as fileiras de uma multidão que constituirá a verdadeira força de mudança dessa realidade. Mas, se isto for só uma ilusão, no mínimo, não se deve recusar, no âmbito do alcance das iniciativas de cada um, a fazer tudo o que se possa, para combater a injustiça do caso concreto. Não se omitir diante da injustiça, pelo menos para os que são ligados ao direito social, já se constitui um grande passo. Jorge Luis Souto Maior é Juiz do Trabalho (Jundiaí) e membro da AJD. Professor Livre-docente da Universidade de São Paulo

Por que Berlusconi Ganha

Márcia Novaes Guedes Eis que a empulhação venceu! Berlusconi marcha de novo sobre Roma e faz do imigrante o inimigo público número um! A figura caricata do estadista que subiu na vida pela esperteza e usou a imunidade política para se livrar da Justiça, venceu as últimas eleições com folgada maioria e tomou posse nessa quinta-feira [08/05/08]. Estou presa à Itália e aos italianos por laços afetivos e intelectuais. Escolhi fazer o doutorado na velha Universidade de Roma, e defendi tese sobre a relação entre assédio moral e totalitarismo; por isso me interesso por tudo que diz respeito a democracia e imigrantes. Vivi entre Roma e Veneza de 2003 a 2005 em meio a familiares, professores, amigos e juízes como eu, e creio que a derrapagem da democracia naquele país deve botar nossas barbas de molho. Berlusconi é populista. No seu governo a representação política legítima dos intereses gerais da nação foi sacrificada em nome dos interesses da maioria do "chefe". Numa aliança com a Liga Norte e herdeiros do fascismo tem-se o governo dos "Homens" em detrimento do governo das Leis, que subordina a esfera pública aos interesses privados. Ao lamentar a vitória iminente de Berlusconi, Mino Carta [Carta Capital [16/04/08]] não poupou críticas ao centro-esquerda. Falando para os Juízes em 2003, Luigi Ferrajoli ressaltou que a ideologia populista contagiou também a esquerda, cuja principal obsessão parece ser a escolha de um líder oposto, mas semelhante. Pior, a esquerda não se dá conta da avançada adiaforização social que reduz a escolha ética à estética e afasta a responsabilidade moral pela criminalização dos pobres e imigrantes. Na essência, as políticas da direita e da esquerda não se diferenciam quando o assunto é imigrante e trabalhador. Ao imigrante, Berlusconi aplicou a tolerância zero, respaldado na Lei Bossi-Fini. Essa lei é um atentado à memória constitucional depois do genocídio nazista, e aos valores da civilização. Em 2004, Berlusconi celebrou um acordo com a Líbia, e os imigrantes presos e algemados eram deportados em massa em vôos charter, o que rendeu uma condenação formal do Parlamento Europeu. A Líbia não assinou a Convenção de Genebra, mas o acordo Roma/Trípoli foi ratificado pela União Européia, sob a presidência de Romano Prodi. Foi Prodi quem, na Itália, iniciou o processo de precarização das relações de trabalho, com o pacote Treu. Posteriormente aperfeiçoado no governo Berlusconi pela Lei Biagi. Essa lei é uma forma perversa de regulamentar a precarização. Os jovens de até 40 anos de idade possuem contratos precários com salários de até 5 mil euros/ano, mas o gasto médio/mensal de uma pessoa para se alimentar na Itália é de 450 euros! A queda da atividade econômica não poupa sequer o trabalho submerso, preponderante no Nordeste italiano. A contínua deslocalização e reestruturação das empresas do Veneto e da Lombardia geram insegurança e medo na população. No mês passado foi a Collussi, uma tradicional marca de biscoitos, que se transferiu do Veneto para o Vale da Úmbria [sudeste]. Esse mês vive-se o medo do futuro da Eletrolux. A multinacional sueca decidiu transferir para Susegana parte da produção da fábrica de Scandicci [Florença] e fechar aquele estabelecimento. O que pareceria uma boa notícia para os trabalhadores de Susegana, porém, não é. As geladeiras e os freezers mais baratos serão produzidos na Hungria para adequar-se ao custo de produção coreano e turco, 200, 300 euros. Com menor volume de produção, reduzido será também aquele orgânico. Afirma-se que o corte será de 450 empregos diretos. O grande desafio, porém, será manter em Susegana a fábrica que tornou conhecida a região como a capital do freezer. Se por um lado, o italiano médio ignora os resultados da Operação Mãos Limpas e não confia na Magistratura, por outro lado, a jurisprudência trabalhista abraçou a vaga do pensamento único do fim do trabalho. O Estatuto dos Trabalhadores e a Constituição foram desprezados em prol de um direito da racionalidade econômico-social. Nas decisões de muitos juízes prepondera a interpretação de tipo empírico instrumental, que facilita a deslocalização das empresas, o desemprego e a redução legal dos vínculos garantistas e dos ônus salariais diretos e indiretos. Mergulhados na mesma crise que arrastou as esquerdas nos anos oitenta, os sindicatos transformaram-se em instituições para-governamentais e são instrumentalizados para assegurar as políticas do estado da racionalização econômica e da neutralização dos conflitos distributivos. O berlusconismo é um sintoma. Em Post Italiani _ cronaca di un paese provvisorio [Mondadori,2003], Edmondo Berselli afirma que a sociedade italiana pende entre um sedimento arcaico e uma secularização catastrófica. E na beira do precipício, é provável que entre o passado remoto e o presente post moderno não exista nada, nada que possa manter de pé a estrutura mental... O resultado é a loucura, ocasionada pela profunda crise de identidade. Em uma de suas muitas obras não reeditadas, Norberto Bobbio afirma que a democracia italiana ficou no meio da estrada. A camorra totalmente integrada à economia globalizada tem "lavanderias" espalhadas em todo país. O "sistema", como é conhecida internamente, controla até a reciclagem barata do lixo que entulha Nápoles e a costa da Somália, já que os contêineres de lixo atravessam impunemente o canal de Suez e são lançados no oceano índigo. O assassinato de Marcus Biagi e Massimo D´Antona pelas Brigadas Vermelhas é outra prova de que o contrato social está longe do consenso. E a invenção se fez realidade! Conclui Berselli. Dominado pelo medo e pela insegurança, o povo reproduz a vida na tevê e se deixa manobrar pelo apelo do salvador da pátria, que é a encarnação da ilusão coletiva vendida diariamente pela tevê. Promete-se prisão ao imigrante! O imigrante é acusado de roubar os poucos empregos que restam e fazer despencar os níveis salariais. Pior, o medo oficial alimenta a paura do inconsciente coletivo que o transforma num terrorista potencial. Num filme chocante, Pasolini mostra uma cena onde uma família está jantando, numa sala ricamente decorada, mas a comida é cocô. As pessoas comem merda, enquanto conversam, sem se dar conta. Acho que escutei de Nelida Piñon: muitos brasileiros estão "boiando em espumas!" Quer dizer, preferem o mundo da tevê, do espetáculo e das celebridades à vida real. Analisar o fracasso alheio só faz sentido se nos ajuda a evitar o nosso próprio fracasso! Márcia Novaes Guedes é Juíza Federal do Trabalho, Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de Roma [Tor Vergata] e membro da AJD

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