logo

Área do associado

  • Associe-se!
  • Esqueci a minha senha

AJD Portal
  • Início
  • Sobre nós
    • Quem somos
    • Conselho
    • Núcleos
    • Estatuto da AJD
    • Aplicativo AJD
    • Política de Privacidade
  • Notícias
  • Podcasts
  • Documentos
    • Atividades do Conselho
    • Cidadania
    • Voto e Cidadania
    • A AJD em juízo
  • Decisões
    • Eleitoral
    • Penal
    • Trabalho
    • Administrativo
    • Cível
    • Consumidor
    • COVID-19
    • Povos indígenas e comunidades tradicionais
    • Juros e correção monetária na JT
  • Artigos
  • Publicações
    • Jornal
    • Revista
  • Eventos

Artigos

  1. Início
  2. Artigos

Uma porta de entrada para a crítica marxista do direito: "a legalização da classe operária"

Marcus Orione, Jorge Luiz Souto Maior, Flávio Roberto Batista e Pablo Biondi[1]1. A crítica marxista do direito no século XXEngels e Kautsky, certa feita, mencionaram com muito acerto que o direito “ocupa posição muito secundária nas pesquisas teóricas de Marx”, aparecendo em primeiro plano “a legitimidade histórica, as situações específicas, os modos de apropriação, as classes sociais de determinadas épocas” (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 34). Em Marx, portanto, o direito nunca aparece no centro da análise. Ainda assim, mesmo tangenciando o fenômeno jurídico, a investigação marxiana deixou as indicações necessárias para uma compreensão científica e materialista do direito, sobretudo em O capital. Isto porque a crítica da economia política, ao consistir numa crítica do cerne da sociedade burguesa, de sua “anatomia” (MARX, 2008, p. 47), permite um vislumbre mais acurado sobre os outros aspectos da vida social do capitalismo, sobretudo no tocante às suas formas históricas.A crítica marxista do direito propriamente dita é posterior, portanto, a Marx e Engels, ainda que este último tenha se aproximado muito dela ao estudar a ideologia jurídica. Foi somente a partir do início do século XX que o fenômeno jurídico começou a receber uma atenção maior por parte da análise marxista, e isto se deve ao evento mais importante do período, e quiçá de todo o século: a revolução russa.Com o triunfo da revolução de outubro de 1917, instaurou-se na Rússia uma ditadura revolucionária do proletariado sob a direção política do partido bolchevique. Naquele momento, teve início um processo de transição ao socialismo, que se materializou no desmantelamento do aparelho de Estado burguês e na expropriação da burguesia russa. E foi no calor da tentativa de construção de uma nova sociedade, isto é, de ultrapassagem da ordem social burguesa, que o problema do direito se colocou para os marxistas como um tema a ser aprofundado.Pode-se dizer que o marco inaugural da crítica marxista do direito é a polêmica entre Petr Stucka e Evgeny Bronislavovich Pachukanis. Na referida polêmica, houve um rico debate metodológico sobre a abordagem do direito, sendo que a contribuição pachukaniana revelou-se muito mais sofisticada – ainda que tenha sido relegada ao esquecimento por força da contrarrevolução burocrática stalinista, a qual, inclusive, custou a vida do autor. De qualquer maneira, é certo queO momento mais alto do pensamento jurídico marxista se dá com Evgeny Pachukanis. Num notável aprofundamento das teses de Marx, Pachukanis se põe a identificar a específica relação social que dá base à manifestação jurídica. Para além de Stutchka – que, se identificava o direito à luta de classes, não lhe apontava os mecanismos íntimos –, Pachukanis se põe a identificar a especificidade do direito (MASCARO, 2009, p. 48)Enquanto Stucka (1988, p. 16) pensava o direito como um “sistema (ou ordenamento) de relações sociais correspondente aos interesses da classe dominante e tutelado pela força organizada desta classe”, qualquer que fosse o caráter do modo de produção dominante (feudal, capitalista, socialista etc.), Pachukanis propôs que o direito seria uma manifestação própria das formações sociais capitalistas, consistindo numa forma social gerada pela estrutura mercantil da ordem social burguesa.Para Pachukanis, não é suficiente identificar a divisão de classes no seio de uma sociedade para se determinar a presença do direito. Isto porque o direito, tal como o valor, a mercadoria, o capital etc., é uma categoria social que diz respeito a um determinado modo de produção e organização da vida material. Não se pode, assim, imaginar que os traços distintivos do fenômeno jurídico estariam presentes em sociedades muito distintas entre si (feudal, capitalista, socialista), apenas modificando-se a classe dominante favorecida (aristocracia, burguesia, proletariado). Esta seria uma maneira de se eternizar a forma jurídica, o que impede o conhecimento de suas características peculiares. Eis a ponderação de Pachukanis contra a formulação de Stucka:O conceito de direito é aqui considerado exclusivamente do ponto de vista de seu conteúdo; a questão da forma jurídica como tal de nenhum modo é exposta. Porém, não resta dúvida de que a teoria marxista não deve apenas examinar o conteúdo material da regulamentação jurídica nas diferentes épocas históricas, mas dar também uma explicação materialista sobre a regulamentação jurídica como forma histórica determinada (PACHUKANIS, 1988, p. 21). As incursões de Pachukanis na sua mais famosa obra, “A teoria geral do direito e o marxismo” são frutos do materialismo histórico-dialético, em que o autor situa o direito na perspectiva histórica, destacando um período, o capitalismo, que lhe atribui elementos próprios que o caracterizam. Portanto, a noção de forma jurídica, que não se confunde com o conteúdo jurídico, é a mais perfeita tradução de como componentes específicos do capitalismo moldam determinadas categorias econômico/sociais e lhes dão conotação específica. A forma social somente é possível, dadas determinações históricas, observadas características típicas de um modo de produção. Em outro modo de produção distinto, a forma também assume outra conotação. Assim, as especificidades do capitalismo moldam a forma jurídica, assim como essa última é moldada por aquele. A respeito de tais especificidades, que permitem o perfeito acoplamento da forma jurídica ao capital, trataremos no decorrer do artigo. Antes de aprofundarmos ainda mais no tratamento dado a Pachukanis ao direito, algumas palavras sobre conceitos básicos marxistas se fazem necessárias. A obra de Marx considera o trabalho como dado central para se entender o processo econômico de produção e circulação do capital. Ao discutir em especial com os economistas clássicos, como Ricardo e Adam Smith, o trabalho aparece como o único meio de produção capaz de valorizar o valor. Aqui é importante perceber que todas as mercadorias possuem valor de uso e valor de troca. O valor de uso da mercadoria é qualidade intrínseca, inerente a ela, no sentido de que, conforme a sua natureza, atenda às necessidades humanas. Uma cadeira serve para se sentar, assim como uma faca para cortar os alimentos. Esses são os valores de uso de uma cadeira e de uma faca. É claro que o valor de uso deve ser visto historicamente, mas o ponto do qual se parte é da coisa em si mesma. O valor de troca faz aderir uma qualidade extrínseca às mercadorias no sentido de que, segundo a natureza das relações sociais (e não somente à sua própria) marcadas pela exploração do trabalho alheio, passam a ser mensuradas no mercado. Aqui não bastam as qualidades específicas de que são dotadas, mas também as qualidades sociais de que passam a ser dotadas, determinadas pela quantidade de trabalho despendido para a sua produção. No mercado, realiza-se uma troca de equivalentes. Uma faca, observada a quantidade de trabalho necessário para que fosse produzida, poderia valer duas cadeiras, e assim por diante. No entanto, para evitar que todos precisem ir com facas e cadeiras para o mercado, o que seria impossível, constituiu-se mercadoria considerada o equivalente universal: o dinheiro. Perceba-se: troca de mercadorias e dinheiro já existiam antes do capitalismo. O que então faz com que sejam percebidas como forma específica do capital? A resposta está exatamente na mercadoria chamada força de trabalho. Ou seja, de novo o trabalho como central na teoria de Marx. Sendo o trabalho o único meio de produção que produz valor, no capitalismo, a grande sacada é a sua dominação e expropriação por outro que detém os demais meios de produção, como forma de acumulação de sua riqueza. Prestem atenção: o trabalho enquanto fator de riqueza das nações, no lugar de coisas inanimadas, como os metais ou a terra (para os fisiocratas), o que já havia sido percebido por autores como Adam Smith (A riqueza das nações). No entanto, a percepção de sua expropriação como forma de acúmulo de riqueza de uma classe e montagem de todo um sistema (o capitalismo) é obra do engenho de Marx. Vamos explicar melhor como o trabalho é o único valor que gera valor. Uma pedra, na natureza, é apenas uma pedra. Descoberto que se trata de uma jazida de plutônio, trata-se de matéria-prima importantíssima. No entanto, acreditar que a jazida ou os instrumentos utilizados no seu processamento é que geram a riqueza se trata de uma ingenuidade. Sem o trabalho de alguém que, devidamente preparado, descobrisse as propriedades daquela jazida ou mesmo sem a descoberta, pelo trabalho humano, das formas de processamento, aquela jazida seria, na natureza, uma como tantas outras. Mas não apenas o trabalho intelectual é importante aqui. Esse de nada valeria sem o esforço de operários que realizam, com a força de seus músculos, o processamento. Portanto, nem matéria-prima e nem máquinas, como se costuma pensar, produzem a riqueza do capitalista. O que produz a sua riqueza é a apropriação do trabalho alheio, para gerar valor (mais-valia). Assim, detendo os outros meio de produção, o capitalista quer agregar valor a esse capital e somente pode fazê-lo por meio da exploração do trabalho alheio. O trabalho, nessa fase da obra de Marx, que culmina com O Capital em seus três livros, assume uma conotação menos ontológica e passa a estar mais ligado às relações sociais de produção e reprodução da vida material. Logo, dinheiro ou troca de mercadorias aqui somente têm sentido com a apropriação da força de trabalho alheia, esta também considerada agora no capitalismo como mercadoria. Essa a grande sacada do capitalismo em relação aos outros modos de produção. Para que se possa aumentar a extração da mais-valia, diversamente de outras expropriações que já ocorreram anteriormente no seio da sociedade, é importante que o possuidor desta mercadoria (força de trabalho) se sinta livre e igual a qualquer proprietário, para operar no mercado a sua troca. Essa nova relação social específica, que diverge de troca de mercadorias em uma sociedade com escravos (antiguidade) ou com servos (idade média), promove uma nova dimensão do valor de troca das mercadorias em geral, com o dado específico de que a mercadoria força de trabalho aparece – apenas aparece, atenção para esse termo – como se fosse realizada por sujeitos proprietários que são tratados como livres e iguais.Retornando a Pachukanis, é imprescindível, pois, conceber-se o direito enquanto forma social, e uma forma que se distingue por trazer em si o chamado princípio da subjetividade jurídica, entendido como “o princípio formal da liberdade e da igualdade; da autonomia da personalidade etc.” (PACHUKANIS, 1988, p. 10). O que caracteriza o direito, então, não é uma normatividade organizada, como supõem os juristas tradicionais, ou interesse de classe inscrito na dominação de uma classe sobre a outra, qualquer que seja o caráter da formação social, como quer Stucka, mas sim a figura do sujeito de direito, a consagração do indivíduo como uma pessoa abstrata, desgarrada de vinculações estamentais.Ora, esse indivíduo abstrato só tem lugar na história num período bastante determinado, é dizer, a época das relações de produção capitalistas. Foi com o entranhamento da relação de capital na produção material da vida que a sociedade burguesa erigiu-se como tal. Isto se deu, sobretudo, com a subsunção real do trabalho ao capital e com o surgimento da grande indústria capitalista, organizada em torno do trabalho produtivo do trabalhador coletivo e do ciclo do capital industrial. Nessa perspectiva, compreende-se a emergência do sujeito abstrato, e que reflete a abstração do trabalho na troca de mercadorias e também na própria produção do valor. O teórico pachukaniano Márcio Bilharinho Naves (2014, p. 55-56) nos traz uma elaboração muito profícua a este respeito:Ao revestir-se da forma de um sujeito – nas condições de um modo de produção especificamente capitalista, isto é, sob as condições da subsunção real do trabalho ao capital –, o indivíduo se transmuta em vontade pura, abstraída de qualquer determinação. [...] Assim, a constituição do sujeito de direito está vinculada ao processo de abstração próprio da sociedade do capital, de tal modo que podemos dizer que ao trabalho abstrato vai corresponder à abstração do sujeito, ou seja, o processo de equivalência mercantil derivado do caráter abstrato que toma o trabalho em certas condições sociais determina o processo de equivalência entre os sujeitos, que só é possível se as pessoas perderem qualquer qualidade social que possa diferenciá-las.Como se nota, a linha de raciocínio apresentada por Pachukanis, e que está centrada no papel distintivo do princípio da subjetividade e do nexo necessário entre capitalismo e direito – tanto no sentido de que não há capitalismo sem direito quanto no sentido de que só pode haver direito, em sua expressão mais acabada, sob o capitalismo –, é a que melhor diferencia o fenômeno jurídico de outras instâncias da vida social. Aliás, como bem identificou o jurista soviético, esta diferenciação é condizente com um processo histórico real que, com o advento da ordem social burguesa, separou a forma jurídica da moral, da religião[2], dos costumes etc., permitindo um desenvolvimento singular de suas categorias:Não devemos nos esquecer que a evolução dialética dos conceitos corresponde à evolução dialética do próprio processo histórico. A evolução histórica não implica apenas uma mudança no conteúdo das normas jurídicas e uma modificação das instituições jurídicas, mas também um desenvolvimento da forma jurídica como tal. Esta, depois de haver surgido num estágio determinado da civilização, permanece, durante longo tempo, num estado embrionário com uma leve diferenciação interna e sem delimitação no que concerne às esferas próximas (costumes, religião). Foi apenas desenvolvendo-se progressivamente que ela atingiu o seu supremo apogeu, a sua máxima diferenciação e precisão. Este estágio de desenvolvimento superior corresponde a relações econômicas e sociais determinadas. Ao mesmo tempo este estágio caracteriza-se pelo aparecimento de um sistema de conceitos gerais que refletem teoricamente o sistema jurídico como totalidade orgânica (PACHUKANIS, 1988, p. 35-36).Por conta da repressão stalinista, a teoria pachukaniana foi brutalmente interrompida no seu desenvolvimento. Pachukanis foi executado em 1938, no contexto dos famigerados Processos de Moscou[3]. Desse modo, a produção teórica marxista sobre o direito sofreu um revés muito grande. Sob o stalinismo, inclusive, predominou a doutrina de Andrei Vichinsky, que identificada o direito à legalidade posta e fazia a mais completa apologia ao regime stalinista e à deformação burocrática do Estado nascido com a revolução de outubro.E com o trágico desfecho da revolução russa, que acabou enterrada pela degeneração stalinista, o impulso teórico que colocou em foco o problema do direito se perdeu. A transição socialista na URSS foi abortada, de modo que a ditadura revolucionária do proletariado, o regime dos soviets, foi substituída pela ditadura burocrática de um partido bolchevique irreconhecível, dirigido por uma camarilha que aniquilou moral e fisicamente a vanguarda e as lideranças da revolução. No campo de estudo do direito, esse retrocesso colossal se manifestou no fim das pesquisas mais profundas. O fenômeno jurídico voltaria a ter uma dimensão marginal nas obras marxistas.Com efeito, encontramos considerações sobre o direito em autores clássicos do marxismo do século XX, como, por exemplo, Louis Althusser em seu Sobre a reprodução (1995). Todavia, faltavam estudos de fôlego que se debruçassem direta e prioritariamente sobre a questão do direito. Faltava um sopro renovador que pudesse retomar o caminho trilhado por Pachukanis e avançar nas elaborações. Este sopro não foi dado por Althusser, mas alguns de seus seguidores tomaram para si, de certa maneira, esta tarefa. Dentre eles, Bernard Edelman mostrou-se o mais brilhante.2. A obra de Bernard EdelmanA denúncia dos crimes de Stalin e a poderosa vaga revolucionária de 1968, a última em solo europeu, enfraqueceram o prestígio e a hegemonia do aparato stalinista na esquerda francesa. Desenhou-se, assim, um cenário de oportunidade para uma renovação do marxismo, tanto em relação à dogmática oficial patrocinada por Moscou quanto em relação a algumas tendências reformistas.Não houve na França, como na Rússia de 1917, uma insurreição proletária que culminou com o início de uma transição socialista. Contudo, a vaga revolucionária de 1968 colocou a classe operária em movimento, num ascenso fortíssimo que se enfrentou não apenas com o governo conservador de Charles De Gaulle, mas também com a linha política do PCF, que canalizou a força espetacular do levante operário e popular para o terreno reformista das negociações econômicas – o que deu sobrevida a um governo que estava prestes a cair, e que de fato poderia cair se houvesse uma decidida direção revolucionária à frente do movimento de massas.A frustração de um ascenso revolucionário que terminou em negociações econômicas conduzidas por uma direção política conciliatória colocou a questão do “terreno” da luta de classes, ou seja, do espaço social em que ela se realiza. Provou-se novamente na prática a tese leninista de que, no confronto econômico, prevalece a consciência sindicalista, “tradeunionista”, “uma convicção de que é preciso reunir-se em sindicatos, lutar contra os patrões, cobrar do governo a promulgação de umas e outras leis necessárias aos operários etc.” (LÊNIN, 2010, p. 89), mas sem se colocar em causa a dominação do capital e a questão do poder. Isso porque a luta econômica e sindical se limita a barganhar o preço da força de trabalho, deixando intocado o problema da sua comercialização, é dizer, o cerne do modo de produção capitalista.Ora, um conflito que se encerra na sua pauta econômica, que não ultrapassa as determinações mercantis do capitalismo, é um conflito que se dá no interior da arena do direito, e com pleno respeito às suas linhas de demarcação. Prevalecem, nessas condições, tanto a forma jurídica em sua generalidade quanto o seu arcabouço institucional sindical, o qual instrui e dá sustentação à permanência da relação capital-trabalho. Não se pode esquecer que a estrutura sindical é um componente necessário de um regime social em que a força de trabalho é uma mercadoria, e que, como tal, precisa passar por foros de negociação do seu preço. E dado o liame intrínseco entre direito e mercadoria no capitalismo, como bem demonstrou Pachukanis, a forma jurídica demonstra todo o seu peso ao envolver e disciplinar o mercado de trabalho.Na conjuntura inaugurada em 1968, portanto, restou escancarada a influência do direito sobre a luta de classes. Apesar do ímpeto revolucionário inicial, o movimento de massas se viu prisioneiro das armadilhas do terreno jurídico, as quais necessariamente o conduziriam à conciliação de classes, à restauração da ordem e à reprodução da sociabilidade do capital. Discutir o direito sob um ponto de vista marxista, então, tornou-se uma necessidade urgente naquele contexto. Neste contexto é que surge o marxismo que assenta bases nas proposições de Louis Althusser, em sua posição de afastamento contínuo do stalinismo e de crítica implacável ao reformismo, logrou produzir obras de enorme importância para a crítica do fenômeno jurídico. E é exatamente no contexto da crítica althusseriana que se deve conceber a obra de Bernard Edelman.Em 1973, Edelman inicia esse movimento de crítica radical do direito com a obra O direito captado pela fotografia(2001). Três anos depois, Michel Miaille lança a sua Introdução crítica ao direito (2005), igualmente partindo das premissas pachukanianas. E, em 1978, outras duas obras desses autores foram publicadas: O Estado do direito, de Michel Miaille (1980), e A legalização da classe operária, de Bernard Edelman (2016).Em que pese a importância dos textos de Miaille, colocaremos nosso foco no trabalho de Edelman. Neste autor, encontramos uma teoria do direito que parte decididamente dos pressupostos pachukanianos, e que se propõe a sofisticá-los por meio da teoria do sujeito – e de sua interpelação ideológica – em Althusser. Segundo Louis Althusser (1995, p. 23), “não há ideologia que não seja pelo sujeito e para sujeitos[4]”, no sentido de que o indivíduo é “sempre já” (isto é, desde sempre) sujeitado pela ideologia, constituído por ela concretamente por meio das práticas materiais que a instituem e dos aparelhos ideológicos que cuidam da sua reprodução. Em uma apertada síntese, desde o instante em que qualquer sujeito vem ao mundo já se encontra sujeito a uma ideologia na qual estará inserido, sendo que, individualmente, não terá condições de superá-la. Na realidade, mais do que isto há aparelhos que reforçam esta ideologia, tais como a escola, o sindicato, a mídia (para usar um exemplo mais atual) e outros. Em seu livroO direito captado pela fotografia, Bernard Edelman mostra-se caudatário desta concepção althusseriana, indicando um caminho de diálogo com a linha teórica de Pachukanis:Os “indivíduos” são interpelados como sujeitos pelo direito. Essa interpelação é constitutiva de seu ser jurídico mesmo, no sentido de que é esta interpelação “tu és um sujeito de direito” que lhes dá o poder concreto, que lhes permite uma prática concreta. “Já que tu és o sujeito de direito, tu és capaz de adquirir e de (te) vender” (EDELMAN, 2001, p. 26).Coerentemente com a crítica pachukaniana, Edelman identifica o mercado como o espaço de realização das práticas materiais que ensejam a figura do sujeito de direito. A forma mercantil engendra um indivíduo à imagem e semelhança do portador de mercadorias, um sujeito formalmente livre, igual aos outros e potencialmente proprietário. E dentre os três aspectos centrais desse sujeito de direito, destaca-se a propriedade, ou seja, a sua característica de ser “um proprietário de mercadorias abstrato e transposto para as nuvens”, para usarmos a expressão pachukaniana (1988, p. 78). É com referência na propriedade que as categorias jurídicas de liberdade e igualdade se estabelecem. Uma vez que a liberdade e a igualdade são categorias derivadas da esfera mercantil do valor e da troca, elas se colocam em função dos proprietários de mercadorias. É por meio da realização contratual delas que a propriedade se transfere de mãos em mãos no processo incessante de permutas. Edelman (2001, p. 110) conclui que “a movimentação da propriedade privada cria, de fato, uma liberdade e uma igualdade, mas esta liberdade e esta igualdade são aquelas mesmas da propriedade privada”. Na perspectiva do mercado, o trabalhador deve estar apto para vender a sua força de trabalho, como proprietário dela. Não pode ser tratado de forma distinta dos que possuem o capital, que da força de trabalho extraem o principal elemento de concentração de suas riquezas. Caso contrário, não passaria de um escravo ou de um servo. No entanto, como não estamos mais na antiguidade ou na idade média, a expropriação da força de trabalho precisa contar com a aquiescência do próprio trabalhador. Portanto, ao se conceber a figura do sujeito de direito como homem livre, igual e proprietário, para a circulação da principal mercadoria que deve ser expropriada pelo capital, a força de trabalho, há a consolidação concomitante de uma ideologia jurídica – a que qualquer indivíduo se encontra submetido, e que corresponde a categorias estudadas por Althusser, como a de que o sujeito é interpelado pela ideologia, no sentido de que não tem condições, individualmente, de a ela resistir, nela já se inserindo desde o instante em que passa a existir como ser vivente.Assim, consagra-se uma imagem abstrata do homem na sociedade burguesa, um indivíduo que é nivelado pelo mercado, e que dele participa independentemente da sua ascendência social. Os indivíduos se apresentam como portadores não apenas das mercadorias que oferecem, mas também das relações sociais que dão base às trocas. Personificando a equivalência do trabalho abstrato, eles são postos como “equivalentes vivos”, de tal sorte que “o processo do valor-de-troca torna-se o processo do sujeito, e o processo do sujeito, o processo do valor-de-troca” (EDELMAN, 2001, p. 111). Esmiuçando a relação entre a forma jurídica e a forma mercantil, Edelman explicita as funções concretas e ideológicas do direito, postulando que ele, em sua vivência, “fixa as formas de funcionamento do conjunto das relações sociais, torna eficaz, no mesmo momento, a ideologia jurídica, que é a relação imaginária dos indivíduos com as relações sociais em geral”, assumindo a “dupla função de fixar concretamente e ‘imaginariamente’ – e seria melhor dizer que a fixação concreta jurídica é ao mesmo tempo ideológica – o conjunto das relações sociais” (EDELMAN, 2001, p. 104). E nisto, inclusive, se vê mais uma apropriação do pensamento de Althusser acerca da ideologia, concebendo-a como uma “relação imaginária dos indivíduos com as relações sociais em geral”.Como síntese da crítica de Edelman à forma jurídica em sua generalidade, vale citar a seguinte passagem:O que me proponho a demonstrar ao deixar voluntariamente de lado o que se passa “alhures”, no “laboratório secreto da produção”, é que o direito toma a esfera da circulação como dado natural; que esta esfera, tomada em si como absoluta, não é nenhuma outra senão a noção ideológica que porta o nome hobbesiano, rousseauniano, kantiano ou hegeliano, de sociedade civil; e que o direito, ao fixar a circulação, não faz senão promulgar os decretos dos direitos do homem e do cidadão; que ele escreve sobre a fronte do valor-de-troca os signos da propriedade, da liberdade e da igualdade, mas que estes signos, no secreto “alhures”, lêem-se como exploração, escravidão, desigualdade, egoísmo sagrado (EDELMAN, 2001, p. 107).Foi sob esta perspectiva de crítica radical que Edelman desvendou como o direito, introduzindo categorias charmosas na vida social, chancela a exploração capitalista e seus desdobramentos. Em sua investigação implacável, nem mesmo noções como liberdade e igualdade foram poupadas. A base dos direitos humanos, tidos como um dos maiores marcos da civilização, restou desmistificada. O passo seguinte do autor seria levar esta concepção aos domínios do direito do trabalho, o que elevaria sua contribuição ao marxismo a um novo patamar.3. A crítica do processo de legalização da classe operáriaEm A legalização da classe operária, Edelman apresenta uma crítica do direito do trabalho, em especial do direito coletivo do trabalho. E por meio dessa crítica, ele demonstra como a forma jurídica incide sobre a luta de classes, inclusive nos momentos em que esse conflito aparece mais claramente, como nas greves operárias. A grandeza dessa obra reside, assim, não apenas no rigor metodológico e na extensão do campo de análise, mas também no fato de ela conjugar dois elementos muito caros ao marxismo: as formas sociais do capitalismo (no caso, o direito) e a luta de classes, esta contradição fundamental que tem colocado a história em movimento até dos dias de hoje.O conteúdo da obra consiste num desvelamento profundo das ilusões da doutrina jurídica acerca do direito do trabalho e de seu papel na sociedade. Na contramão desta tradição que vê no ramo juslaboral apenas um inventário de conquistas obreiras históricas, ou mesmo um sinal de triunfo da dignidade humana, Edelman (2016, p. 18) alerta que “a classe operária pode ser 'desviada', precisamente por suas próprias 'vitórias', que podem apresentar-se também como um processo de integração ao capital”, lembrando, ainda, que “a 'participação' nunca esteve ausente da estratégia da burguesia, e há veneno em seus 'presentes'”.Edelman não despreza as medidas de bem-estar que foram obtidas sob pressão do movimento operário. Contudo, seu esforço é o de salientar o outro lado da moeda, ou, se quisermos, o “preço” que foi pago por essas concessões do capital. Esse preço, por certo, não foi a supressão da luta de classes. Em sua filiação althusseriana, Edelman seguramente entende que “a luta de classes e a existência das classes são uma só e mesma coisa”, uma vez que a divisão da sociedade em classes “não se faz post festum; é a exploração de uma classe por outra e, portanto, a luta de classes que constitui a divisão em classes. Pois a exploração já é luta de classes” (ALTHUSSER, 1978, p. 27). É por isso que nosso autor fala em desvio desse conflito, e não na sua abolição. Ocorre que, com as conquistas econômicas da classe operária e sua integração política (e jurídica, pelo reconhecimento de direitos) à sociedade burguesa, o enfrentamento entre capital e trabalho desloca-se para o âmbito institucional dos partidos da ordem e do sindicalismo oficial, ou seja, para o campo do Estado em sua concepção ampliada, de maneira que “as próprias lutas operárias são travadas nesses aparelhos, elas se desenvolvem nessas estruturas e essas estruturas provocam efeitos sobre o combate” (EDELMAN, 2016, p. 19).Eis aí o cerne da questão. O terreno sobre o qual se realiza o embate está longe de ser indiferente para o seu resultado. Enquanto uma forma, o direito envolve o seu conteúdo e o submete às constrições necessárias para moldá-lo em favor da reprodução da sociabilidade do capital – de tal sorte que as posições jurídicas conquistadas pela classe operária não traduzem o seu poder de classe propriamente, mas antes o poder da ordem social que se organiza juridicamente. Isto porque a relação entre capital e trabalho é uma relação jurídica entre sujeitos, é um antagonismo social expresso num liame entre contratantes.Todos os avanços do movimento operário que foram contemplados legalmente são concretizados a partir das categorias jurídicas que instruem a sociedade burguesa e o direito como uma de suas formas sociais. Logo, não é possível imaginar que a classe operária possa se amparar no direito para questionar o modo de produção capitalista. Tampouco é possível que ela construa no interior da forma jurídica qualquer estratégia de poder, pois o poder, nessa sociedade, só pode ser aquele que corresponde à sua estruturação capitalista.Para o direito do trabalho, as consequências desse raciocínio são tremendas. Visto como uma espécie de direito de resistência pelos juristas progressistas, ou mesmo como o embrião para um novo direito, como uma possibilidade de renovação geral da ordem jurídica e do seu liberalismo tradicional, o direito do trabalho se revela, graças à inquirição implacável de Edelman, como mais um espaço de consagração do domínio burguês. Transcrevamos as palavras do autor em toda a sua crueza:Devemos nos livrar de uma vez por todas da ilusão tenaz de um “direito operário” que manteria distância do direito burguês, que seria um tubo de ensaio em que se elaboraria um “novo direito”. Tradicionalmente, os especialistas têm empregado seus esforços nesse sentido. É necessário, dizem esses especialistas, autonomizar o direito do trabalho, dar-lhe seus títulos, reconhecer sua especificidade. Ele é, continuam eles, um direito coletivo, um direito de massa, para as massas, que não tem mais nada – ou cada vez menos – a ver com o direito “comum”, leia-se, o direito civil. Desse esforço nasceu o “socialismo dos juristas”, que se perpetua até hoje sob as espécies sutis e técnicas das relações entre direitos: direito do trabalho/direito civil, direito do trabalho/direito comercial, direito do trabalho/direito público…Como se o trabalho estivesse “do lado” do capital e do Estado! Como se o “direito operário” não fosse o direito burguês para o operário! E como se, enfim, milagrosamente, o direito do trabalho fosse uma zona juridicamente “protegida”!Não existe o “direito do trabalho”; existe um direito burguês que se ajusta ao trabalho, ponto final (EDELMAN, 2016, p. 19).É claro que, para chegar a um diagnóstico tão “drástico” como esse, Edelman não se limitou a construções simplórias ligadas à metáfora marxiana da relação entre estrutura e superestrutura. O autor guiou-se pela compreensão acerca das formas sociais e de suas consequências. Uma vez que tais formas cristalizam as relações de produção que as engendram, delas não se pode esperar qualquer tipo de subversão contra a ordem existente. Nessa ordem de considerações, não se poderia conceber o direito do trabalho como um direito do trabalhador contra a classe capitalista, ou então imaginá-lo como um ramo jurídico “menos burguês”. Ao longo de sua obra, Edelman demonstra à exaustão que as relações entre capital e trabalho, ao serem mediadas juridicamente pelo direito coletivo do trabalho, encontram um ponto de sustentação bastante sólido, e que a forma jurídica aplicada ao embate capital-trabalho sofistica a supremacia burguesa a partir da “captura” do movimento operário, do seu enredamento.Ao dizer que não existe um direito do trabalho que “pertença” ao trabalhador, ou que possua uma substancialidade distinta daquela que compõe o direito burguês em geral, Edelman recupera a radicalidade de Pachukanis, já que este, coerentemente com o caminho teórico que trilhou, propôs que o direito é sempre o direito burguês, não podendo prestar-se ao serviço de construção de um outro tipo de sociedade, ou mesmo de contraposição aos interesses da classe capitalista. O pensador russo compreendia que “o aniquilamento de certas categorias (precisamente de certas categorias e não de tais ou quais prescrições) do direito burguês, em nenhum caso significa a sua substituição pelas novas categorias do direito proletário”. E é assim pelo mesmo motivo que a supressão “das categorias do valor, do capital, do lucro etc., no período de transição para o socialismo evoluído, não significa o aparecimento de novas categorias proletárias do valor, do capital etc.” (PACHUKANIS, 1988, p. 26-27). Portanto, por mais que o direito do trabalho apresente figuras alternativas àquelas do direito civil, mais liberal em sua compleição, daí não se infere que elas atentem contra a lógica da sociedade burguesa.Em acréscimo, a sutileza da função cumprida pelo direito do trabalho está no seu modo de envolver o proletariado em sua oposição face à burguesia. A “legalização da classe operária” consiste nesse expediente de subsunção de uma classe potencialmente revolucionária, e que traz em si uma negatividade ínsita em relação à burguesia e ao capitalismo, aos ditames da forma jurídica. Significa fazer com que o confronto de classe se realize numa arena segura, onde os limites do enfrentamento estejam bem delimitados, impedindo-se uma radicalização que ultrapasse as margens de tolerância das relações de produção. Para tanto, o capital tem a “astúcia” de dar à classe operária “uma língua que não é a sua, a língua da legalidade burguesa, e é por isso que ela se exprime gaguejando, com lapsos e hiatos que às vezes rasgam o véu místico (Maio de 1968 na França)” (EDELMAN, 2016, p. 22). Observe-se, inclusive, que Edelman não é um fatalista, que ele prevê a possibilidade de rupturas com a ordem burguesa. A diferença é que, contrariamente aos adeptos do “socialismo jurídico”, ele vislumbra essa possibilidade nos processos revolucionários, e não no direito ou nos demais aparatos institucionais do capitalismo.A tarefa assumida por Edelman, pois, é a de decodificar a “linguagem” da legalidade burguesa, entender como ela aprisiona o movimento operário nas molduras da sociabilidade capitalista, como se processa o enquadramento jurídico da classe operária e de sua luta contra o capital.O primeiro passo para o entendimento desse processo é o correto dimensionamento da relação capital-trabalho. Edelman esmiúça a unidade dialética desse par, pondo em relevo o fato de que, no capitalismo, trabalho e capital se determinam mutuamente. Esta unidade, com efeito, é basilar ao modo de produção capitalista, e não há um único conflito trabalhista que coloque em causa a natureza desse vínculo. Ao contrário, o direito do trabalho reproduz as condições sociais da produção capitalista e conforma a exploração de classe:Podemos compreender agora como o contrato de trabalho reproduz o direito de propriedade, e como o direito de propriedade reproduz o contrato de trabalho. De um lado, o contrato de trabalho aparece como uma técnica de venda do “trabalho”, que só dá direito a um salário; de outro, o proprietário dos meios de produção compra a força de trabalho sob a forma de salário e a incorpora juridicamente a sua propriedade.No final das contas, a relação capital/trabalho resolve-se numa relação de título: título de trabalho em oposição ao título de propriedade.Assim, quando combinam contrato de trabalho e propriedade privada, os tribunais reproduzem de fato a separação do trabalhador de seus meios de produção (EDELMAN, 2016, p. 31).Há, pois, uma simetria entre o contrato de trabalho e o direito de propriedade, ou melhor, uma correlação necessária, e que instrui o que Edelman chama de poder jurídico do capital. A dominação do capital sobre o trabalho é exercida sob a forma de um vínculo contratual que atribui direitos e deveres para as partes envolvidas num arranjo aparentemente igualitário, destoante do perfil estamental da sociedade feudal, por exemplo. Mas é essa igualdade entre polos contratantes que abriga a coleta do mais-valor e que dá a dinâmica da exploração capitalista.A incidência da igualdade jurídica sobre a relação capital-trabalho traz efeitos sobre o modo como esse antagonismo imanente se desenvolve, e Edelman faz uma imersão nessas implicações. O teórico francês aponta, primeiramente, a contratualização das greves: o confronto entre as classes é enquadrado como um confronto entre sujeitos munidos de direitos, de sorte que os antagonistas guardam obrigações entre si mesmo quando entram em choque. E mesmo o alcance e a intensidade desse choque são submetidos a uma disciplina jurídica, a uma avaliação de licitude e ilicitude dos atos praticados. Dessa maneira, “a greve é lícita na medida do contrato de trabalho; quando há abuso contratual, há greve abusiva”, o que significa dizer que “a greve, quando se torna extracontratual, torna-se, por consequência, ilícita ou ilegal, segundo sutilezas que não nos interessam por ora” (EDELMAN, 2016, p. 38).O intuito último dessa contratualização é a defesa da produção. O critério aferidor da abusividade ou não da greve é o seu potencial lesivo à normalidade da produção capitalista. Não sendo dado à classe burguesa, em condições de normalidade política, simplesmente proibir as greves – ao menos não na época de maturidade do capitalismo –, a política oficial para essas formas de luta proletária é a de contenção segundo regras dedicadas a poupar a produção capitalista de maiores abalos. Nesse sentido, admite-se a prática grevista, mas com a condição de que o empregador seja avisado previamente, que um mínimo do processo produtivo seja mantido em funcionamento, que a posse do capital sobre os meios de produção não seja afrontada e que as reivindicações do movimento paredista não ultrapassem o âmbito sindical, quer dizer, a seara econômico-profissional da categoria mobilizada.Com tudo isso, a forma jurídica não só preserva a fluidez da produção, como também pretende forçar os trabalhadores a adotarem uma estratégia de luta previsível e admissível, tolerável para os padrões capitalistas. Merece destaque, dentre os requisitos usuais para a licitude da greve, o perfil econômico-profissional que se espera das reivindicações do movimento operário. Trata-se simplesmente de se reproduzir a separação formal entre Estado (política) e sociedade civil (interesses econômicos) que caracteriza o capitalismo, além de se interditar a politização da luta operária e a formação de mobilizações que superem a divisão do proletariado em categorias profissionais. Pois é da superação desse fracionamento em interesses profissionais que depende a unificação do proletariado na sua oposição inconciliável perante o capital. Somente assim a luta de classes pode atingir um patamar superior, comportando uma disputa não mais em torno do preço de venda da força de trabalho, e sim das relações de propriedade que transformam a força de trabalho em mercadoria. Pelo aspecto ideológico do direito estudado por Edelman, logo se percebe que a forma jurídica conspira contra qualquer tentativa de se por em causa as relações de produção capitalistas. Ela se empenha, ao revés, em naturalizar tais relações e dissimular seu caráter de classe por meio de um discurso humanista muito difundido pelos juristas, e que, apropriado pelos tribunais, fundamenta decisões repressivas contra os trabalhadores em greve, exercendo uma disciplina férrea contra eles sempre que suas mobilizações ameaçam sair da esfera sindical-profissional. Daí se entende a visão do autor quanto à impossibilidade de uma ordem jurídica admitir, a título ilustrativo, as greves políticas ou as ocupações dos locais de trabalho.Tendo em vista todas essas circunstâncias, Edelman não exagera em nada ao sintetizar suas reflexões sobre o direito de greve, tido como um triunfo absoluto da classe operária pelos juristas progressistas e humanistas, da seguinte maneira:O direito de greve é um direito burguês. Entendamos: não digo que a greve é burguesa, o que seria um absurdo, mas que o direito de greve é um direito burguês. O que quer dizer, muito precisamente, que a greve só atinge a legalidade em certas condições, e essas condições são as mesmas que permitem a reprodução do capital (EDELMAN, 2016, p. 48).4. A atualidade d’A legalização da classe operária perante o direito coletivo do trabalho brasileiroComo visto nas seções anteriores, A legalização da classe operária pode ser considerada a principal obra de Edelman do ponto de vista teórico, uma vez que consuma seu projeto crítico do direito e consubstancia o momento em que ele dá o passo decisivo além da elaboração pachukaniana. Por isso, é com estranhamento que se constata que a obra permaneceu por quase quatro décadas inédita em língua portuguesa, sequer tendo recebido traduções em outros idiomas latinos como espanhol ou italiano. Entretanto, sua publicação no Brasil pela Editora Boitempo, em 2016, não poderia se dar em oportunidade melhor: o país encontra-se em momento político ímpar para que o público leitor possa verificar em sua própria vida cotidiana a insuperável atualidade da obra. Mais do que isso, como o próprio Edelman, a despeito de ter abandonado o projeto d’A legalização da classe operária[5], reconheceu no prefácio que elaborou a pedido dos tradutores para a publicação no Brasil, a obra pode ser considerada quase profética, depois de ter sido rejeitada à época de sua publicação:Devo dizer que esta abordagem suscitou verdadeira revolta. Lembro-me que quando expus minhas teses na Escola Normal Superior, onde lecionava na época, a companheira de Althusser, antigo membro da resistência e cegetista ardorosa, interpelou-me violentamente e me chamou de reacionário, de traidor e de mercenário da burguesia... Louis Althusser manteve prudentemente o silêncio. Em resumo, este livro foi retirado de cena, e apenas um jornal anarquista lhe fez apologia. Então, o que se pode dizer dele hoje? Que ele era premonitório, mas que a realidade o ultrapassou? Sim e não. Sim, porque o desmoronamento do comunismo se produziu com uma rapidez que me surpreendeu. (...). Mas, sobretudo, parece-me que minha decodificação jurídica da realidade político-econômica conservou todo o seu valor (EDELMAN, 2016, pp. 9-10).Com efeito, em 1978, no momento de sua publicação original, a obra talvez não fizesse tanto sentido deste lado do Atlântico. Naquele instante, depois de uma década e meia de uma violenta ditadura militar, em que o movimento sindical foi sufocado de todas as formas possíveis pelo direito e pela força e substituído por uma atuação meramente assistencial sem qualquer conteúdo de classe[6], o operariado retomava suas lutas a partir de uma organização de base totalmente independente da organização sindical oficial:Mas nem só de adesismo vivia o movimento. Se as greves por categoria e a chegada de grupos políticos de esquerda às direções sindicais eram impossíveis dado o alcance da repressão, os ativistas mais combativos não desistiram do trabalho de organização dos trabalhadores nas empresas (MATTOS, 2009, p. 113).O paciente e clandestino trabalho de base efetuado ao longo de toda a década de 70, auge da repressão, começou a mostrar seus resultados na fábrica da Scania, em São Bernardo do Campo, em 12 de maio de 1978: ali irrompia uma greve, organizada inicialmente sem a presença do sindicato, que desencadearia uma onda de greves que varreria a região do ABC paulista até 1980. Há inúmeros relatos disponíveis, entre os quais o de Mattos, acima citado, o brilhante trabalho de Antunes (1988) e o estudo de Abramo (1999). Em todos eles, com variados níveis de detalhamento, é possível perceber inúmeras características do movimento operário de que já falava Lênin em seu clássico Que fazer? (2010): o espontaneísmo, a vanguarda operária e sua relação com a base, a consciência “tradeunionista” em contraposição à consciência social democrata, o ganho organizativo da greve por vezes superando os ganhos materiais para os trabalhadores e o ganho individual de consciência pelos operários a partir de seu engajamento na luta. Tratava-se, em suma, de um período de “ilusão”, para dialogar com Edelman, que já noticiava em 1978 terem sido as “ilusões perdidas”, especialmente a ilusão da existência da classe operária (2016, p. 145).A história do “novo sindicalismo”, nome que recebeu o movimento inaugurado em 1978, e de sua captura pelo Estado, consumada pela Constituição de 1988[7]e cada vez mais aprofundada desde então, é a crônica da legalização da classe operária brasileira e justifica o crescente ganho de interesse da obra de Edelman a partir de então.Com efeito, não se pode esquecer a inarredável contribuição de Althusser no sentido de que, na sociedade capitalista, a dominação de classe é exercida por meio de uma multiplicidade de aparelhos, repressivos e ideológicos, que conjuntamente formam o que se convencionou chamar de Estado[8]. O que permite a Edelman apontar o sindicato como um aparelho ideológico de Estado (2016, p. 123) no sentido althusseriano é uma estratégia de controle que deve ser exercida de acordo com a configuração do aparelho repressivo de Estado[9]. Com o enfraquecimento do aparato militar do Poder Executivo a partir da redemocratização em 1988, desenhou-se a estrutura para que o controle sobre o aparato sindical no direito brasileiro fosse exercido na modalidade de um controle judicial (CORREGLIANO, 2013). As elaborações críticas de Edelman a decisões judiciais e manifestações da doutrina francesa sobre diversos aspectos do direito sindical ajustam-se perfeitamente ao processo observado no Brasil pós-1988.Um primeiro ponto interessante diz respeito à questão da representação sindical. A Constituição de 1988 fez-nos persistir convivendo com o modelo oriundo do Decreto n. 19.770, de 19 de março, de 1931, integrado, posteriormente, à CLT de 1943, que, embora tivesse sido revogado em duas ocasiões, foi revigorado, sobretudo, por iniciativa dos governos militares de Dutra e do golpe de 64, modelo este em que, de maneira atrelada à unicidade sindical, é atribuída ao sindicato a exclusividade da representação de sua categoria nos limites territoriais em que ele estiver constituído. A exclusividade de representação resolve um problema antigo da organização do movimento operário na forma sindical, e que Edelman ironicamente aborda na forma de uma pergunta: a quem pertence a classe operária? (2016, p. 109). Sua resposta a esta questão, ao mesmo tempo em que aponta a representação sindical como solução jurídica apresentada pelo Estado, expõe seus limites e tece sua crítica:A burguesia contaminou a organização operária, intimou-a a transformar-se em burocracia, funcionando segundo o modelo do poder burguês; intimou-a a “representar” a classe operária segundo o esquema burguês da representação; impôs-lhe uma língua, um direito, uma ideologia do comando da hierarquia que fariam das massas um sujeito submisso, sensato e “responsável”. (...). Entretanto, as coisas não são tão simples. Investidos do poder legal de representar a classe trabalhadora, os sindicatos são excedidos por sua própria legalidade. Por quê? Simplesmente porque a classe operária não é “representável”: não constitui um corpo – como o eleitorado, por exemplo –, não constitui uma soberania abstrata – como a nação ou o povo –, é uma classe que conduz a luta de classes. Sua existência de classe é “extralegal”, “inapreensível”. Ela não pertence a “ninguém”, senão a ela mesma, ou a sua própria liberdade (EDELMAN, 2016, pp. 111-112).O problema da representação sindical no Brasil é especialmente sensível porque, como já constatado em outra oportunidade (BATISTA, 2012, pp. 245-255) ocorre em um duplo nível. Além de o sindicato, por si só, operar por meio de dirigentes eleitos, atraindo o problema apontado por Edelman de buscar adequar ao esquema burguês de representação a classe operária, que não é passível de tal submissão, o sistema de exclusividade de representação organizado em torno do sindicato único por categoria pressupõe a existência de uma configuração uniforme dos membros de tal categoria. Embora esta questão não se coloque da mesma maneira na França, Edelman também debruçou-se sobre ela ao investigar as restrições impostas pelo Poder Judiciário francês à prática de atividades políticas no seio da empresa. Sua percepção elucida o que se encontra por trás da exclusividade de representação da categoria:Isso quer dizer que, do ponto de vista da empresa, a comunidade de trabalhadores é uma comunidade “social”, cuja homogeneidade encontraria seu sentido no humano. Isso quer dizer também que a empresa capitalista aparece como o único lugar onde os homens são ligados pelo humano, o único lugar onde não se opera nenhuma discriminação, já que o trabalho torna os homens iguais; portanto, o único lugar onde eles realizam sua liberdade de trabalhador (EDELMAN, 2016, p. 96).É claro que há um sentido para que a crítica do autor francês, debruçando-se a tema diverso, caiba tão perfeitamente à exclusividade de representação do direito sindical brasileiro. Em nenhum dos casos, não se está diante de um ato de vontade arbitrário do Estado, mas de uma disposição essencial da própria função do direito na ordem capitalista, em seu duplo viés de mascarar a exploração do trabalho e assegurar a continuidade da reprodução. Revelando o pano de fundo desta elaboração, Edelman profere algumas de suas mais fortes palavras:Apenas a ordem jurídica coloca, concretamente, o homem no lugar das classes, o “trabalho” no lugar da força de trabalho, o salário no lugar do mais-valor; apenas a ordem jurídica considera a exploração do homem pelo homem o produto de um livre contrato, o exercício da liberdade; e somente ela considera o Estado de classe a expressão da “vontade geral” (EDELMAN, 2016, p. 87).Eis a questão da representação sindical descortinada. O assim chamado “interesse da categoria”, tido como dado e, por isso, considerado unitário, é tratado juridicamente na mesma chave rousseauniana de uma vontade geral da nação que moveria a atuação do Estado. Se, entretanto, seria cabível imaginar que a política seja a forma adequada de encontrar a vontade geral em meio à multiplicidade de vontades no Estado como pensado por Rousseau, o mesmo não se dá em relação à categoria profissional – colocando-se a questão nestes termos apenas para dialogar com o aspecto normativo do direito brasileiro, já que Edelman entende que o raciocínio estende-se à classe operária de forma geral – em que a política não teria espaço, reeditando-se na organização sindical a separação entre Estado e sociedade civil na forma de uma oposição entre o âmbito profissional e o âmbito político:Os juristas forjaram uma arma extremamente eficaz: o trabalho, dizem, é profissional. À primeira vista, o termo parece bem anódino, e é antes uma tautologia. Não se deixem enganar: ele exprime, de fato e apesar das aparências, a própria estrutura do poder político burguês. Com efeito, quando dizemos que o trabalho é profissional, exprimimos a simples ideia de que ele se manifesta numa relação estritamente privada. E exprimimos também essa outra ideia de que, por esse motivo, ele não tem nada a ver com a política. Aqui, profissional se opõe ao político. O resultado é que a noção de trabalho está ela própria sujeita a uma distinção tão velha quanto a burguesia, a uma distinção da constituição do poder político burguês, a saber, a distinção sociedade civil/Estado (EDELMAN, 2016, p. 48).O principal efeito dessa separação entre âmbito profissional – em que estão colocadas as relações de classe entre capital e trabalho – e âmbito político – em que não há coletivos, mas cidadãos operando enquanto indivíduos perante o Estado – é o mascaramento do caráter de classe do Estado, que, no modo de produção capitalista, assume a aparência de um terceiro imparcial que media a relação entre as classes (MASCARO, 2013). Assim, o capital pode, ao mesmo tempo em que exerce sua dominação por meio do conjunto de aparelhos de Estado, colocar-se no nível das aparências como mais um ator da disputa de interesses que ali se trava, exclusivamente por meio dos indivíduos que o personificam, os capitalistas. Na fina ironia que caracteriza a obra de Edelman, lê-se uma formulação poderosa desta questão:Lindo, não? O capital não é “responsável” por sua política, não é “responsável” por “seu” Estado! De um lado, a extorsão de mais-valor, de outro, o Estado, e se pode ver, concretamente, a eficácia da separação sociedade civil/Estado (EDELMAN, 2016, p. 52).Ou, de forma ainda mais sintética: “Em nome do direito, os trabalhadores não podem vincular sua luta contra o capital a sua luta contra o Estado” (EDELMAN, 2016, p. 57).A separação, por assim dizer, “filosófica” entre o profissional e o político desemboca, do ponto de vista prático, em trabalho que, na França como no Brasil, foi elaborado pela reiteração de decisões judiciais tratando dos limites de conteúdo a animar o exercício do direito de greve. Tais limites passam por diversos aspectos. No Brasil, tem ganhado proeminência em tempos recentes a questão do atendimento às necessidade inadiáveis da comunidade em caso de greve em serviços essenciais, nos termos definidos pelos artigos 9º, § 1º, da Constituição, e 10 e 11 da Lei nº 7.783/89, tema este abordado apenas de passagem por Edelman, quando registra que o prejuízo inerentemente causado pela greve é um dos pontos a ser levado em conta na discussão de sua contratualização promovida pelo direito. Edelman aponta, a esse respeito, a moralização inerente à imposição de limites materiais ao exercício da greve[10].Uma das principais preocupações de Edelman no que tange aos limites do direito de greve é a possibilidade do uso deste meio de ação sindical em defesa de interesses políticos. O problema também se coloca aqui no Brasil, tendo sido inclusive objeto de recente pesquisa de pós-graduação (BABOIN, 2013) que aponta por aqui fenômeno semelhante ao descrito por Edelman: a construção jurisprudencial de um conceito de direito de greve, moldado na forja da oposição entre profissional e político, que exclui por si só qualquer pauta de reivindicações que extrapole a relação imediata entre capital e trabalho e o conteúdo do contrato de trabalho peculiar aos grevistas. Confira-se:No interior mesmo do direito de greve, o trabalho dos tribunais traçou as linhas demarcatórias que lhe permitem tê-lo bem na mão. Releia o leitor o acórdão da Corte de Cassação: o direito de greve é uma “modalidade de defesa dos interesses profissionais”. Está tudo aí. Isso permitirá distinguir as greves lícitas – entenda-se aquelas que respondem à defesa dos interesses profissionais, isto é, que têm em vista apenas uma melhoria das cláusulas do contrato de trabalho (salário, condições de trabalho etc.) – das greves ilícitas ou abusivas – entenda-se aquelas que excedem o bom funcionamento do contrato de trabalho, as greves políticas, ditas “políticas” (EDELMAN, 2016, p. 42-43).A consequência jurídica de uma greve ser tida como política e, portanto, ilícita ou abusiva, é bastante simples: o peso da força do Estado se abate contra o movimento operário. O aparelho repressivo será movimentado e recolocará tudo em seu devido lugar, como convém ao direito, de modo geral. Por isso, interessam mais de perto a Edelman, e também às reflexões deste texto, as consequências teóricas do eventual aspecto político de uma greve. Como se verá, este debate recolocará a questão com que foi aberta esta seção, demonstrando o limite, bastante estreito, das possibilidades de legalização da classe operária.E a greve política? Muito simples. Uma vez que a greve é usada para fins de poder, ela se torna política. Em poucas palavras, a classe operária “não tem o direito” de usar seu poder fora dos limites da legalidade burguesa, que é, evidentemente, a expressão do poder de classe da burguesia. Como podemos ver, não se trata mais, de modo algum de um conflito de direito. Trata-se de luta de classes: de um lado, o direito, inclusive o direito de greve; de outro, o “fato” das massas, isto é, a greve; de um lado, um poder legal; de outro, um poder bruto, elementar, inorganizado (EDELMAN, 2016, p. 56).A greve política, portanto, devolve à classe operária seu caráter “de fato”, seu aspecto de “massa”, sua desorganização. Retira-a do direito, em que foi mutilada, para colocá-la de volta a seu lugar de origem: a luta de classes. Outro fenômeno que voltou a ocupar a pauta de preocupações do movimento de trabalhadores, recentemente apresenta um desafio ainda maior ao direito: a questão das greves conduzidas espontaneamente a partir da base, sem a participação dos sindicatos, que Edelman apelida de greves selvagens (2016, p. 116). Sua preocupação com este tema assume, também, um tom premonitório, antecipando o problema em que se enredam hoje os tribunais brasileiros. Em termos althusserianos: como interpelar o grevista não organizado em sindicato como sujeito? Em termos jurídicos: quem representa a coletividade de trabalhadores em greve? A tática tem animado o movimento de trabalhadores brasileiro desde o bem sucedido movimento grevista dos trabalhadores de limpeza urbana do Rio de Janeiro, em março de 2014, em razão da catatonia que atingiu os operadores do direito que, atônitos, ainda não sabem como reagir ao fenômeno.Muito ao contrário de se animar com as greves selvagens, Edelman identifica que o descolamento entre base e representação sindical é o que permite que a classe burguesa atue para dividir a classe operária, incentivando parte dos trabalhadores a não aderir ao movimento e, com isso, enfraquecendo-o. Sua sentença, embora controversa, é categórica: “Ora, uma representação sindical de todos os grevistas derrotaria essa tática” (EDELMAN, 2016, p. 117).5. A recuperação das ilusões perdidasEdelman encerra sua obra fazendo a ponte para o jamais desenvolvido tratamento da legalização da classe operária sob a perspectiva do Estado - que constaria de volume posterior da obra que, como vimos, nunca veio à lume. Ele atribui à conclusão o título de “ilusões perdidas”. Parafraseando-o, este texto será encerrado com outra leitura sobre a atualidade de sua obra, que buscará transbordar suas poucas indicações sobre a direção do tratamento da questão do Estado para refletir um fenômeno recente e bastante relevante no Brasil: a multiplicação de movimentos sociais reivindicativos de direitos.Antes de tudo, é importante observar que os movimentos sociais reivindicativos de direitos vêem recair sobre si várias das estratégias de legalização discutidas por Edelman em seu texto. Para ficar em apenas dois exemplos, pode-se observar como o Movimento Passe Livre, embora difuso e horizontal, é interpelado pelo Estado a tornar-se sujeito de direito por meio da submissão à estapafúrdia obrigatoriedade de informar previamente à polícia o trajeto de suas manifestações, sujeitando-se à severa repressão policial em caso de recusa ou de alteração imprevista do trajeto; ou a recente declaração do Governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, que buscava desqualificar o movimento de ocupação de escolas por estudantes secundaristas com a observação de que seu movimento apresentava “nítido cunho político”. Assim, bastaria aplicar ipsis litteris as ideias da obra a tais realidades, para constatar que tudo faz parte de uma mesma luta de classes, empreendida com as mesmas armas pelo lado da burguesia e do Estado. É possível, entretanto, ir além da pura e simples justaposição das reflexões sobre os sindicatos aos movimentos sociais reivindicativos.É que está cada vez mais claro que tais movimentos recuperaram as duas ilusões mencionadas por Edelman: a ilusão da existência da classe operária – em tempos de discursos “pós-modernos” que apontam o fim da luta de classes, os integrantes de movimentos sociais que constituem uma das últimas trincheiras de resistência capitularam apenas parcialmente ao se crerem a expressão contemporânea do que é a classe trabalhadora – e a ilusão jurídica, “a crença obstinada de que a liberdade se transforma em direitos” (EDELMAN, 2016, p. 149). É essa recuperação das ilusões que coloca duas questões, diferentes mas complementares, que se relacionam diretamente com a conclusão de Edelman e demonstram a manutenção de sua importância: as tais ilusões mantêm seu caráter ilusório mesmo após serem contemporaneamente retomadas? É negativo que tais ilusões sejam retomadas?A resposta, a partir de Edelman, parece ser afirmativa para ambas as questões.Quanto à primeira, basta retomar seu já mencionado prefácio, em que sustenta que “minha decodificação jurídica da realidade político-econômica conservou todo o seu valor” (EDELMAN, 2016, p. 10). Seria possível acrescentar que esta decodificação não somente conservou seu valor como o conservará enquanto a humanidade viver sob a égide do modo de produção capitalista. Isso significa que a ilusão da existência da classe operária não perde seu caráter ilusório nesta retomada, antes o aprofunda. A pulverização dos movimentos sociais em pautas específicas, normalmente orientadas em torno do acesso a bens como saúde, educação, moradia, transporte etc., afasta ainda mais a possibilidade de existência concreta da classe operária – que jamais operará como classe enquanto estiver organizada em torno de demandas tão restritas – e sua aparência de existência, consubstanciada nesta já consagrada expressão, sempre utilizada no plural, “movimentos sociais”. Ao lado da ilusão da existência de uma “classe trabalhadora” onde operar a legalidade burguesa, é possível antever a ilusão da existência de um “movimento negro” ou de “um movimento feminista” e assim por diante. Aliás, é difícil constatar mesmo, se a legalidade burguesa continuar a reger os fatos, a noção do que seja negro ou do que seja gênero – na medida em que a raça e o gênero, por exemplo, têm a sua conformação indicada por este sistema legal. De certa forma e de maneira premonitória, este fato se emerge, através do espelho, da frase que encerra “A legalização da classe operária” de Bernard Edelman.A segunda questão, especialmente no que toca à retomada da ilusão jurídica já havia sido objeto de reflexão crítica de Edelman: “Este é o sonho da burguesia: um capitalismo garantido de uma vez por todas pelo direito. Este é também o sonho de um certo ‘socialismo’: um socialismo de uma vez por todas garantido pelo direito” (EDELMAN, 2016, p. 61)[11]. A retomada da ilusão jurídica parece fazer bastante sentido num momento histórico em que uma terceira ilusão, não abordada por Edelman, vem sendo perdida: a ilusão da transformação social revolucionária.Duas advertências de Edelman parecem ter sido escritas para serem lidas pelos movimentos sociais de quatro décadas mais tarde. De um lado, sua crítica pontual e poderosa, derivada de Lênin, à reivindicação de direitos como estratégia da classe operária: “Hegemonia burguesa, isso sim, pois, uma vez que a ‘liberdade’ se transforma em direitos, esses direitos são reapropriados no sistema dos espaços” (EDELMAN, 2016, p. 150).Sua segunda advertência é bem mais profunda. Antes mesmo que ela fosse cogitada, coloca em xeque a recuperação das ilusões perdidas como horizonte estratégico da atuação da classe operária na luta de classes e aponta o caráter revolucionário da perda de tais ilusões. Sua colocação como palavras finais deste texto deve ter muito menos o sentido de uma citação e muito mais o sentido de sua nova enunciação com a mesma força, mas em um outro momento político e jurídico. São também essas palavras que parecem demonstrar que, ao contrário do que possa sugerir uma leitura apressada, seu prefácio à tradução não representa uma negação de suas convicções, mas uma sólida manifestação de sua revolucionária desilusão:O fim da grande mitologia política se anuncia no horizonte. A “esquerda” está morta, seguindo de perto o “socialismo”. Nossa herança foi dilapidada. As velhas aspirações políticas estão morrendo. Quem lamentaria? As doenças do marxismo devoraram a si mesmas, e o marxismo hoje, e talvez pela primeira vez, pode ser liberado de seu triunfalismo. E o “impossível” revolucionário, o impossível de todas as revoluções, pode começar a nascer de nossas ilusões perdidas (EDELMAN, 2016, p. 147).Referências bibliográficasABRAMO, Laís. O resgate da dignidade: Greve metalúrgica e subjetividade operária. São Paulo: Imprensa Oficial; Campinas: Unicamp, 1999.AKAMINE Jr., Oswaldo; KASHIURA Jr., Celso; MELLO, Tarso de (org.). Para a crítica do direito – reflexões sobre teorias e práticas jurídicas. São Paulo: Outras Expressões/Editorial Dobra, 2015.ALTHUSSER, L. Posições I. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.______.Sur la reproduction. Paris: Presses Universitaires de France, 1995.ANTUNES, Ricardo. A rebeldia do trabalho: o confronto operário no ABC paulista: as greves de 1978-80. São Paulo: Ensaio; Campinas: Unicamp, 1988.BABOIN, José Carlos de Carvalho. O tratamento jurisprudencial da greve política no Brasil. Dissertação (mestrado). São Paulo: USP, 2013.BATISTA, Flávio Roberto. Sujeito de direito, indivíduo e coletividade: apontamentos críticos sobre o princípio da autonomia privada coletiva no direito sindical. In: FURLAN, Valéria (org.). Sujeito no direito: história e perspectivas para o século XXI. Curitiba: CRV, 2012, p. 245-255.BIONDI, Pablo. Dos direitos sociais aos direitos de solidariedade: elementos para uma crítica. São Paulo : Ed. LTr, no prelo.BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Direito sindical. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2009.CORREGLIANO, Danilo Uler. O sistema de controle judicial do movimento grevista no Brasil: da greve dos petroleiros em 1995 aos dias atuais. Dissertação (mestrado). São Paulo: USP, 2013.CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Que fazer. In ANDRADE, José Maria Arruda de; COSTA, José Augusto Fontoura, MATSUO, Alexandra Mery Hansen (org.). Direito: teoria e experiência - estudos em homenagem a Eros Roberto Grau. Tomo I. São Paulo: Ed. Malheiros, 2013, p. 530/560.EDELMAN, B.A legalização da classe operária. Tradução de Flávio Roberto Batista, Jorge Luiz Souto Maior, Marcus Orione Gonçalves Correia e Pablo Biondi. São Paulo: Boitempo, 2016.______.Le droit saisi par la photographie: élements pour une théorie marxiste du droit. Paris: Flammarion, 2001.ENGELS, F.; KAUTSKY, K. Osocialismo jurídico. Tradução de Lívia Cotrim e Márcio Bilharinho Naves. São Paulo: Boitempo, 2012.FURLAN, Valéria (org.). Sujeito no direito: história e perspectivas para o século XXI. Curitiba: CRV, 2012, p. 245-255.LÊNIN, V.Que fazer? Problemas candentes de nosso movimento. Tradução de Marcelo Braz. São Paulo: Expressão Popular, 2010.MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. 2.ª ed.. Tradução de Florestan Fernandes. São Paulo: Expressão popular, 2008.MATTOS, Marcelo Badaró. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2009.MASCARO, Alysson Leandro Barbate. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.________. Pachukanis e Stutchka: o direito, entre o poder e o capital. In: NAVES, M. (org.). O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis. Campinas: Unicamp, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2009.MIAILLE, M. Introdução crítica ao Direito. 3.ª ed.. Tradução de Ana Prata. Lisboa: Estampa, 2005.______. L'État du droit: introduction à une critique du droit constitutionnel. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 1980.NAVES, M. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões; Dobra, 2014.PACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo. Tradução de Silvio Donizete Chagas. São Paulo: Acadêmica, 1988.STUCKA, P. Direito e luta de classes: teoria geral do direito. Tradução de Silvio Donizete Chagas. São Paulo: Acadêmica, 1988.[1] Os autores são tradutores da obra de Bernard Edelman, “A legalização da classe operária” (Editora Boitempo, 2016) e, com exceção de Pablo Biondi, que é Doutor em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP, são professores da Faculdade de Direito da USP.[2]“O direito é forma que vai se sofisticando na medida em que se separa das outras manifestações da humanidade, como, por exemplo, a religião. Assim, por exemplo, em períodos mais remotos da humanidade, quando o direito não tinha a mesma função atual (...), a sua convergência com a noção de religião era muito mais comum. Por exemplo: nos primórdios, o sistema de provas era determinado pelo chefe religioso. Aliás, sequer havia o que se provar se o deus/homem que governasse determinasse a solução do conflito, prescindindo até mesmo de provas. Em momento posterior, as ordálias ou juízos de deus eram também um bom exemplo de como a prova estava (...) ligada à questão religiosa. Aquele que ultrapassasse as limitações impostas (como passar incólume por um chão de brasas, por exemplo) contava com a aquiescência divina, já que a verdade estaria ao seu lado. Com o tempo, admitiu-se o sistema de prova legal (...), (que) corresponde a uma necessidade do nascituro capitalismo, envolvido com a ideia liberal da legalidade em seu sentido estrito. “ (CORREIA, 2013, p. 556).[3] Em 1938, a pretexto do assassinato de Kirov, um quadro do partido bolchevique, desencadeou-se na URSS uma onde de perseguições contra antigos militantes do partido, e que consistiu num recrudescimento da burocratização e da repressão política que assolavam o país desde o final da década de 1920. Figuras históricas do partido bolchevique como Kamenev, Zinoviev, Bukharin e muitas outras foram forçadas a confessarem crimes que não cometeram, o que resultou em sua condenação e execução - muitos desses, inclusive, haviam integrado blocos com Stalin antes de serem renegados. A maioria da antiga direção bolchevique foi fisicamente eliminada nos Processos de Moscou. Trotsky foi condenado, mas se encontrava no exílio. Em 1940, foi assassinado por um agente da GPU.[4] Todas as citações de obras em idioma estrangeiro serão traduzidas por nós livremente.[5] A esse respeito, é interessante notar que o original em francês trazia como subtítulo a indicação “Tomo I”, sugerindo que haveria continuidade da obra em outros tomos, que, entretanto, jamais vieram a existir. A leitura do prefácio à edição brasileira é bastante elucidativa das razões de tal abandono, já que a rejeição à obra foi bastante frustrante ao autor, que a viu realizar-se anos mais tarde, como se pode verificar na transcrição que segue.[6]“Os instrumentos já estavam dados pela própria CLT, que facultava ao Ministério do Trabalho o poder de intervir nas entidades sindicais, destituindo diretorias eleitas e substituindo-as por interventores. (...). A cassação dos direitos políticos e a instauração de inquéritos policiais militares contra os principais dirigentes sindicais cassados criaram, para os que conseguiram escapar à prisão imediata, a alternativa da clandestinidade e do exílio. (...). Após nova leva de intervenções, a ditadura, em inícios dos anos 1970, tratou de valorizar um ‘novo’ modelo de atuação sindical, pautado pela ação exclusivamente assistencial e afinado com as ideias de crescimento econômico como pré-requisito para uma posterior política redistributiva” (MATTOS, 2009, pp. 101-111).[7]“A redemocratização do país, com a aprovação da Constituição de 1988 e as eleições presidenciais de 1989 encerra, em certo sentido, a ‘era’ do novo sindicalismo brasileiro. O fim do controle do Ministério do Trabalho sobre os sindicatos, do ‘estatuto-padrão’ e da proibição de sindicalização do funcionalismo público foram conquistas inscritas naquela carta. Porém, a manutenção da unicidade sindical, do monopólio da representação, do imposto sindical e do poder normativo da Justiça do Trabalho indicou que o programa do novo sindicalismo não se concretizou completamente na legislação, pois a estrutura oficial, com a herança corporativista, continuou pesando” (MATTOS, 2009, p. 125).[8]“No entanto, teremos de nos dar conta um dia de que a hegemonia burguesa somente triunfa por seu recorte social, que lhe permite governar por aparelhos interpostos” (EDELMAN, 2016, p. 148).[9]Nesse contexto, é importante apontar que Edelman vê nos sindicatos instrumentos de colaboração entre as classes e não de luta: “Dito de outro modo, quanto mais fora o sindicato está de sua base, mais ele é descentrado das lutas, mais escapa da ‘espontaneidade’ operária e mais é eficaz. A institucionalização da negociação supõe uma ‘máquina’ sindical ‘concentrada’ no mesmo modo da concentração estatal ou capitalista. (...). Quando substituímos a luta de classes por uma negociação, conduzida por um ‘poder’ concretizado em aparelhos que funcionam com base na representação, na hierarquia, na disciplina, não há dúvida de que estamos em plena colaboração de classe” (EDELMAN, 2016, p. 140).[10]Esta moralização é pressuposta ao conceito do direito brasileiro de necessidade inadiável da comunidade, uma repaginação sindical do antigo brocardo romano alterum non laedere. Edelman também percebeu essa relação entre os modelos de comportamento pressupostos no direito de forma bastante perspicaz: “A luta de classes, de acordo, mas ‘com lealdade’. Como se a luta de classes fosse leal! E o que é a ‘lealdade’? A ideologia contratual, a boa-fé, o respeito das convenções etc. É por isso que o operário não deve aproveitar-se de sua posição na produção para trapacear patrão. Não. Ele deve comportar-se como um parceiro responsável, ‘fair play’. (...). O ‘grevista normal’ é a tradução ‘ousada’ do ‘bom pai de família’, e eis aí a moral burguesa transferida para o direito de greve!” (EDELMAN, 2016, p. 44). Como nota de curiosidade, não é incomum encontrar em manuais didáticos destinados ao ensino do direito sindical a informação de que os sindicatos carregariam uma “função ética” (BRITO FILHO, 2009, p. 140).[11]Muito ilustrativo de tal situação é o mote utilizado recentemente por uma manifestação de rua que aglutinou diversos movimentos sociais: “Contra a direita, por mais direitos”.

Entre a toga e a Constituição

João Batista Damasceno"A independência judicial, com atuação dos juízes pautada pela ordem jurídica, é garantia para a sociedade; não é privilégio que os coloca acima do bem e do mal. A pior das ditaduras é a do Judiciário, pois nelas não se tem a quem recorrer. De um juiz se espera que respeite o ordenamento jurídico. Um cirurgião que sonega Imposto de Renda pode continuar sendo um grande médico, diferentemente de um juiz. Por isso, juízes não podem defender, em nome do corporativismo, o arbítrio judicial, a ascensão do fascismo, a supressão das garantias constitucionais e o sacrifício de direitos fundamentais".A independência judicial, com atuação dos juízes pautada pela ordem jurídica, é garantia para a sociedade; não é privilégio que os coloca acima do bem e do mal. A pior das ditaduras é a do Judiciário, pois nelas não se tem a quem recorrer. De um juiz se espera que respeite o ordenamento jurídico. Um cirurgião que sonega Imposto de Renda pode continuar sendo um grande médico, diferentemente de um juiz. Por isso, juízes não podem defender, em nome do corporativismo, o arbítrio judicial, a ascensão do fascismo, a supressão das garantias constitucionais e o sacrifício de direitos fundamentais.Dispõe a Constituição que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente. Na periferia das grandes cidades, o direito de ir e vir é constantemente violado com prisões para averiguação. Neste contexto de violação à Constituição, comentaristas televisivos justificam arbitrariedades. Mas anterior atuação marginal ao sistema legal não é fundamento justo para novas marginalidades. Praças podem ser brutalizados para executar política de extermínio de direitos e de vidas, na crença de que estão lutando contra o mal. Mas juízes devem saber que são guardiães da legalidade, marco civilizatório que nos distingue da barbárie.O editorial do jornal ‘O Globo’ de 22 de outubro de 1965 dizia que “Não pode haver um Executivo pró-revolucionário, um Legislativo variante e um Judiciário neutro quando é a continuidade da Revolução que está em jogo. Os três Poderes, no que for essencial à Revolução, devem marchar juntos. Não se alcançará o objetivo, que tem que ser comum, sem que todos caminhem num só sentido. A direção quem dá é o presidente Castello Branco, expressão política da Revolução e seu único e autorizado intérprete”. Alguns juízes aderiram ao golpe empresarial-militar e lucraram. Outros preferiram o difícil papel de intérpretes independentes da Constituição, para garantia da cidadania, e foram perseguidos ou cassados. O obscurantismo se alastrou e, com eles, os lucros das empresas de comunicação. De juízes há de esperar que atuem como contrapoder, em prol da sociedade e dos cidadãos, e não como parceiros do Estado Policial, que já dispõe de força suficiente para atrocidades. Entre a toga e a Constituição eu fico com a Constituição!João Batista Damasceno é cientista político, juiz de direito no TJ/RJ e membro da AJD.Texto publicado originariamente no jornal O DIA, em 13/03/2016, pag. 18. Link: http://odia.ig.com.br/opiniao/2016-03-13/joao-batista-damasceno-entre-a-toga-e-a-constituicao.html

Equiparação salarial – diferença de dois anos

Rafael da Silva MarquesO que se discute neste breve ensaio é se a diferença superior a dois anos constante do artigo 461, parágrafo primeiro, da CLT, foi ou não recepcionada pela CF/88. Para tanto, serão analisados além dos dispositivos constitucionais sobre o tema, a declaração de direitos fundamentais da OIT e a convenção 100 da mesma instituição internacional.O artigo 7o, XXX, da Constituição brasileira de 1988 consagra a impossibilidade de discriminação salarial. Este é o primeiro parâmetro.Esta norma, como se pode ver, concretiza o princípio de igual trabalho e igual salário, e não faz qualquer referência a um limitador temporal. É por isso que, em princípio, a partir de 05 de outubro de 1988, não haveria mais fundamento legal para se entender cabível os dois anos na função como justificadores da diferença de salário.Deve-se ter em mente, a fim de reforçar este argumento, que a norma constitucional que consagra este direito fundamental, serve justamente para incentivar que as empresas, uma vez querendo bem remunerar determinado empregado, adotem um sistema de plano de cargos e salários, este sim, atribuindo funções distintas e critérios objetivos de promoção por exemplo. De outro lado, podem as empresas, por regulamento, estabelecerem adicionais por tempo de serviço, o que remuneraria maior tempo de empresa. Ou ainda, por convênio coletivo, consagrado justamente no artigo 7o, XXVI, da CF/88, teriam a possibilidade de estabelecer adicional por tempo de serviço, premiando os empregados com mais tempo de empresa.De outro lado, é princípio de direito fundamental da Organização Internacional do Trabalho, item 2, “d”, a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação, norma esta que entrou no ordenamento jurídico brasileiro quando da Conferência 86o da OIT, o fazendo independentemente de ratificação, conforme item 2, cabeça, da declaração da OIT sobre princípios e direitos fundamentais no trabalho[1].Ainda, é bom não perder de vista que pelo Decreto Legislativo n. 24, de 29.5.56[2], o Brasil ratificou a Convenção número 100 da OIT, norma esta que determina a igualdade de remuneração entre homens e mulheres, além da igualdade remuneratória no caso de trabalho de igual valor. Note-se que esta norma não prevê a possibilidade da diferença salarial entre o trabalhador e o paradigma por questão temporal ou mesmo por tempo de empresa ou função, ao contrário do que preceitua o artigo 461, parágrafo primeiro, da CLT. Inclusive, para confirmar o que está dito aqui, Marín Valverde, Rodriguez-Sañudo Gutiérres e García Murcia aduzem que as normas da Convenção número 100 da OIT consagram e visam à concretizar, no mundo fático, a igualdade de salário para os casos de igual trabalho.[3] A Convenção 100 da OIT estaria, portanto, em consonância com o que preceitua a CF/88, artigo 7o, XXX, devendo ser aplicada aos casos em que envolvem a equiparação salarial.É de bom grado se dê destaque ao fato de que o artigo 7o, cabeça, da CF/88, norma/princípio também de interpretação, e que vincula igualmente o poder judiciário, exige a melhoria da condição social dos trabalhadores não apenas quando da elaboração da lei mas da interpretação dela, consagrando a cláusula do não-retrocesso em matéria trabalhista. Isto quer dizer que a interpretação possível, hoje, do artigo 461, parágrafo primeiro, da CLT seria aquela que afasta a aplicação da diferença de dois anos, por não possuir ela, após o advento da Constituição de 1988, respaldo constitucional. Antes pelo contrário, consagra a possibilidade de discriminação em matéria de salário, o que fere os artigos 7o, XXX, da CF/88, artigo 2.1 da Convenção n. 100 da OIT e artigo 2, “d”, da declaração da OIT sobre princípios e direitos fundamentais no trabalho.Pelo que está dito supra, creio não ser possível considerar recepcionado pela CF/88 os dois anos constantes do artigo 461 da CLT e que seriam causa impeditiva do direito à equiparação salarial. Até porque há várias formas de se premiar tempo de empresa, todas elas previstas e fortalecidas pela lei e pela Constituição.[1]http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/oit/doc/declaracao_oit_547.pdf- acesso 08 de julho de 2013, às 17h47min.[2] Promulgação: Decreto n. 41.721, de 25.6.57; vigência 25 de abril de 1958.[3]Marín Valverde, Antonio, Rodriguez-Sañudo Gutiérres, Fermin y García Murcia, Joaquín, Derecho del trabalho, Madrid; Técnos, 18º Ed, 2009, p. 150.Rafael da Silva Marques é Juiz do Trabalho e membro da AJD.

As decisões monocráticas nos tribunais e a independência judicial

José Henrique Torres“Cessa tudo que a antiga Musa canta, quando outro valor mais alto se alevanta” (Camões).No próximo dia 27 de janeiro, o Tribunal de Justiça de São Paulo, por seu órgão censor de cúspide, terá mais uma importante oportunidade para reafirmar a independência judicial como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito.Uma Desembargadora, no desempenho de sua função jurisdicional, atuando como Relatora em uma Câmara Criminal, em mais de cinquenta processos, ao constatar que os réus estavam presos, preventivamente, por mais tempo que aquele imposto para o cumprimento da pena infligida na sentença condenatória recorrida, determinou, monocraticamente, a sua soltura imediata. E, por ter assim decidido, está prestes a responder a um processo disciplinar, acusada de ter violado o “princípio da colegialidade”, ou seja, por ter determinado a soltura dos condenados, cautelarmente, sem antes submeter o recurso ao julgamento do colegiado.Certamente, no juízo de libação dessa acusação, o órgão disciplinador do TJSP lembrar-se-á do disposto no artigo 232 de seu Regimento Interno para reconhecer o cabimento de tais decisões monocráticas, pois esse dispositivo normativo afirma, expressamente, que “as medidas assecuratórias previstas no Código de Processo Penal (...), quando urgentes e de manifesto cabimento, serão processadas pelo Relator (...) do recurso pendente de julgamento no Tribunal (...)”. Aliás, não será olvidado, com certeza, que, exatamente com base nesse dispositivo normativo, praticamente todos os dias, são proferidas decisões cautelares monocráticas pelos Relatores de recursos interpostos nesse tribunal, bem como em todos os demais tribunais deste país, sem qualquer alegação de violação ao princípio da colegiabilidade, tanto no âmbito da justiça cível como criminal, ad referendum do colegiado, inclusive para cassar benefícios concedidos aos réus em decisões de primeira instância.E, com a mesma certeza, também será lembrado que, em um Estado Democrático de Direito, aos juízes e juízas cabe zelar pelo império dos direitos fundamentais, pois, “nas sociedades democráticas modernas, submetidas ao império do direito, a proteção dos direitos humanos é tarefa que incumbe ao Poder Judiciário” (Dalmo Dallari, O poder dos juízes). Assim, mesmo que não existisse aquele dispositivo normativo do RI do TJSP, ainda assim caberia ao Relator decidir, monocraticamente, sobre questões urgentes que implicassem violação a direitos humanos. Aliás, inaceitável e merecedora de censura seria a omissão de um magistrado diante da constatação flagrante de uma evidente violação a um direito fundamental. Tal omissão não implicaria mera conivência, mas, sim, cumplicidade com a arbitrariedade. É por isso que o CNJ, no final de 2015, celebrou um convênio com a CIDH, comprometendo-se a implantar a temática de Direitos Humanos nos concursos e cursos de formação dos magistrados brasileiros. Há poucos anos, uma pesquisa nacional com os magistrados brasileiros revelou que apenas 2,7 % deles havia lido, por exemplo, o Pacto de San José da Costa Rica! Isso talvez explique o porquê da resistência dos juízes e juízas à aplicação das normas de direitos humanos, inclusive como fator preponderante de interpretação de nosso sistema jurídico. Decididamente, portanto, será lembrado, nessa histórica sessão disciplinar do TJSP, que a proteção dos Direitos Humanos constitui, sobretudo, um dever de todos os juízes e juízas.Todavia, a questão a ser enfrentada extrapassa o âmbito singelo da aplicabilidade ou não de uma norma regimental interna e é muito maior do que a discussão sobre o acerto, o cabimento ou a oportunidade das decisões de uma Desembargadora Relatora em face do princípio da colegiabilidade.Trata-se, na realidade, de ser garantida ou não a independência judicial, que é uma premissa da jurisdição, não uma prerrogativa dos juízes e juízas, mas um direito do próprio cidadão. A independência judicial é imprescindível para a mantença do Estado Democrático de Direito e não existe como um privilégio, mas para que os juízes e juízas possam ser garantes dos direitos fundamentais. Por isso, comprimir a independência, exigir submissão nos julgamentos ou punir administrativamente pelo exercício do julgar é o que se pode chamar de suicídio na magistratura. É mortal para a democracia retirar do juiz a independência. Esse proceder não afeta apenas o magistrado em sua prerrogativa funcional, mas, sim, e principalmente, o cidadão de quem se subtrai o direito a um foro que possa fazer cumprir e garantir os demais direitos. É por isso que não se pode admitir que qualquer magistrado seja disciplinarmente processado por decisão jurisdicional que tenha regularmente proferido em seu ofício. É preciso repelir qualquer tipo de ameaça de punição ou de exercício de poder censório contra atividade jurisdicional ou qualquer tipo de intimidação a qualquer magistrado por membro de qualquer dos Poderes, inclusive do próprio Judiciário.Aliás, do Manual para o Fortalecimento da Independência e Transparência do Poder Judiciário na América Latina, consta que o seu principal interesse é chamar a atenção sobre a maneira como a distribuição de funções de governo e administração da magistratura pode incidir sobre a independência dos juízes, alertando para o fato de que a concentração de um poder disciplinar excessivo nas cúspides dos tribunais pode recortar a liberdade de julgamento dos juízes e juízas, que, subjugados às esferas disciplinares, podem ser pressionados e deixar de lado a garantia de direitos para decidir conforme as preferências de quem exerce o poder de conduzir a instituição.Cabe ao Poder Judiciário, sim, no âmbito das instâncias jurisdicionais, analisar as decisões proferidas e aferir seus erros e acertos, mas são ilegítimas e descabidas, para tanto, providências de controle administrativo e disciplinar. A independência judicial exige que “o magistrado não estará submetido a pressões de poderes externos à magistratura, mas também implica a segurança de que o juiz não sofrerá pressões dos órgãos colegiados da própria magistratura”.É por isso que a ONU, em seu 7º Congresso, em 1995, ao adotar os princípios básicos relativos à independência judicial, afirmou que (1) “a independência da magistratura será garantida pelo Estado e consagrada na Constituição ou na legislação nacional, pois é dever de todas as instituições, governamentais e outras, respeitar e acatar a independência da magistratura” e (2) que “os juízes devem decidir todos os casos que lhes sejam submetidos com imparcialidade, baseando-se nos fatos e em conformidade com a lei, sem quaisquer restrições e sem quaisquer outras influências, aliciamentos, pressões, ameaças ou intromissões indevidas, sejam diretas ou indiretas, de qualquer setor ou por qualquer motivo”. Como afirma Comparato,“os juízes individualmente e o judiciário como órgão estatal não estão subordinados a nenhum outro poder do Estado, mas vinculam-se, sempre, diretamente, ao povo soberano”, pois a garantia da independência judicial “é um mecanismo de proteção dos poderes públicos destinado a proteger os direitos fundamentais da pessoa humana”.Portanto, é preciso refutar acusações a juízes fincadas em ilegítima pretensão reducionista de cláusulas pétreas constitucionais de garantia da liberdade, evitando-se, assim, que sejam solapados os alicerces do próprio Estado de Direito Democrático e da independência judicial.Em uma sociedade democrática, como esta em que vivemos, é preciso preservar a independência judicial e respeitar o pluralismo, a diversidade de ideias e as divergências, mas, sobretudo, repudiar a punição ao dissenso e repelir a pretensão de se estigmatizar os divergentes com o sinete da subversão ou da indisciplina.Negar a independência judicial e a autonomia dos magistrados, que devem submeter-se, apenas, aos princípios de garantia constitucionais e aos direitos fundamentais, implica sepultar a democracia nas sombras dos ínferos, aniquilando o sentido do próprio Poder Judiciário, pois, sem essas imprescindíveis garantias, a sociedade ficará com as portas escancaradas para o totalitarismo e, em consequência, a própria atividade judicial, guardiã da independência e da liberdade, será anulada.É por isso que, no próximo dia 27 de janeiro, o Tribunal de Justiça de São Paulo, por seu órgão censor de cúpula, terá mais uma importante oportunidade para reafirmar a independência judicial como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito.Afinal, como o inconformismo é sinônimo de esperança, “quero que a justiça reine em meu país” (Milton Nascimento).José Henrique Torres é Juiz de Direito e Professor de Direito Penal e Processual Penal. Foi Presidente da Associação Juízes Para Democracia (AJD).Texto disponível também no site Justificando: http://www.justificando.com/2016/01/26/nesta-semana-tjsp-tera-oportunidade-de-reafirmar-independencia-judicial/

Miseráveis e uma mulher que merece o indulto

Kenarik Boujikian Conheci Cintia pelo papel frio do processo criminal e sua situação de prisão mexe com minhas estruturas de cidadã, mulher e juíza. Final de ano, indulto natalino chegando e mil perguntas rondam minha cabeça: Por que se prende tantas miseráveis? Por que elas se envolvem com crime? Por que este aumento brutal de mulheras presas? Por que se faz de conta que não se sabe das violações diárias do sistema prisional? Por que os juizes pouco aplicam as penas alternativas e muito menos as medidas cautelares que não sejam prisão? Por que não se pensa que a prisão rompe as relações familiares e traz consequências danosas para os filhos das presas? Por que o indulto natalino nunca beneficia as mulheres? Penso que certamente a prisão de Cintia entrou na soma que totaliza 38 mil mulheres presas no Brasil, de um total de 610 mil presos. Entrou no cálculo do crescente encarceramento de mulheres dos últimos 15 anos, que teve aumento de 567% ( Infopen- Mulheres, do Ministério da Justiça), com a indicação que a maioria das mulheres não se envolve em crimes violentos. No processo esta escrito que Cintia é branca. Duas em cada três mulheres presas são negras, desta forma, representam 67% enquanto na população em geral a proporção é de 51%, segundo dados do IBGE. Ela contava com 24 anos, quando foi presa em fevereiro de 2012, portanto jovem, como a maioria das detidas.As mulheres encarceradas de até 29 anos ocupam 50% do ambiente prisional, muito além da mesma faixa etária, fora dos muros. Tal como 70% das mulheres, foi presa por crime sem violência, por crime de tráfico de entorpecente. Em geral, elas são presas com pouca quantidade de droga, embora não tão pouco como Cintia, condenada por apreensão de 0,89 gr de crack, realizada na casa onde morava com um adolescente de quase dezoito anos. A pena dela, que era primária e de bons antecedentes, é de 5 anos de prisão. Recebeu o regime mais rigoroso, o fechado. Sua pena não foi reduzida, tampouco substituida por medida alternativa. As mulheres detidas não têm em suas mãos o grande capital do lucrativo tráfico de drogas . Vejamos: no imóvel onde a apreensão ocorreu, encontraram verdadeira fortuna!: 1 cédula de 50 reais; 8 moedas de 10 centavos; 4 moedas de 5 centavos; 3 moedas de 25 centavos; 1 moeda de 50 centavos; 1 moeda de 1 real; 9 cédulas de 2 reais; 7 cédulas de 5 reais e 1 cédula de 20 reais!!!! Ainda, a polícia registrou em sua vida pregressa, que ela não possuía carro e nem depósito em bancos, a casa dela era de moradia popular e ela dava suporte econômico para a única filha. Será que a população sabe que aqueles que estão do topo da cadeia do crime de tráfico, muitos conluiados com agentes do Estado, estão usufruindo o alto rendimento do tráfico de entorpecente e apenas os miseráveis é que estão nas cadeias? E prisão tem custo altíssimo. O Estado já gastou mais de 100 mil reais com a prisão de Cintia, cálculo à vista do tempo que ela esta presa, já que em média cada preso tem o custo mensal de cerca de três salários minimos ( não quer dizer que diretamente com a pessoa). Como a maioria das mulheres presas ( 70/80%), ela tinha uma filha a quem socorria e de que dela dependia. Não sei o seu nome e como ela é. Estava com quatro anos de idade e nesta altura já tem cerca de 7 anos e meio. Não tenho idéia de quantas visitas ela recebeu, mas se ela for como a maioria das encarceradas, pouquisimas. O Ministro da Justiça descreveu recentemente a situação de injustiça das prisões brasileiras. O STF, em processo recente apontou verdadeiro "estado de coisas inconstitucional" e reconheceu um quadro insuportável e permanente de violação de direitos fundamentais . O Ministério da Justiça e o Conselho Nacional de Justiça assinaram em 2015, acordos em razão do excessivo aprisionamento . É necessário que as palavras partam para a concretude. É premente dar respostas para ao menos minorar o catastrófico encarceramento feminino. Isto pode ser feito, neste final de ano, através do indulto, que deve considerar a realidade das mulheres encarceradas. Vários países já adotam medidas diferenciadas em relação ao encarceramento de mulheres, como recomendado pela ONU e OEA, pois esta prisão, segundo estudos realizados, reflete de modo muito mais significativo nas relações sociais e familiares. O presidente dos EUA, Obama, está antecipando a soltura de milhares de presos detidos por drogas. É preciso, como disse Florizelle O’Connor, rever nossos conceitos de crime, castigo e Justiça e este três pilares que se conectam, estão intimamente ligados ao meu ser de cidadã, mulher e juiza, razão pela qual penso que urge que a presidenta Dilma, usando do seu mandamento constitucional, trate do indulto deste ano, com respeito às especificidades de gênero e que enfim, Cintia seja indultada, assim como outras mulheres, que como a da fotografia, estão esperando que olhem para elas.Kenarik Boujikian, magistrada do Tribunal de Justiça de São Paulo, cofundadora da Associação Juizes para a Democracia e membro do Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas

GUARDA COMPARTILHADA: o princípio da igualdade dos cônjuges na inteligência do inciso V do artigo 1.634 do Código Civil

André Felipe A. C. TredinnickRESUMO A guarda compartilhada, regra no sistema jurídico vigente, implica em profunda possibilidade de modificação do paradigma da guarda unilateral, herança do sistema patriarcal do Código Civil de 1.916, e perpassa a questão de gênero. Historicamente, o modelo da guarda unilateral implicava na sua atribuição à genitora, via de regra. Atualmente, a guarda compartilhada, modelo de compartilhamento de responsabilidades, em igualdade de atribuições dos genitores no exercício do seu dever, mesmo sendo a regra vigente, é aplicada de forma extremamente reduzida. Do princípio da igualdade entre os genitores decorre a regra de que a escolha do domicílio dos filhos deva atender ao melhor interesse da criança. Daí que a fixação do domicílio dos filhos não está atrelada à autorização do outro cônjuge, na melhor inteligência do inciso V do artigo 1.634 do Código Civil. Palavras-Chave: guarda compartilhada. Princípio da igualdade dos cônjuges. Gênero. Domicílio dos filhos. ABSTRACT The joint custody, rule in the existing legal system, implies profound opportunity to change the paradigm of unilateral guard, the patriarchal system heritage of the Civil Code of 1916, and goes beyond the issue of gender. Historically, the model implied the sole custody was awarded to the mothers', as a rule. Currently, joint custody, responsibility-sharing model, with equal responsibilities of parents in the exercise of his duty, even though the existing rule is applied extremely reduced. The principle of equality between parents arises the rule that the choice of the place of residence of the children should meet the best interests of the child. Hence the domicile of children is not linked to the authorization of the other spouse, the best intelligence of item V of article 1,634 of the Civil Code. Keywords: shared custody. Principle of equality of the spouses. Genus. Residence of the children. 1. Conceito, gênese e posicionamento jurídico da questão. O termo “guarda” é empregado em nosso direito para designar o feixe de relações nas quais os pais têm o dever de conviver, cuidar e manter os seus filhos em um ambiente afetuoso até que atinjam a idade adulta.Enquanto o casal mantém a relação conjugal, a guarda é exercida juridicamente por ambos[1]. Na separação parental, a regra é que a guarda dos filhos remanescerá no espectro dos deveres e obrigações de ambos, em um patamar de corresponsabilidade e diálogo, modalidade que inova em nosso sistema[2].Daí que podemos definir a guarda compartilhada como forma do exercício da guarda dos filhos do casal pela qual ambos os pais detém a representação legal dos filhos e têm de tomar decisões conjuntas sobre o destino dos mesmos, de modo a permitir que os filhos usufruam ampla convivência com seus genitores. Na guarda compartilhada será observada a divisão equilibrada do tempo de convivência dos filhos com os pais (artigo 1.583, § 2º do CC), sempre com vistas ao melhor interesse da criança e do adolescente[3].Aos que apresentam objeções à nova regra, deve-se observar que a guarda compartilhada representa um avanço na permanência da figura do “casal parental”[4], que não se desfaz para os filhos com a ruptura da relação matrimonial ou de convivência.Ainda que um dos genitores rejeite a solução, na hipótese dos pais se encontrarem em um estado de beligerância[5], a guarda compartilhada não será obstaculizada, quando deverá corresponder o princípio da maximização dos contatos com o outro genitor[6].No sistema anterior, ao término da relação conjugal ou de convivência, a guarda dos filhos do casal seria atribuída ao cônjuge a quem fosse legada a sua custódia, cabendo ao outro cônjuge supervisionar tal situação, e se fazer presente na vida dos filhos pela visitação.A regra anterior da livre escolha dos cônjuges[7] redundava em condição emocionalmente prejudicial aos filhos[8], na medida em que o término da sociedade parental implicava em um dos cônjuges assumiria toda a responsabilidade pela guarda e o outro seria alijado dessa relação, relegado à condição de mero visitador dos filhos.Hoje a situação é diversa. Após o advento da lei n. 11.698/2008, encerrada a relação conjugal ou de convivência, os filhos passaram a ficar em regime de guarda compartilhada, exceto se um dos pais recusar tal modalidade de guarda[9], quando a mesma será atribuída unilateralmente ao outro cônjuge.A guarda compartilhada implica em assunção não de alternância de períodos de moradia dos filhos entre os cônjuges, quando haveria a situação da “guarda alternada”.Na guarda compartilhada há um parâmetro de corresponsabilidade na guarda dos filhos pelo casal separado[10], com a necessária fixação de um “domicílio de referência”[11] e a tomada de decisões conjuntas para questões de elevada significação para a vida da criança ou do adolescente, sempre observando o melhor interesse deles, como princípio de razoabilidade decorrente do necessário “diálogo entre os pais”[12].A inovação legislativa decorre da alteração da concepção patriarcal de família vigente no sistema anterior para observar o direito fundamental à igualdade entre os cônjuges[13].A igualdade de direitos entre cônjuges decorre do texto do Preâmbulo[14] e artigo XIV[15] da Declaração Internacional de Direitos Humanos de 1.948[16], do artigo 3º do Pacto Interamericano de Direitos Civis e Políticos (PIDCP)[17], do artigo 1º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher de 1979, dos artigos 1º, III[18], 3º IV[19], 5º, I[20] e 226, § 5º[21], da Constituição da República de 1.988 e do artigo 1.511[22] do Código Civil de 2.002 e do artigo 21[23] da Lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente), modificando semanticamente (e teleologicamente) a expressão “pátrio poder” por “poder familiar”.Não se deve imaginar o conceito de poder como sinônimo de autoridade, detenção ou subjugação, preocupação que adotou o legislador português na alteração empregada na expressão “poder paternal” por “responsabilidades parentais” (lei 61/2008).Deve ser entendido como possibilidade de maximização do afeto mútuo, da transmissão de conhecimento, da imposição dialógica de limites, para a construção saudável da relação parental.O exercício do poder não baseado no autoritarismo implica no aumento da responsabilidade dos seus titulares, sempre em vista o supremo e melhor interesse das crianças e adolescentes.Melhor interesse que não deve ser relegado a um mero “conceito jurídico indeterminado”, a ser concretizado no julgamento, posto que este diz respeito ao direito de conviver de forma saudável com seus pais, e, não sendo possível, à busca de serena estabilidade de sua vida, a um saudável desenvolvimento psíquico-emocional.Nesse sentido, SOTTOMAYOR (2014): "O objectivo das decisões de regulação do poder paternal não é igualizar os direitos dos pais, mas proteger o interesse do menor, entendido com a estabilidade da sua vida e o seu equilíbrio emocional. Ordenar direitos de visita contra a vontade dos adolescentes ou em detrimento da saúde psíquica do menor é levar longe demais a intervenção do Estado na família."No mesmo sentido, CARDOSO (2006): “o poder familiar, cujo escopo diz respeito à proteção do menor e não à satisfação dos interesses dos pais (...) caracteriza-se, portanto, como uma potestà.” (...) que “constitui um verdadeiro ofício, uma situação de direito-dever”, cujo fundamento consiste precisamente no dever de exercê-la. Mas o exercício “não é livre, arbitrário”, condiciona-se ao interesse do terceiro a quem se institui a relação”, citando o artigo 98, II da Lei 8.069/90, que veda expressamente o abuso.Em síntese: o “melhor interesse” da criança e do adolescente sempre corresponderá ao produto do diálogo permanente entre os genitores, ao direito da criança à convivência familiar e ao seu saudável desenvolvimento psicoemocional.A guarda compartilhada, assim, na atual formulação do Código Civil brasileiro encontra a redação que lhe foi dada pela lei 13.058 de 22 de dezembro de 2.014, em vigor desde o dia seguinte a sua edição, dando nova redação aos artigos 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 da lei 10.406 de 2.002, o Código Civil.A modificação representa o que podemos chamar do produto de um “Poder Legislativo reativo”: um Poder Legislativo que reage ao que compreende como interpretação deficiente ou refratária do Poder Judiciário à edição de suas leis ou de atos típicos do poder legislativo.Lembremos que a guarda compartilhada foi introduzida na nossa legislação pela lei 11.698/2.008.Na justificativa do projeto de lei original n. 1.009 de 2011, mais tarde projeto de lei n. 117 de 2.013 (que daria origem a lei 13.058/2.014), o parlamentar deixa manifesto que o mesmo se destinava a dar “maior clareza sobre a real intenção do legislador quando da criação da Guarda Compartilhada”, tal como havia editado pela lei 11.698/2008 que introduziu no artigo 1.584 um §2º[25] do Código Civil de 2002.Isso por conta do parágrafo segundo do artigo 1.584 do Código Civil em sua redação dada pela lei 11.698/2.008, que dizia que “Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada.”[26] (grifei).A expressão fazia crer que a guarda compartilhada não era a regra a ser adotada na regulamentação da situação dos filhos menores do casal após o término da relação matrimonial ou de convivência entre ambos. Na falta de uma interpretação favorável à guarda compartilhada, optou o legislador pela redação atual dada pela lei 13.058/2014.2. A questão de gênero na guarda dos filhos do casal. A igualdade entre homem e mulher, igualdade formal, fruto das liberdades estabelecidas nos direitos fundamentais inseridos nas Constituições das democracias liberais ocidentais, não corresponde à realidade.Segundo dados do IBGE (2.011), antes, portanto, da modificação legislativa de 2.014, apesar de ter dobrado o número das guardas compartilhadas, essa representava apenas 5,4% do total de guardas, sendo que em 87,6% dos casos a guarda é conferida unilateralmente à mãe.Tais dados são alarmantes, quando confrontados com dados de países capitalistas classless e com ínfima exclusão social, como a Suécia, na qual pesquisa de 2.011 do seu governo indica que entre 30% e 40% das guardas após a separação parental são compartilhadas[27]. Ainda de acordo com a mesma pesquisa do IBGE em penúltimo lugar no território nacional constava o Estado do Rio de Janeiro, com apenas 2,8% das guardas compartilhadas estabelecidas no território nacional.Na análise desses dados, há a necessária constatação de que a igualdade de gêneros não é observada nesse caso, como em muitos outros. A democracia liberal estatui em suas cartas de direitos diversas liberdades e garantias fundamentais que são sistematicamente negadas na prática.A título de exemplo, estudo de ATAL, ÑOPO e WINDER (2.009) do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID ou IDB no acrônimo inglês) demonstra que mulheres ganham até menos 30% que homens nos empregos no Brasil (nos demais países da América Latina, como na Bolívia, a diferença é significativamente menor), e mesmo que tenham a mesma idade e mesma formação acadêmica, ainda ganham menos 17% que os homens. A situação é agravada se a mulher é afrodescendente ou indígena.Quando se fala em violência contra a mulher no mundo, e na América Latina em particular, o assunto é tratado como uma pandemia: a mulher é vítima por excelência[28].É preciso reavaliar e repensar a questão da igualdade de gênero. As democracias liberais promoveram de forma precipuamente reativa a alteração de estatutos, superando parcialmente[29] privilégios de classe típicos da aristocracia, para atender aos anseios da emergente burguesia. O discurso de igualdade de gênero, contudo, passou a ser adotado a partir do século XX[30], e ainda com mais força após a II Guerra Mundial, em razão da presença maciça da mulher como força de trabalho e seu impacto significativo na mão-de-obra das nações.Melhor seria uma redação que afirmasse a diferença, reconhecendo a discriminação sofrida e a rechaçasse, como diz BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS (apud BARROSO, (s/d): “As pessoas e os grupos sociais têm o direito de ser iguais quando a diferença as inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade as descaracteriza”. A Convenção Para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher de 1.979[31] que naturalmente foi ratificada pela República em 1.984, caracteriza a discriminação como qualquer distinção, exclusão ou restrição baseada em sexo, que prejudique ou anule o reconhecimento, gozo ou exercício dos direitos fundamentais baseada na igualdade da mulher com o homem.Logo, não poderá haver qualquer interpretação de norma legal que implique, para a mulher, já objeto de discriminação milenar, negação ou redução de qualquer espécie de direitos.Note-se que a matéria já foi objeto de apreciação pelo Superior Tribunal de Justiça: “1. A guarda compartilhada busca a plena proteção do melhor interesse dos filhos, pois reflete, com muito mais acuidade, a realidade da organização social atual que caminha para o fim das rígidas divisões de papéis sociais definidas pelo gênero dos pais.” (STJ, Resp. n. 1428596/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 25/06/2014).De forma clara: a legislação busca eliminar a figura da guarda unilateral materna como regra, e é nesse sentido que deve caminhar a interpretação dos operadores do Direito[32].3. Inteligência do artigo 1.634, V, do Código Civil de 2.002, com a redação dada pela lei 10.406/2.014. Os princípios analisados anteriormente, a igualdade formal da democracia liberal, confrontada com a desigualdade fática da mulher na sociedade ocidental, permitem consolidar uma hermenêutica que leve a concretizar o direito fundamental da igualdade entre os cônjuges na interpretação de toda legislação infraconstitucional.Na redação original do Código Civil de 2.002, o legislador limitou-se a repetir no artigo 1.634, que tratava do “Pátrio Poder Quanto à Guarda dos Filhos” (Seção II), dispositivo do Código de 1.916[33]:“Artigo 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município; ”Analisaremos então a nova redação do artigo 1.634[34] do Código Civil, no que diz respeito ao seu inciso V, pelo potencial equívoco que se cometerá em uma leitura descontextualizada ou apartada dos topoi da igualdade entre os cônjuges e direitos fundamentais das crianças e adolescentes.Localizando-se topograficamente o dispositivo no Código Civil de 2.002, verifica-se que esse se encontra na Seção II, que trata do “Exercício do Poder Familiar”, no Capítulo V “Do Poder Familiar” do Subtítulo II (“das Relações de Parentesco”), do Livro IV (“Do Direito de Família”) do Código Civil.Já o tema “proteção da pessoa dos filhos” está no Capítulo XI, pertence a outro Subtítulo, o de número I, que trata “Do Casamento”, subdivisão do Título I (“Do Direito Pessoal”) do mesmo Livro IV (“Do Direito de Família”) no qual se encontram os artigos 1.583 e 1.584, objeto da modificação citada, para estabelecer a regra da guarda compartilhada.Desse modo, o artigo 1.634, V, regula relação de parentesco e os artigos 1.583 e 1.584 tratam de disposições atinentes ao término da relação conjugal ou de convivência.Afirmamos assim, e com vistas às exposições de motivos dos projetos[35] que deram origem a lei 13.058 de 2.014, que o inciso V do artigo 1.634 destina-se a tratar de mudanças próprias dos filhos crianças ou adolescentes. De forma clara: os filhos crianças ou adolescentes só podem mudar de domicílio com autorização dos pais, jamais podendo dizer quanto à autorização para o cônjuge residir em outro domicílio em caráter definitivo.Corrobora tal entendimento a nova redação do 1.584, também alterada pela lei 13.058 de 2.014: “§ 3º Na guarda compartilhada, a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos.” Interpretando de forma sistemática tais dispositivos, vê-se com clareza que não está (e nem poderia estar) vedada a alteração de residência (morada) dos filhos do casal, e, na disputa, será considerado o melhor interesse dos menores.Quid inde? Como proceder diante da mudança de domicílio anunciada pelo cônjuge com o qual os filhos do casal passaram a ter morada, diante da guarda compartilhada ou unilateral?Em primeiro lugar, é preciso reiterar que o dispositivo do inciso V do artigo 1.634 do Código Civil não exige o consentimento do ex-cônjuge ou ex-convivente para a mudança de domicílio do outro que se encontre com a custódia física dos filhos comuns ou com quem tenha sido atribuído o domicílio dos filhos. Considerando o imenso arcabouço fático que faz com que a residência dos filhos com a mãe seja na prática uma regra (a ser superada), exigir autorização do pai para a mudança de domicílio implicaria em subjugar a mulher à vontade do homem.Se o fizesse, incidiria em retumbante inconstitucionalidade, pela violação do artigo 5º, I c/c 226, § 5º da Constituição da República, e por violação do artigo 10 da Convenção Contra Todas as Formas de Discriminação da Mulher de 1.979, nos termos do artigo 5º, § 3º da Constituição da República.Em segundo lugar, a questão deverá ser analisada pela teoria do abuso do direito, prevista ainda que em delineamento que carece de aperfeiçoamento, no artigo 188, I, do Código Civil, que manteve o instituto como “exercício irregular de uma faculdade jurídica” (CARDOSO 2006), para ampliar seu alcance além do mero ato ilícito no artigo 187 do Código Civil.Em perfeita harmonia com o que se defende, a lei n. 12.318/2010, que trata da alienação parental, é clara ao descrever a mudança de domicílio de forma abusiva (rectius: sem motivo, sem justificativa) como hipótese nela prevista (artigo 2º, VII).[36]Em conclusão, na extinção da relação conjugal ou de convivência, não existe restrição a mudança de domicílio do cônjuge com quem tiverem morada os filhos do casal, sempre estabelecida no melhor interesse das crianças e adolescentes, em qualquer modalidade de guarda que se adote, podendo o abuso do direito ser analisado no caso concreto e também à luz da lei de alienação parental.Em hipóteses assim, deverá por certo o genitor ou genitora com quem os filhos do casal passem a residir se sujeitar a regras que permitam o amplo exercício da convivência daqueles com aquele pai ou mãe com quem não residam, ampliando-se o período de férias, feriados prolongados e contato por meios eletrônicos, de modo a atender ao direito a convivência com ambos os pais, nos termos da Convenção Sobre os Direitos das Crianças[37]. BIBLIOGRAFIAATAL, JUAN PABLO, ÑOPO, HUGO e WINDER, NATALIA. New Century, Old Disparities - Gender and Ethnic Wage Gaps in Latin America, in http://idbdocs.iadb.org/wsdocs/getdocument.aspx?docnum=2208929 BERGSTRÖM. M, FRANSSON, E., HJERN, A., KÖHLER, L. e WALLBY, T. acesso em 15/07/2.015 às 21h43, disponível em http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25040954. SOTTOMAYOR, MARIA CLARA, "Regulação do exercício das responsabilidades parentais nos casos de divórcio", Coimbra, 2014, Livraria Almedina. CARDOSO, VLADIMIR MUCURY. “O Abuso do Direito na Perspectiva Civil-Constitucional”, in “Princípios do Direito Civil Contemporâneo”. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. BARROSO, LUIS ROBERTO, in “DIFERENTES, MAS IGUAIS: O RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS NO BRASIL” (acessível em http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/homoafetivas_parecer.pdf). IBGE in http://censo2010.ibge.gov.br/pt/noticias?view=noticia&id=1&idnoticia=2294&busca=1&t=registro-civil-2011-taxa-divorcios-cresce-45-6-um-anoAcesso em 21/06/2015, às 12:49- “New Century, Old Disparities: Gender and Ethnic Wage Gaps in Latin America”, escrito pelos economistas do BID Hugo Ñopo, Juan Pablo Atal e Natalia Winder, acessível em http://idbdocs.iadb.org/wsdocs/getdocument.aspx?docnum=2208929 [1] Código Civil: “Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: IV - sustento, guarda e educação dos filhos;”[2] Código Civil: “Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada. (Redação dada pela Lei nº 11.698, de 2008). § 1o Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5o) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008). § 2o A guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores: (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008). § 2o Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos: (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)” [3] Conforme artigo 3.1 da Convenção Internacional dos Direitos da Criança (Decreto 79.910/1.990): “1. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.” A norma encontra-se em nossa Constituição Federal no artigo 22: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)”. O melhor interesse possui relação com o bem estar da criança e do adolescente, e implica no auxílio não-material aos filhos, pela acolhida, imposição saudável de limites, afeto, qualidade de tempo de convívio de modo a permitir o desenvolvimento saudável da criança e do adolescente. [4] Como sucedâneo do “casal conjugal” ou “casal matrimonial”. Note-se, de todo modo, as dificuldades relacionadas a transição desses estados: cf. “Síndrome da alienação parental: um novo tema nos juízos de família”. De Analicia Martins de Sousa. Cortez Editora. Porto Alegre, 2010. [5] Artigo 1.584, § 2º, do Código Civil. [6] Cfr. a propósito, no sistema de Quebec (Canadá), para maior compreensão das dificuldades que podem decorrer da guarda compartilhada e as soluções daquele sistema: “La garde partagée : de la légende urbaine à la réalité.”, de Michel Tétrault, disponível em http://www.barreau.qc.ca/pdf/congres/2004/legende.pdf, acesso em 20/07/2015 às 23h03. [7] Redação original do Código Civil de 2.002: “Art. 1.583. No caso de dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal pela separação judicial por mútuo consentimento ou pelo divórcio direto consensual, observar-se-á o que os cônjuges acordarem sobre a guarda dos filhos.” Com o advento da lei 11.698/2.008 passa a ter a seguinte redação: “Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada. ”[8] No estudo publicado por Bergström et. all. (2.014) os autores concluíram que as crianças e adolescentes em guarda compartilhada possuem melhor saúde mental do que crianças em guarda unilateral (acesso em 15/07/2.015 às 21h43, disponível em http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25040954). [9] “Artigo 1.584 § 2o Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor.” [10] “Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada.§ 1o Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5o) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. § 2o Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos.” [11] Artigo 1.583, § 3º: “Na guarda compartilhada, a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos. (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014).” [12] O Código Civil alemão (BGB), na sua seção 1.626, 3: “Em regra, os melhores interesses da criança abarcam o contato entre ambos os pais. (...).” [13] “O aumento da guarda compartilhada foi atribuído ao aumento da igualdade entre os gêneros na parentalidade, que por sua vez está relacionada ao aumento da participação feminina na força de trabalho” ( Juby , Bourdais & Gratton , 2005 in “Mental...”, cf. Nota 8 supra). [14] “Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,”[15] “Artigo XVI 1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução.”[16] Adotada e proclamada pela Resolução n. 217A, da III Assembleia Geral das Nações Unidas de 10.12.1948 e assinada pelo Brasil na mesma data. [17] “Artigo 3. Os Estados Partes no presente Pacto comprometem-se a assegurar a homens e mulheres igualdade no gozo de todos os direitos civis e políticos enunciados no presente Pacto.” [18] “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana;” [19] “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” [20] “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;”[21] “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.”. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADI n. 4.277-DF e da ADPF n. 132-RJ em 05/05/2.011 entendeu como entidade familiar aquela formada por qualquer dos cônjuges e inclusive por pessoas do mesmo sexo, e esclareceu que “a referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no § 3º do artigo 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas.”[22] “Art. 1.511. O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.” [23] “Art. 21. O pátrio poder poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência.” (Expressão substituída pela Lei nº 12.010, de 2009).[24] Prefácio à terceira edição. [25] “§ 2o Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada.” (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).[26] Na redação anterior: “Art. 1.584. Decretada a separação judicial ou o divórcio, sem que haja entre as partes acordo quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la. Parágrafo único. Verificando que os filhos não devem permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, o juiz deferirá a sua guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, de preferência levando em conta o grau de parentesco e relação de afinidade e afetividade, de acordo com o disposto na lei específica.” Na redação atual: “Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser: (Redação dada pela Lei nº 11.698, de 2008).I – requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar; (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008). II – decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe. (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).[27] Cf. nota 8 supra. [28] Como no relatório da Organização Panamericana da Saúde: “Violência Contra a Mulher na América Latina e no Caribe”, acesso em 01 de julho de 2.105, às 19h34: file:///C:/Users/User/Downloads/Violence1.24-WEB-25-febrero-2014%20(1).pdf [29]Na Revolução Francesa não houve abolição do direito de propriedade da aristocracia, nem a isenção de impostos, et cetera. [30] O direito de voto da mulher, adotado apenas na Constituição de 1.934, o Estatuto da Mulher Casada, de 1.962, que excluiu a mulher casada do rol dos relativamente incapazes do Código Civil, mas manteve o marido como chefe da sociedade conjugal, entre outras restrições. [31] CONVENÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER (1979) Adotada pela Resolução 34/180 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 18.12.1979 - ratificada pelo Brasil em 01.02.1984: “Artigo 1º - Para fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher" significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. (...) Artigo 10 - Os Estados-partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher, a fim de assegurar-lhe a igualdade de direitos com o homem na esfera da educação e em particular para assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres: (...) c) a eliminação de todo conceito estereotipado dos papéis masculino e feminino em todos os níveis e em todas as formas de ensino, mediante o estímulo à educação mista e a outros tipos de educação que contribuam para alcançar este objetivo e, em particular, mediante a modificação dos livros e programas escolares e adaptação dos métodos de ensino;”[32] E.g., na apelação cível n. 58.917/2014 do TJMA estabeleceu a guarda compartilhada em hipótese de disputa de guarda, independente de quem exerça a “custódia física em determinado momento.” [33] A redação original do CC de 2.002: “Artigo 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: V- Representá-los, até os dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;”. Idêntica redação era o artigo 384, V, do CC de 1.916.[34] “Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I - dirigir-lhes a criação e a educação; II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior; V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município;”[35] Projeto de lei da Câmara n. 117/2013, n. 1.009/2011, na Casa de origem.[36] “Art. 2o Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este. Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros: I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade; II - dificultar o exercício da autoridade parental; III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor; IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar; V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço; VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente; VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós. [37] Editado na ordem jurídica interna pelo Decreto n. 99.710/1.990.: “Artigo 3.1. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança. (...) Artigo 9.1. Os Estados Partes deverão zelar para que a criança não seja separada dos pais contra a vontade dos mesmos, exceto quando, sujeita à revisão judicial, as autoridades competentes determinarem, em conformidade com a lei e os procedimentos legais cabíveis, que tal separação é necessária ao interesse maior da criança. Tal determinação pode ser necessária em casos específicos, por exemplo, nos casos em que a criança sofre maus tratos ou descuido por parte de seus pais ou quando estes vivem separados e uma decisão deve ser tomada a respeito do local da residência da criança. 2. Caso seja adotado qualquer procedimento em conformidade com o estipulado no parágrafo 1 do presente artigo, todas as partes interessadas terão a oportunidade de participar e de manifestar suas opiniões. 3. Os Estados Partes respeitarão o direito da criança que esteja separada de um ou de ambos os pais de manter regularmente relações pessoais e contato direto com ambos, a menos que isso seja contrário ao interesse maior da criança. Artigo 10.1. De acordo com a obrigação dos Estados Partes estipulada no parágrafo 1 do Artigo 9, toda solicitação apresentada por uma criança, ou por seus pais, para ingressar ou sair de um Estado Parte com vistas à reunião da família, deverá ser atendida pelos Estados Partes de forma positiva, humanitária e rápida. Os Estados Partes assegurarão, ainda, que a apresentação de tal solicitação não acarretará conseqüências adversas para os solicitantes ou para seus familiares. 2. A criança cujos pais residam em Estados diferentes terá o direito de manter, periodicamente, relações pessoais e contato direto com ambos, exceto em circunstâncias especiais. Para tanto, e de acordo com a obrigação assumida pelos Estados Partes em virtude do parágrafo 2 do Artigo 9, os Estados Partes respeitarão o direito da criança e de seus pais de sair de qualquer país, inclusive do próprio, e de ingressar no seu próprio país. O direito de sair de qualquer país estará sujeito, apenas, às restrições determinadas pela lei que sejam necessárias para proteger a segurança nacional, a ordem pública, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades de outras pessoas e que estejam acordes com os demais direitos reconhecidos pela presente convenção.”

Os transgênicos e a deliciosa arte de comer veneno: o que os olhos não veem, o estômago sente

Fernando Antônio de LimaJuiz de Direito em São Paulo e Membro da AJD.No dia 28 de abril de 2015, a Câmara dos Deputados aprovou, por 320 a 135, o Projeto de Lei nº 4.148/2008, de autoria do Deputado Luis Carlos Heinze (PP-RS). Se houver aprovação no Senado, não será mais necessário informar ao consumidor a existência de transgênicos nos alimentos. A informação só se torna obrigatória, no concurso destes dois requisitos: a) se houver mais de 1% de Organismos Geneticamente Modificados no alimento; b) necessidade de uma análise técnica laboratorial detalhada. Caso contrário, sem a análise detalhada que detecte a existência de mais de 1%, dispensa-se a informação ao consumidor.Hoje, há símbolos que identificam os transgênicos. A justificativa do projeto é de que tais símbolos denigrem a imagem dos transgênicos e enganam os consumidores. A solução, pois, é retirar a informação, para manter informado o consumidor![1].Por verdade na mentira é um artifício velho. O capitalismo à brasileira é pródigo nessa arte. O projeto de abolição da escravatura foi tido como uma espoliação ao direito à propriedade; os escravos não deixariam as fazendas, “pelo gosto de morrer onde nasceram”[2].Oprimir para garantir a liberdade e esconder para informar são as facetas de um drama histórico do Brasil: o verme do lucro, que nos deu escravos, agora, sorrateiro, quer plantar o câncer nos nossos estômagos.E já me adianto: sou a favor da biotecnologia no campo. Mas da biotecnologia posta a favor da vida - e não dos transgênicos, pelo menos na maneira como cultivados no Brasil.Mas o que esconde, em verdade, além da verdade[3], o projeto dos transgênicos calados?São duas grandes colunas. A primeira: defecção na saúde, no meio ambiente, na vida. A segunda: controle, por multinacionais, da nossa comida.Vamos à primeira coluna.A engenharia genética permite que fabricantes de agroquímicos criem sementes (transgênicas) resistentes aos agrotóxicos produzidos por esses mesmos fabricantes. Permite, também, a criação de sementes que produzem plantas inseticidas.O uso de sementes transgênicas – ao levar à resistência de ervas daninhas e de insetos – obriga o agricultor a aumentar a dose de agrotóxicos.Os agrotóxicos, por sua vez, prejudicam macro e micro-organismos benéficos à fertilização dos solos, afetam predadores naturais, causando desequilíbrios ecológicos. Em suma, destruição à biodiversidade agrícola, quando se sabe que a biodiversidade é uma garantia de que, nestes tempos de crise climática, teremos alimentos para comer[4].Relatório do Instituto Nacional do Câncer (Inca), divulgado no dia mundial da Saúde (8/4/2015), aponta que agrotóxicos usados na lavoura podem causar câncer na população e nos trabalhadores rurais. Cerca de 280 estudos, em revistas científicas internacionais, estabeleceram uma relação entre câncer e pesticidas.Segundo esse mesmo relatório, a liberação das sementes transgênicas é responsável por colocar, o Brasil, no 1º lugar no consumo dos agrotóxicos – o Brasil, hoje, é o 2º maior produtor de transgênicos no mundo[5]. A solução é investir na agroecologia e na produção orgânica, aponta o Inca.Mas não é só câncer que os agrotóxicos gostam de espalhar na população brasileira. Os agrotóxicos, diz o Inca, têm uma lista extensa de prejuízos à saúde do povo brasileiro – infertilidade, diarreias, abortos, malformações, desregulamentação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico. A segunda coluna não é menos grave. O cimento, que a sustenta, remete a tempos amargos. Estamos – nós, País abundante – arriscados a frequentar a miséria da fome. Meia dúzia de senhores – donos de multinacionais e do nosso direito básico de comer o pão diário – agarrara-se ao prazer de controlar o que nós comemos e o preço que deveremos pagar pela nossa comida.Por isso, o lugar escuro e inacessível para onde querem esconder os transgênicos revela muito mais do que subtrair o direito à informação. O projeto é mais profundo. “São coisas que não cabem em fazer ideia”[6], ou “a gente sabe mais, de um homem, é o que ele esconde”[7], ou “a senvergonhice reina, tão leve e leve pertencidamente, que por primeiro não se crê no sincero sem maldade”[8].Pequeno grupo de multinacionais domina o mercado das sementes transgênicas. No Brasil, das 39 plantas geneticamente modificadas, aprovadas pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, 16 são da Monsanto, 9 da Bayer e apenas 2 da Embrapa.As sementes nativas ou crioulas compõem a relação entre ser humano e natureza, alimento para o corpo e para as emoções, insinuam partilha, relação com o sagrado. Podem ser plantadas e reproduzem ano a ano. Constituem patrimônio do povo. Já as sementes transgênicas e híbridas não suportam mais do que duas safras, a partir do quê perdem o vigor. Existe tecnologia que impede o plantio – “terminator” -, gera sementes suicidas. As sementes transgênicas, além disso, são propriedade das multinacionais. A aquisição depende de pagar “royalties” ou licença de plantio à empresa produtora. Por isso, os transgênicos são a semente do império[9].O projeto de lei – de esconder o consumo dos transgênicos – é uma página histórica de indecência, um documento voraz que entrega ao lucro da insensatez o nosso direito inalienável de alimentar-se. Essa gente, que de gente gosta nada – ventanias de soberba que pelo lucro mata, pelo lucro espalha a fome – essa gente é pródiga na arte de matar – sem metralhadoras e fuzis – uma nova arte de guerra, plantada pelo assanhamento do imperialismo multinacional.Hoje, não há no mundo falta de alimentos, mas sim falta de acesso. A cada 5 segundos, uma criança de menos de 10 anos morre de fome, 56 mil pessoas morrem de fome por dia. A agricultura mundial moderna é capaz de alimentar 12 bilhões de pessoas, com 2,2 mil calorias por dia. Então, uma criança que morre de fome é assassinada. É massacre criminoso, organizado[10].A partir da crise mundial de 2008, intensificou-se a especulação nas bolsas de commodities com alimentos (trigo, arroz e milho). O preço aumentou significativamente. Na favela em Lima (Peru), as famílias têm menos de US$ 1 por dia, para comprar arroz. Em vez de comprar 1 quilo, compram no máximo 1 copo de arroz. Para alimentar as crianças. O setor de alimentos é o mais concentrado e cartelizado da economia mundial. Há 10 grupos multinacionais que controlam 85% dos alimentos comercializados no mundo, definem os preços – poder que ninguém jamais teve sobre a humanidade (nem papa, rei nem imperador). “Eles decidem, a cada dia, com a definição dos preços, quem vai comer e viver e quem vai ter fome e morrer”[11].Por isso, esses especuladores de alimentos deveriam ser colocados diante de um tribunal internacional por crime contra a humanidade, diretamente responsáveis pela morte de milhares de pessoas[12].Não basta comer os transgênicos, e os agrotóxicos que os nutrem. Agora querem que nós os comamos sem saber, sob a justificativa de que assim seremos melhor informados. O que os olhos não veem, o estômago sente. Sente até o momento em que os senhores das multinacionais resolverem que o povo brasileiro não tem direito à alimentação. Aí, em vez de morrermos por câncer, o direito que teremos será o de morrer de inanição.Fernando Antônio de LimaJuiz de Direito do Juizado Especial de Jales-SP. Membro da Associação Juízes para a Democracia.[1]Vejamos parte da justificativa apresentada pelo Deputado Luis Carlos Heinze (PP-RS), a demonstrar tão preocupado ele está com a informação prestada ao consumidor:“Ressaltamos que defendemos o direito do consumidor ser informado sobre as características ou propriedades dos alimentos.“Entretanto, o direito à informação deve ser aplicado em consonância com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (...).“A questão da biotecnologia no Brasil foi extremamente politizada. Algumas organizações, sob o pretexto de informar o consumidor, pretendem que o rótulo do alimento funcione como ferramenta de contra propaganda (...) É por tais razões que elaboramos a presente proposta de alteração da Lei n° 11.105/05 para que as regras de rotulagem possam atingir seu fim, estabelecendo o critério da detectabilidade, o limite de presença não intencional de OGM e a forma da informação de modo a não confundir o consumidor”.[2] Machado de Assis. Memorial de Aires, p. 29. São Paulo: Globo, 1997.[3]Eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados” (João Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas, p. 237. 19ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001). Queremos, brasileiros, que o informar se aparte do esconder e que a verdade seja o prato saboroso das nossas refeições diárias.[4]Disponível em: www.greenpeace.org./brasil/pt/)-que-fazemos/Transgenicos/gclid=. Acesso: 5/6/2015.[5]Os defensores dos transgênicos sustentam que não é a liberação dos transgênicos que fez aumentar o uso de agrotóxicos no Brasil, mas o aumento da produtividade no campo. De qualquer forma, não podemos negar que as multinacionais criam sementes transgênicas exatamente adaptáveis aos agrotóxicos produzidos por essas mesmas multinacionais. Há uma relação indissociável, no Brasil, entre transgênicos e agrotóxicos.[6]Guimarães Rosa, ob. cit., p. 227.[7]Guimarães Rosa, ob. cit., p. 353 e 354.[8]Guimarães Rosa, ob. cit., p. 162.[9]Horácio Martins. Transgênicos: sementes do império. Disponível em: http://www.servicioskoinonia.org/agenda/archivo/portugues/obra.php?ncodigo=161. Acesso: 7/6/2015.[10]É o que diz Jean Ziegler, sociólogo, relator da ONU para o direito humano à alimentação entre 2000 e 2008. Entrevista concedida ao jornal O Globo. Disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/07/13/uma-crianca-que-morre-de-fome-hoje-assassinada-diz-jean-ziegler-503352.asp. Acesso: 5/6/2015.[11]Jean Ziegler, entrevista citada.[12]Jean Ziegler, entrevista citada.

Grave ameaça ao meio ambiente no litoral da Bahia

Rodrigo de Souza BrittoGRAVE AMEAÇA AO MEIO AMBIENTE NO LITORAL DA BAHIARodrigo Souza Britto *Nos dias 06 e 07 de março de 2015, realizou-se na Universidade Católica do Salvador (UCSAL), na Bahia, novo Encontro Nacional da Associação Juízes para a Democracia (AJD), que teve o objetivo de promover um diálogo entre os movimentos sociais, a magistratura e o ambiente acadêmico. Durante o evento, dentre outros temas, foi discutido o conflito decorrente da implantação de projetos imobiliários que ameaçam o meio ambiente natural e cultural na Ilha de Boipeba, no litoral baiano.Entendendo que, para se concretizar os valores democráticos, é imprescindível o conhecimento da realidade social, o núcleo baiano da AJD promoveu evento com o apoio da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), nos dias 01 a 03 de maio de 2015, em Cova da Onça, na Ilha de Boipeba, para compreender o referido conflito.Ao chegar na Ilha, no dia 1º de maio de 2015, tivemos a oportunidade de dialogar com as comunidades tradicionais da região, em um Seminário que ocorreu na Biblioteca local. No dia 02 de maio de 2015, durante o dia, conhecemos a ilha, incluindo os locais tradicionais de pesca artesanal, de mariscagem e de extrativismo da região. À noite, nos encontramos novamente na Biblioteca para assistir ao filme “Vento Forte”, que aborda situações de conflitos socioambientais em comunidades pesqueiras do Brasil, dialogamos sobre o conflito em entre a iniciativa privada e as comunidades tradicionais, esclarecendo a população sobre os seus aspectos jurídicos, e encerramos o dia com uma apresentação cultural, na qual a comunidade local brindou os participantes com sua cultura, recheada de dança, música, poesia e teatro.Por fim, finalizamos o evento, no dia 02 de maio de 2015, na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), na cidade de Valença - BA, com o Seminário “Impactos Socioambientais no Baixo Sul e o Sistema de Justiça”.Após os diálogos e seminários, constatamos que Cova da Onça (São Sebastião) é uma comunidade composta por aproximadamente 900 pessoas, a maioria vivendo tradicionalmente da pesca artesanal, da mariscagem e do extrativismo, no sul da Ilha de Boipeba, local que se caracteriza por um incomparável meio ambiente natural preservado e uma grande biodiversidade.Em 23 de abril de 2014, foi divulgado o RIMA do projeto turístico e imobiliário Fazenda Ponta dos Castelhanos. Trata-se de empreendimento que ocupará 20% da Ilha de Boipeba e pretende construir e comercializar 69 lotes para residências com áreas de até 80.000 m2, um condomínio com 32 casas nos morros das mangabas, duas pousadas, cada uma com 3.500 m2 e a mais 25 casas, um aeroporto com 221.886 m2, um campo de golfe com 18 buracos e uma área total de 3.700.000 m2, um píer com infraestrutura náutica, um parque de lazer, um sistema de abastecimento de água e de rede de energia e uma infraestrutura para processamento e destinação de resíduos sólidos.O Projeto acarretará graves impactos no meio ambiente natural e cultural. Decerto, o tamanho do projeto é incompatível com uma ilha pequena como a de Boipeba, que possui ecossistemas sensíveis e recursos naturais limitados. Com a sua implantação, haverá o desmatamento de manguezais e de áreas de preservação permanente, alteração dos locais de desovas de tartarugas marinhas, aterramento de uma área de 221.886 m2 com cerca 100.000 m3 de solo e areia tirados na localidade, danos ambientais aos córregos, prejuízos para o abastecimento de água no local e outros danos irreversíveis.Além disso, o projeto deixará o povoado de São Sebastião isolado, prejudicando o seu acesso às áreas de suas plantações de mangabas e de captura de guaiamuns e siris, produtos que sustentam a comunidade. Nesse contexto, além dos danos ao meio ambiente, o empreendimento está ameaçando gravemente o direito cultural da comunidade, consistente no seu modo de se expressar, criar, fazer e viver, pois impedirá o acesso ao seu principal modo de subsistência.O mais grave é que o local onde o empreendimento pretende se instalar é um imóvel público pertencente à União. Ora, a concessão de terras públicas deve observar o interesse público, de modo que a regulação fundiária tem que ser a partir do ponto de vista coletivo, preservando o meio ambiente cultural e natural, não se admitindo o uso de imóveis públicos com a finalidade de especulação imobiliária (compra e venda de lotes).Destarte, a implantação do projeto Fazenda Ponta dos Castelhanos, devido ao seu potencial de dano ao meio ambiente natural e cultural, bem como pela especulação imobiliária de bem público, merece uma especial atenção dos poderes constituídos, especialmente dos Ministérios Públicos Estadual e Federal, bem como do Poder Judiciário.* Rodrigo Souza Britto é Juiz de Direito Substituto na Bahia e membro da Associação Juízes para a Democracia.

Terceirização Total: será preciso um novo primeiro de maio?

Murilo OliveiraTerceirização Total: será preciso um novo primeiro de maio?Nos setenta e três anos da CLT, a lei de terceirização aprovada pela Câmara dos Deputados (PL 4.330/2004 com as inúmeras emendas e acréscimos) se mostra como o maior ataque à proteção trabalhista na história brasileira. A pretexto de regulamentar a corriqueira prática empresarial de terceirizar mão de obra, a proposta introduz no sistema trabalhista o padrão de duzentos anos atrás das relações de trabalho: a “marchandage”.O que se diz como a “moderna” gestão da empresa é a velha marchandage, que era definida na França no Século XIX quando um mercador alugava seus trabalhadores para as empresas em troca de lucro. Na terceirização permitida para todos os setores da empresa, o empresário não precisará mais ter empregados, bastando alugar todos os seus trabalhadores perante um outro empresário (também vulgarmente chamado de “gato”) numa “terceirização” total. Ainda pior ocorreu no final da votação: foi incluído o permissivo para que um trabalhador de uma empresa seja agora contratado como “empresário individual”, logicamente sem nenhum direito trabalhista.Admitir esse “aluguel” de pessoas colide com toda a história do Direito do Trabalho, uma vez que há quase cem anos se proclamou que “o trabalho não pode ser tratado como mercadoria” (art. 427 do Tratado de Versalhes de 1919 e texto da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948). Não sendo mera mercadoria, não pode ser o trabalhador alugado na atividade principal e regular da empresa, embora em muitas terceirizações haja apenas “locação de mão de obra” da prestadora (empresa empregadora) em favor da tomadora (empresa na qual trabalha o terceirizado).Mas se pode perguntar qual o problema em “alugar pessoas” para sua atividade empresarial permanente e principal? Para o empresário não há problemas, mas sim soluções, pois se poderá até conseguir reduzir custos, mesmo que tenha que pagar o lucro do “Gato”. No outro lado, o trabalhador não mais se vincula em termos de categoria econômica à empresa que trabalha, perdendo os direitos ajustados pelos sindicatos, em clara medida de enfraquecimento dos sindicatos. No caso da conversão do antigo empregado em “empresa individual”, há exclusão total dos direitos trabalhistas e da proteção social. Em breve, será perceptível que as empresas não terão mais empregados e sim apenas colaboradores terceirizados. Ficará claro, por exemplo, que mesmo trabalhando em um banco nas típicas atividades de bancário, o trabalhador não terá os direitos especiais dos bancários ou até que os frentistas de postos de gasolina serão doravante empresários individuais. Diante desta precarização, as lutas trabalhistas vão ressurgir na rua combatendo esta falsa regulamentação da terceirização. Relembrando o passado, a pergunta se impõe: Será preciso um novo primeiro de maio para lutar contra esta precarização dos direitos do trabalhador?Murilo Oliveira – Juiz do Trabalho e Professor da UFBA

Tortura no Brasil ontem e hoje: homenagem da AJD ao Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro

André Augusto Salvador Bezerra, presidente do Conselho Executivo da AJD.Texto extraído da exposição realizada na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) em ato público de homenagem ao Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro promovida pela Associação Juízes para a Democracia (AJD) em 23 de janeiro de 2015.Falar de tortura no Brasil ontem e hoje é falar de incontáveis ações do Estado brasileiro contra inúmeras pessoas, em incontáveis lugares e em diversos anos. É falar de Stuart Angel, de Amarildo; é falar da Base Aérea do Galeão, da UPP da Rocinha. É falar do ano de 1971, do ano de 2013. É falar de 1964, de 2015.É falar de uma persistente prática colonizadora do Estado brasileiro. E eu digo colonizadora porque torna seres humanos, objetos, instrumentos. Instrumentos de um projeto, que é um projeto econômico de expansão do capital, liderado pelas elites do capitalismo brasileiro aliado ao capitalismo globalizado: de ontem e de hoje.Tortura, portanto, é uma prática historicamente utilizada pelo Estado brasileiro objetivando a expansão do capital: seja o capital expandido pela política desenvolvimentista comandada pelos militares das décadas de 1960 e 1970, simbolizada por frases de efeito como “Brasil ame-o ou deixe-o” e por obras grandiosas ainda que ambientalmente discutíveis como a Transamazônica; seja o capital expandido pela política desenvolvimentista liderada pelo chamado presidencialismo de coalizão do nosso século 21, igualmente simbolizada por frases de efeito como “Copa das Copas” e por obras grandiosas ainda que ambientalmente discutíveis como a Usina de Belo Monte.Daí o professor de filosofia da Universidade de São Paulo, Paulo Arantes, que recentemente esteve da AJD, afirmar categoricamente que, desde 1964, vivemos em um verdadeiro estado de exceção em nome de um projeto econômico. É um projeto, infelizmente, tão vitorioso que nos faz pensar que a ditadura é um problema de um passado distante.Não há dúvida, ainda, de que se trata de projeto de expansão que não tem limites éticos: derruba-se um presidente visto como obstáculo aos negócios das elites como ocorreu com João Goulart em 1964; matam-se índios que obstam o agronegócio (somente na ditadura, morreram quase 10 mil índios; no governo Dilma, morreram centenas); destrói-se a história de muitas cidades para dar lugar a empreendimentos imobiliários (mesmo que alguns desses empreendimentos sejam meros estádios de futebol) e prende-se e tortura-se aquele que, de alguma forma, ousa atrapalhar a chegada do capital a novos lugares.Nessa prática reiterada tem-se a ordem exigida pelo capital acima das liberdades públicas. A segurança dos contratos celebrados pelas elites do sistema acima da igualdade, da justiça social. Nada pode atrapalhar essa expansão, nem mesmo a democracia e os Direitos Humanos.É preciso anotar, por outro lado, que se cuida de um projeto aparentemente contraditório. É que a expansão do capital se dá, conforme o discurso oficial, em nome da “modernização” do país. Todavia, tem como instrumento uma prática primitiva, medieval, como a tortura.Daí se poder conectar esse permanente estado de exceção do Brasil (ou, como preferem outros, terrorismo de Estado) com aquilo que Boaventura de Sousa Santos chama de promessas descumpridas da modernidade.Lembra, a respeito, o mestre de Coimbra que a realidade vivida nos séculos 20 e 21 não deixa dúvida de que, nas chamadas sociedades modernas, a regulação prevalece sobre o sonho de emancipação do homem, um principais pilares do Iluminismo. Em outras palavras: a modernidade pensada através do Estado todo-poderoso que pode tudo em nome da segurança, isto é o Leviatã de Hobbes, impõe-se sobre a modernidade pensada pela participação cidadã da obra de Rousseau.E tudo isso que eu falei foi para tentar deixar claro que os anos podem, de fato, mudar: anos 60, 70, 80, 90 e 2000. Mas a época é a mesma: a época da força imperando sobre a dignidade da pessoa humana.Em que pese o aparente largo espaço de tempo, entre, por exemplo, 1964 e 2015, tem-se uma única dimensão temporal. Um único tempo.E por falar em tempo de uma única dimensão, peço licença para, a partir de agora e até o final da exposição, citar o filósofo o húngaro, radicado na Inglaterra, István Mészáros.Na sua obra O Desafio e o Fardo do Tempo Histórico, Mészáros bem percebe que essa única dimensão do tempo é da essência, por assim dizer, dos interesses das elites dos grupos economicamente dominantes. Para a classe hegemônica, diz o filósofo, o tempo só pode ter uma única dimensão, que é o eterno presente. O passado, assim, significa a mera projeção pregressa e a cega justificação do presente estabelecido; o futuro, por sua vez, consiste apenas na extensão da “ordem natural” do aqui e agora.E por que esse eterno presente é dos interesses dos grupos dominantes? Porque, em assim sendo, não há outra alternativa senão a desse sistema sócio-econômico que vigora; esse sistema que, como falei, insere a ordem acima da emancipação, mesmo que isso se dê pela prática da tortura.Tudo isso que Mészáros fala é facilmente ilustrado pelos jornais que compramos nas bancas ou nos telejornais que assistimos em nossas casas. Cito dois exemplos. O primeiro exemplo é a atual crise do sistema capitalista global, intensificada a partir da quebra de um banco no ano de 2008 nos Estados Unidos da América. Trata-se de uma crise gerada pela desregulamentação da economia pelo Estado, que deixou essa tarefa para as leis do mercado. Ocorre que a mão invisível do mercado não conseguiu impedir o apetite dos grande bancos por mais lucro, levando, ao final, a uma quebradeira generalizada em todo o mundo. Qual a alternativa defendida por nove entre dez editoriais para a crise? E qual a alternativa defendida por nove entre dez comentaristas econômicos? A alternativa de mais mercado, de mais desregulamentação. Vale dizer: o presente é a desregulamentação; para o futuro, a desregulamentação. O presente é eternizado.Outro exemplo, a violência urbana. Qual o caminho adotado pelo Estado brasileiro para a violência urbana? A repressão, tornando-nos o pais de terceira maior população carcerária do mundo, onde milhares morrem por ano em supostos confrontos com policiais e onde a tortura perdura como prática oficial. Qual a alternativa que os grupos dominantes, por intermédio da mídia, apresentam para a violência? O endurecimento penal, mais punição. O presente é a repressão e, para o futuro, defende-se a punição!Desconsidera-se o futuro; esquece-se o passado: a alternativa é o aqui e agora. Não há outra opção. É o eterno presente. Mészáros percebe, então, que o sistema econômico dominante, com a sua índole expansionista apta a eliminar tudo e todos que se encontram em seu caminho, nega a História na sua própria visão de mundo. Afinal, a História pode apontar para uma perspectiva de critica e para a inviabilidade a longo prazo do sistema defendido pelas elites. Daí a enorme repercussão – e apoio de grande parte da mídia – da obra do sociólogo norte-americano Francis Fukuyama publicada no final da década de 1980, após a Queda do Muro do Berlim. Afirmou, na ocasião, Fukuyama: com o fim do muro, não há mais História; é o fim da história! A História acabou!Se não há História, não há alternativa histórica. O sistema econômico reinante, então, torna-se historicamente insuperável. Mészáros, porém, vê uma luz no fim do túnel. Enxerga a possibilidade de superação do eterno presente pela luta de alguns ativistas e teóricos. E para alguns destes que lutam é que ele presta, logo no início de sua citada obra, uma homenagem. São ativistas e teóricos que, segundo ele, apesar de circunstâncias extremamente desfavoráveis, carregaram o fardo do tempo histórico aos últimos limites.E o que é esse fardo do tempo histórico (que, como já disse, dá nome ao livro que cito)? É aceitar a responsabilidade de enfrentar o tempo histórico, esse tempo que, como já falei, tem apenas uma única dimensão. É aceitar a responsabilidade de lutar por um novo tempo; por uma outra alternativa que não a da expansão do capital a todo o custo; é aceitar a responsabilidade de lutar por um outro caminho, por uma verdadeira mudança de época, para que saiamos do presente e ingressemos no futuro.Na esteira das homenagens feitas por Mészáros a quem enfrenta o desafio do fardo do tempo, cito e, em nome da Associação Juízes para a Democracia, homenageio, o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro.Destaco aqui a luta pelo direito à memória e à verdade levadas a cabo arduamente pelo Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro. Trata-se de uma luta apta a permitir a construção coletiva de uma História, a História da ditadura civil-militar (ou empresarial-militar) pós 1964, articulando-a com a História do Brasil atual, aparentemente tão distante dos tempos ditatoriais, mas, a bem da verdade, tão próxima dele.Nessa mesma luta encontra-se a luta contra o esquecimento. Os arbítrios praticados pelo Estado não podem ser esquecidos: apesar das elites atuarem em pró do esquecimento de tantos Stuart Angel – que o diga a Lei da Anistia. O não esquecimento pode transmitir à geração futura os reais efeitos do eterno presente baseado incondicionalmente na ordem.E nesse apontamento para o futuro é que vejo que o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro aceita o fardo do tempo histórico, para citar mais uma vez Mészáros. Apesar de todas as circunstâncias históricas desfavoráveis, o grupo luta para que saiamos do eterno presente; para que tenhamos um futuro.A luta pela memória, pela verdade e pelo respeito aos Direitos Humanos é uma luta que torna possível uma mudança de época, um novo tempo. Um tempo em que o Estado brasileiro, enfim, supere sua tradição no tratamento da questão social como caso de policia, para se inserir como garantidor e efetivador dos direitos.É um trabalho que inspira o dia a dia da Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade formada por juízes de todo o Brasil há mais de 20 anos, e que tem como principal bandeira de luta, justamente, a efetivação dos direitos previstos em nossa Constituição e nos tratados internacionais subscritos pelo Brasil. Por isso, a homenagem da AJD ao Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, no ano de 2014.Parabéns a todos do grupo!

  • Início
  • Anterior
  • 8
  • 9
  • 10
  • 11
  • 12
  • 13
  • 14
  • 15
  • 16
  • 17
  • Próximo
  • Fim
Página 13 de 20

logo horizontal branco

Reunir institucionalmente magistrados comprometidos com o resgate da cidadania do juiz, por meio de uma participação transformadora na sociedade.

Rua Maria Paula, 36 - 11º andar, Conj.B
Bela Vista, São Paulo-SP, CEP: 01219-904
Tel.: (11) 3242-8018 / Fax.: (11) 3105-3611
juizes@ajd.org.br

 

Aplicativo AJD

O aplicativo da AJD está disponível nas lojas para Android e IOs. Clique abaixo nos links e instale:

google

apple

Juízes para a Democracia © 2019-2023 Todos os direitos reservados.

logo

  • Início
  • Sobre nós
    • Quem somos
    • Conselho
    • Núcleos
    • Estatuto da AJD
    • Aplicativo AJD
    • Política de Privacidade
  • Notícias
  • Podcasts
  • Documentos
    • Atividades do Conselho
    • Cidadania
    • Voto e Cidadania
    • A AJD em juízo
  • Decisões
    • Eleitoral
    • Penal
    • Trabalho
    • Administrativo
    • Cível
    • Consumidor
    • COVID-19
    • Povos indígenas e comunidades tradicionais
    • Juros e correção monetária na JT
  • Artigos
  • Publicações
    • Jornal
    • Revista
  • Eventos