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Manifesto político para um Judiciário contra o racismo estrutural

FOTO: MAURO PIMENTEL / AFP Como magistrada, proponho que meus colegas de Judiciário transformem indignação em ação   Nós, brancos e brancas, somos os responsáveis pelas violências que culminaram com as mortes de João Pedro – no Brasil – e de George Floyd – nos EUA – e esses homicídios guardam intensa relação com todo o passado escravocrata dos dois países.   Escravização de corpos negros produzida por nós, brancos e brancas. Violência estatal produzida por nós, brancos e brancas, que ocupamos a quase totalidade dos cargos de poder nas instituições públicas. Racismo estrutural produzido por nós que estamos à frente de todas instituições de saber e de poder, aqui ou lá.  Racismo sistêmico, cotidiano, que mantêm segregados negros/as e nos concede, por isso mesmo, os privilégios materiais e imateriais decorrentes do simples fato de termos menos melanina no corpo. Não tenhamos memória seletiva! EUA e Brasil abrigam as maiores populações negras fora do continente africano e essa migração forçada foi causada por nós. Artigo publicado originalmente no site Carta Capital  no dia 05 de junho de 2020. *Magistrada do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e membra da Associação dos Juízes para Democracia.

Quem tem medo de Bolsonaro?

No último período, todos os dias, os celerados seguidores de Bolsonaro cometem toda sorte de crimes em várias cidades do Brasil. São carreatas e aglomerações em tempos de pandemia, violências físicas e emocionais contra cidadãos, sem falar na indústria de fake news, calúnia, injúria e difamação, cada dia mais frequentes, em ritmo crescente. Bolsonaro incentiva, patrocina e participa de tudo isso, confraternizando com a súcia que pede o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, mentindo deslavadamente, incentivando a quebra do isolamento, propagando notícias falsas e ameaçando as instituições. Não se passa um dia sequer sem a ameaça de autogolpe pairando no ar. Em reunião ministerial, o presidente clama, abertamente, por insurreição armada dos cidadãos contra prefeitos e governadores; membros do STF são chamados de vagabundos e ameaçados de prisão. Em entrevistas e lives, parlamentares injuriam o Ministro Celso de Melo. E tudo vai ficando por isso mesmo, em evidente incentivo ao desejo golpista desde sempre anunciado pelo lamentável presidente. O Procurador-Geral da República recebe na Procuradoria o presidente por ele investigado criminalmente. O Presidente da Câmara não reage à altura às ofensas diárias ao Parlamento. E quando o STF ordenou ação da Polícia Federal contra a indústria de notícias falsas e de ameaças ao Tribunal e a seus membros, o Ministro Alexandre de Morais foi ofendido, da forma mais chula que se pode imaginar, pelos investigados, foi ameaçado por eles e condenado à morte pelo escroque internacional guru do bolsonarismo. A imprensa noticia que o presidente pretende renomear o delegado Ramagem para a Chefia da Polícia Federal e desautorizar o depoimento do Ministro da Educação, tudo para afrontar Morais. Na mesma noite, o filho deputado do presidente participa de live com dois dos investigados e o astrólogo da Virgínia, para ameaçar, abertamente o Supremo Tribunal Federal e a democracia brasileira, exigindo a suspensão do inquérito, a punição dos ministros, a adoção de medidas enérgicas pelo pai e avisando que a ruptura institucional e democrática é questão de tempo. Hoje, Bolsonaro, com reforço retórico do milionésimo palavrão, diz que acabou, que não vai ter mais operações da Policia Federal contra "pessoas de bem". A pergunta que se impõe é: vai ficar por isso mesmo? Se o Supremo vier a se amedrontar e retroceder com as bravatas do deputado, com as ameaças dos investigados ou com o ultimato do presidente, pode fechar a Casa e entregar a chave ao general Ajax, assessor presidente Tofolli. Por medo de Bolsonaro e de seus alucinados seguidores estaria definitivamente desmoralizado e sem qualquer relevância institucional neste infeliz país.

O Ministério da Justiça deve explicações sobre “Contêineres para Presos”

Arte: Justificando Diante da situação pandêmica da Covid-19, declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), Sérgio Moro, quando ainda Ministro da Justiça, através do Diretor-Geral do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), solicitou ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) que afastasse temporariamente as restrições constantes em resolução e permitisse o uso de contêineres e assim, entre outros objetivos, satisfizesse a necessidade de vagas temporárias destinadas a abrigar presos não contaminados, mas em grupo de risco, e vagas temporárias destinadas a abrigar presos contaminados sem que necessitem de tratamento médico. A solicitação, que será analisada por esses dias pelo CNPCP e que seduz grande parte da sociedade, nada mais é do que equivocada, danosa e infeliz. É evidente que a população carcerária é uma das mais vulneráveis frente ao vírus, além do que as cadeias são uns dos maiores vetores de sua propagação (vide a prisão estadual do estado norte-americano de Ohio – Marion Correctional Institute –  onde 3/4 dos seus mais de 2.000 detentos foram infectados e é hoje considerada a maior fonte de infecção do país). Também é muito claro que a pandemia escancarou as condições precárias e violadoras do cárcere no Brasil, cuja seletividade mostrou muito claramente neste ano de 2020 a necropolítica (Mbembe) praticada contra negros, pobres e supostos inimigos da racionalidade neoliberal (Cazara). Entretanto, mais do que respostas para o colapso do sistema, cujas soluções se encontram sediadas numa revolução retificadora, de resgate do estado democrático de direito e suas instituições, a hora é de perguntas.  Günter Grass, prêmio Nobel da literatura, na obra autobiográfica intitulada “Nas Peles da Cebola”, revelou ao mundo que sua ligação com o regime nazista não se resumiu a ajudar a artilharia antiaérea, foi a Waffen SS, tropa de elite de Hitler, que o arrematou. O curioso é que, com uma honestidade dolorosa, o autor não faz um pedido de desculpas, mas sim de explicação. Toda a escrita, nesse livro de quase 400 páginas, é permeada por uma questão: por que nos deixamos fascinar sem fazer perguntas? Pensando nisso, na questão de Grass, neste momento passo a perguntar: 1- Por que o Ministério da Justiça, no lugar de subestimar o poder de letalidade da Covid-19 e superestimar as penas privativas de liberdade e as estruturas das cadeias, cujo Supremo Tribunal Federal já declarou em estado de coisas inconstitucional, não fomenta por meio do fundo penitenciário nacional a efetivação em todo o território da Recomendação n.62 do Conselho Nacional de Justiça, que aponta diretrizes e caminhos para garantia e proteção da saúde de quem está atrás das grades, indicando entre outras medidas a prisão domiciliar para idosos, doentes, grávidas, lactantes e apenados em regime semiaberto e aberto? 2- Por que o Ministério da Justiça desconsidera que a prática do uso de contêineres não é nova no país, que ela já foi tentada em estados como o Pará e o Espirito Santo, este último denunciado na Organização das Nações Unidas (ONU), diante de graves problemas no sistema carcerário? 3- Por que o Ministério da Justiça olvida que o ordenamento jurídico nacional não permite penas cruéis, que a Constituição Federal assegura aos presos integridade física e moral, que a prisão em contêiner, de manifesta ilegalidade, em qualquer uma de suas modalidades, fere a dignidade da pessoa humana? 4- Por que o Ministério da Justiça não se alerta para a Resolução n.1/2020 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CDHI), que coloca o estado brasileiro na condição de obrigado a medidas de proteção a presos e da necessidade de proceder ao desencarceramento preventivo, sendo que o seu descumprimento sujeitará o país a sanções perante a Corte IDH? 5- Por que o Ministério da Justiça ignora que a proposta de contêineres para prender seres humanos viola a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes (1984) e o Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas (ONU) contra a Tortura (2002)? 6- Por que o Ministério da Justiça apresenta ao CNPCP proposta que não cumpre com a necessidade de 2 metros de distância entre os presos, não garante o acesso à água corrente em tempo integral, nem ventilação cruzada? 7- Por que o Ministério da Justiça esquece que em 2019, no massacre de Altamira/PA, 58 presos perderam a vida asfixiados e incinerados em contêineres, conforme o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) apontou? 8- Por que o Ministério da Justiça diz que o sistema carcerário não é o ideal, quando basta consultar os números do CNJ, através do fácil acesso ao portal do Geopresídios e aos dados do Infopen, para verificar que são cerca de 800.000 presos em todo o território para pouco mais da metade de vagas e que nunca o estado brasileiro terá condições de suprir do deficit, cabendo portanto mudar o eixo da política de superencarceramento para o desenvolvimento da cultura do desencarceramento, via alternativas penais? 9- Por que o Ministério da Justiça não manda emissários para pisar no chão da prisão e ver com seus olhos o caos instalado? 10- Por que o Ministério da Justiça não dialoga mais com a academia, com criminólogos, constitucionalistas, atores jurídicos, organizações de defesa dos direitos humanos, trabalhadores do sistema, na busca por medidas salutares e potencializadoras da cidadania? Essas perguntas e muitas outras precisam ser feitas, precisam ficar registradas nos livros de história, antes que seja tarde, antes que não encontremos mais quem se responsabilize em respondê-las, antes que não existam mais respostas. *O autor é juiz de direto da vara de execuções penais da Comarca de Joinville/SC e membro da AJD Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 4 de maio de 2020.  

O Brasil é de Marielle, não de Bolsonaro

Mural em homenagem a Marielle Franco (Foto: ABR) O discurso de Jair Bolsonaro na tarde do dia 24 de abril pode ser examinado sob vários aspectos. O pronunciamento foi feito em razão de denúncias do ex-ministro Sérgio Moro, de que o Presidente tentou interferir em inquéritos que podem afetar membros de sua família, pretendeu ter ingerência direta sobre o diretor da Polícia Federal para “fazer política” e publicou um Decreto com sua assinatura sem que o tivesse assinado.  Em seu pronunciamento oficial, o Presidente negou tenha tentado interferir nos inquéritos, mas nada disse sobre a tal assinatura supostamente falsificada ou sobre a pensão que Moro afirmou haver solicitado como moeda de troca para assumir o ministério. Em lugar disso, falou por cerca de 40 minutos sobre variados assuntos, referiu o dia em que conheceu pessoalmente Sérgio Moro, disse que mandou “desligar o aquecedor da piscina olímpica do Palácio do Planalto”, que possui “três cartões corporativos”, entre tantas outras afirmações absolutamente desconectadas do assunto que motivou o pronunciamento.  Vários aspectos de sua fala podem ser, portanto, ressaltados. Desde a falta de aderência com o tema da coletiva, pela postura “coitadista” diante das graves denúncias de Sérgio Moro ou pelo silêncio sobre o que realmente interessava, até o desprezo pelo filho, chamado de “Zero 4” e cuja idade o Presidente não soube sequer precisar. Evidentemente, o que resta de mais assustador é o comportamento distópico, que parece flutuar para além da realidade concreta e que aposta uma vez mais no desvio de discurso como modo de manter seu cambaleante governo em pé. Queremos, porém, ressaltar um aspecto da fala presidencial que talvez não mereça a devida atenção, diante da circunstância objetiva da troca de acusações entre Sérgio Moro e Bolsonaro.  O caráter absurdamente misógino do discurso, emblematicamente representado por sua preocupação em referir-se, mais de uma vez, a Marielle Franco.  Jair Bolsonaro apresentou-se ao lado de seus ministros: todos homens brancos, com exceção apenas de duas mulheres: a ministra Tereza Cristina e a ministra Damares, para quem o número elevado de estupros de meninas na Ilha do Marajó é causado pela falta de calcinhas. A estética branca e masculina muito diz sobre a ética daquele que preside atualmente o nosso país. Bolsonaro e equipe de governo após pronunciamento em resposta as falas do ex-ministro da justiça Sérgio Moro (Foto: Evarsito Sá/AFP). Logo nos primeiros minutos do discurso, questiona o presidente: “Quem mandou matar Jair Bolsonaro?”. Palavras cautelosamente escolhidas, em evidente referência à pergunta feita por todos nós há mais de dois anos. Desde aquele 14 de março, em que a vereadora do PSOL Marielle Franco foi brutalmente assassinada no centro do Rio de Janeiro, por causas até hoje pouco esclarecidas. Jair Bolsonaro conta como pediu, quase implorou, para que Moro apurasse quem foi o mandante da sua tentativa de assassinato, ressentindo-se que “a Polícia Federal de Sérgio Moro mais se preocupou com Marielle do que com o seu chefe supremo”. Na sua visão, a sua vida, a vida de um homem branco, tem maior valor do que a vida de uma mulher negra, lésbica e de periferia. E o chefe da Polícia Federal que não compartilhasse dessa visão – e assim dirigisse a atuação de toda uma instituição – não poderia permanecer no cargo. A falta de noção dos limites de ética e de probidade resume-se na frase: “Por que eu não posso trocar o diretor da Polícia Federal?”. Pelos termos do pronunciamento, percebe-se que o caso Marielle assume importância apenas quando as linhas de investigação se aproximam de sua própria família. Conta como seu filho Eduardo foi na portaria do seu condomínio “filmar a secretária eletrônica” para infirmar as declarações do porteiro de que foi Jair Bolsonaro quem autorizou a entrada de Élcio de Queiroz, um dos investigados pela morte de Marielle e Anderson; ou como interpelou seu filho Renan sobre o possível namoro com a filha de Ronnie Lessa, o outro investigado e vizinho de Jair Bolsonaro. A falta de interesse em entender o motivo do crime mostra que a vida de Marielle, para ele e o sistema que representa, é tão descartável quanto a de “mais da metade das mulheres do condomínio” com quem afirma que seu filho Renan saiu. A afirmação de que um homem pode “colecionar” mulheres, sem precisar sequer saber seus nomes, é repugnante. Revela uma cultura misógina que reduz o corpo feminino a espaço a ser conquistado e desfrutado pelos homens. Cultura essa aparentemente compartilhada entre as gerações da família, ao menos pelos filhos homens que não foram resultado de uma “fraquejada”. Da tribuna, o presidente garante que teria casado com Michele, mesmo sabendo do passado de sua avó – presa por tráfico de drogas – ou de sua mãe – condenada por falsidade ideológica por, nas palavras de Bolsonaro, “fazer uma cirurgia na sua certidão de nascimento, diminuindo dez anos a sua idade”, “em vez de fazer uma cirurgia plástica para ficar mais jovem, mais bonita”. Certamente sua sogra não teria a mesma benevolência nas justificativas se fosse negra. Certamente Michelle não teria a mesma “sorte” se fosse velha, feia ou gorda – como a mulher que Bolsonaro, no mesmo discurso, menciona ter assim adjetivado.  Não surpreende que Bolsonaro diga abertamente na entrevista que a sua vida, como Presidente da República, vale mais do que a vida de Marielle. Se existe algo que une ele e a bancada de homens brancos que o apoiam é a dificuldade de entender quem foi Marielle. A vereadora carioca que, no mesmo corpo, carregava as vozes de mães solo, mulheres negras, pessoas de periferia, bissexuais. Vozes silenciadas por uma estrutura de poder pautada pela branquitude e pela masculinidade. Por pessoas que fazem uso das instituições para manter e perpetuar as desigualdades estruturais que atravessam a sociedade brasileira. E que tornam corpos como o de Marielle corpos fora do lugar quando adentram na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, ao contrário de seu colega Flávio Bolsonaro, cuja família ali permanece por gerações.  Não conseguem entender sequer a gravidade de tais afirmações em um país que conta com números recordes de violência de gênero e em um momento no qual as denúncias de violência doméstica aumentaram 44,9% em razão do isolamento físico. Essa fala é um convite ao desrespeito.  Até hoje não houve apuração sobre quem matou Marielle e Bolsonaro sabe disso. Invocar o nome dessa mulher negra, que tombou na luta contra a desigualdade e o milicianismo no Brasil, para exaltar a importância da própria vida, enquanto o país enfrenta uma pandemia que já atingiu, segundo números oficiais que não refletem integralmente a realidade, mais de 53.000 e vitimou mais de 3.700 pessoas, é desumano, além de machista e racista. Prova, aliás, como o machismo e o racismo tornam o exercício de alteridade impossível, ao não enxergar o outro como um ser humano. A vida do Presidente não vale mais do que as vidas das pessoas mortas em razão de uma gestão pública de descaso para com uma doença da gravidade da COVID-19, sobre o qual, aliás, o discurso de hoje não dedicou sequer uma palavra. Certamente, sua vida também não vale mais do que a vida de Marielle Franco, assassinada covardemente no dia 14 de março de 2018. Já sabíamos que Bolsonaro é machista. Ele já disse a deputada Maria do Rosário que ela “não merecia” ser estuprada, a empurrou e a chamou de vagabunda, dentro do salão verde da Câmara dos Deputados. Na sessão que decidiu sobre o impedimento da Presidenta Dilma, Bolsonaro também invocou a lembrança de Ustra, que qualificou como “o pavor de Dilma Roussef”, atingindo-a, portanto, não em sua condição de Presidenta, mas de mulher. Uma mulher que foi presa e torturada quando tinha pouco mais de vinte anos de idade. Créditos: Gibran Mendes/Fotos públicas Já sabíamos também que Bolsonaro é racista. Como esquecer do discurso na Hebraica do Rio de Janeiro, onde se referiu a quilombolas por arrobas, animalizando-os, e, ainda, dizendo que nada faziam e os associando ao atraso, síntese do pensamento colonial de extermínio? Como esquecer que ele afirmou que não concederia um centímetro sequer de reconhecimento de terras dos povos indígenas? Podíamos seguir aqui enunciando todas as manifestações misóginas e racistas do Presidente, mas queremos mesmo ressaltar que são opressões estruturais e estruturantes de nossas relações sociais a ponto de o Presidente da República, em meio a maior crise política que já enfrentou em seu governo, preocupar-se em rechear sua fala com violência verbal contra as mulheres. O ódio que revela em relação à Marielle, cuja vida já foi sacrificada, faz de Bolsonaro não é apenas um presidente incompetente, irresponsável e antidemocrático, mas também um presidente machista e racista, que representa tudo aquilo contra o que os movimentos feministas vêm lutando.  Para desespero dos homens brancos e de seus/suas apoiadore/as, contudo, lembramos que Marielle Franco permanece viva. Marielle é maior que Bolsonaro. Segue viva e pulsando, dentro de cada um e cada uma de nós, que acredita em um outro mundo, mais justo e igualitário, livre de opressões, no qual as decisões políticas sejam tomadas reconhecendo valor na vida de cada um dos seres humanos! Artigo publicado originalmente no site Carta Capital no dia 4 de maio de 2020.  

A pandemia e a tutela coletiva da liberdade

O ano de 2018 foi paradigmático para a tutela coletiva judicial do direito à liberdade, com importantes decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas no habeas corpus coletivo 143.641/SP, que tratou do direito à convivência familiar de mulheres adultas e adolescentes com seus filhos, e no habeas corpus coletivo 143.988/ES, que cuidou do tema da superlotação em unidades de adolescentes, o que se deu após o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional, em 2015, no julgamento da ADPF 347. Os tribunais passaram a olhar com maior entusiasmo para a possibilidade de proteção coletiva do direito à liberdade através dos habeas corpus coletivos, com multiplicação das decisões favoráveis no âmbito superior [1] e nos tribunais estaduais [2]. A pandemia da Covid-19 fez com que o mundo parasse para refletir sobre medidas destinadas à manutenção do bem mais valioso, a vida. Isso, como ensina Agamben [3], diante de um estado real e permanente de exceção, sobretudo na temática do encarceramento e morte de pessoas no Brasil. O Estado brasileiro tem obrigação, nos termos constitucionais e perante a comunidade internacional, de adotar todas as medidas administrativas, judiciais e legislativas para a promoção dos direitos à vida e saúde da população brasileira. Nesse sentido, no campo do Poder Judiciário, temos a Recomendação nº 62 do Conselho Nacional de Justiça, de março de 2020, que recebeu elogios de órgãos internacionais como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) [4] e de parcela significativa de personagens ligados à promoção de direitos humanos no país [5]. Recentemente, no campo da jurisdição, tivemos decisões importantes para a tutela coletiva da liberdade, proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça, e destacaremos três, provocadas pela Defensoria Pública. A primeira consistiu em liminar em habeas corpus para presos idosos do Rio de Janeiro, deferida por decisão do ministro Nefi Cordeiro, nos autos do HC 568.752/RJ, impetrado pela DPRJ; a segunda decisão determinou o cumprimento de prisão civil por débito de alimentos em regime domiciliar, concedida aos vulneráveis do estado do Ceará, no habeas corpus coletivo nº 568.021/CE, proposto pela DPCE; e a terceira foi prolatada no HC Coletivo 568.693/ES, que tratou da liberdade para presos que foram mantidos encarcerados pelo não recolhimento da fiança, impetrado pela DPES. Agora, um registro antes de avançarmos: para além da própria decisão de reflexos coletivos, os tribunais superiores potencializaram os efeitos dos habeas corpus coletivos como importantes instrumentos para democratização do acesso à tutela jurisdicional, estendendo os efeitos de suas decisões para outros casos semelhantes, o que ocorre desde a extensão da liminar nos autos do HC 143.988/ES e como se deu recentemente nos processos relativos a Ceará e Espírito Santo, cujas decisões foram ampliadas para todo o país, após provocação da Defensoria da União [6]. O que se comprovou com os avanços recentes da tutela coletiva no campo penal é que os habeas corpus coletivos são fundamentais para suprir o déficit de acesso à Justiça para os vulneráveis, haja vista a carência de Defensorias Públicas em muitas comarcas. Além disso, mostrou-se essencial para a diminuição do número de processos individuais apresentados ao Poder Judiciário, permitindo a decisão em um único processo, ao invés de termos milhares de ações. E, ainda, reforçou o sentimento de justiça e igualdade, com a atuação do Estado-juiz, ofertando uniformidade de decisões. No sistema socioeducativo, as Defensorias Públicas têm obtido êxito em relação a suspensão de medidas em meio aberto, semiliberdade e, em alguns casos, a suspensão de mandados de busca e apreensão, por vezes fazendo uso da modalidade coletiva do remédio constitucional para a tutela da liberdade [7]. Vivemos um tempo de excepcionalidade jamais imaginado, que está a clamar por medidas que estejam à altura dos acontecimentos. É o que se tem verificado em países da Europa, como Portugal [8], do Oriente Médio e África, como Irã [9], Marrocos [10] e Burkina Faso [11], e até mesmo da nossa América Latina, como na Colômbia [12] e no Chile [13]. Em todos esses países foram adotadas medidas para diminuição das populações carcerárias a fim de promover os direitos fundamentais à vida e saúde. No Brasil, há insuficiência de insumos básicos e controle sanitário em unidades prisionais, com casos de racionamento de água [14] e dificuldades de acesso a profissionais de saúde. Faltam EPIs para trabalhadoras e trabalhadores do sistema, especialmente para que agentes prisionais possam se proteger da Covid-19. O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura apontou para a falta de acesso a água e sabão em locais de encarceramento de pessoas. Não há sequer previsão mínima de testagem de internos [15]. Todas as pessoas carregam consigo o atributo da dignidade humana e é inaceitável a postura excludente dos direitos fundamentais da população do sistema prisional e socioeducativo, seja pela ação ou pela omissão. E não se pode esquecer que ao redor dessas pessoas temos seus familiares, agentes prisionais e socioeducativos, além das equipes técnicas que acabam por se colocar em situação de vulnerabilidade [16], com risco de contraírem ou transmitirem a Covid-19, potencializando a difusão da doença em nosso país. Não se trata de preocupação em abstrato, pessoas estão sendo contaminadas e morrendo em razão da Covid-19 no sistema prisional brasileiro, presos e agentes [17]. Num momento da história em que todas e todos somos vulneráveis, urge a adoção de providências para manutenção da vida, da saúde e da dignidade da pessoa humana como ponto central do nosso ordenamento jurídico, afastando, assim, mais um surgimento de necropoder [18] enraizado na Covid-19. Um dos caminhos para a adoção de medidas sanitárias no sistema prisional e socioeducativo brasileiro perpassa, obrigatoriamente, pelo manejo do habeas corpus coletivo em todas as esferas do Poder Judiciário, sendo sua admissão e processamento sinônimo de celeridade e economia de recursos e, sobretudo, essenciais para a saúde e vida da sociedade brasileira. Está nas mãos do Poder Judiciário a efetividade do que chamamos Justiça, no patamar ético da dignidade humana erigida na Constituição brasileira como princípio fundante. Esperamos que saibam fazê-lo com a coragem e a sabedoria necessárias às mulheres e aos homens públicos.   [1] Conferir: <https://www.conjur.com.br/2019-jul-04/ministro-hc-garantir-banho-soldiario-presos-sp>. Acesso em 19 de abril de 2020. [2] Conferir: <https://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/tjes-ordena-que-todos-os-presos-tenham-duas-horas-de-banho-de-sol>, <https://www.conjur.com.br/2019-mai-11/tj-rs-concede-hc-proibindo-presos-fiquem-detidos-viaturas> e <https://www.conjur.com.br/2020-mar-26/hc-coletivo-ordena-domiciliar-devedores-alimentos-pr>. Acesso em 19 de abril de 2020. [3]  Agamben, Giorgio. 1942 – Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. - São Paulo: Boitempo, 2004 (Estado de sítio). [4]  Conferir: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-26/cidh-aprova-recomendacao-cnj-prisoes-durante-pandemia>. Acesso em 19 de abril de 2020. [5] Conferir nota de apoio de mais de 70 entidades disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-11/70-entidades-apoiam-recomendacao-62-cnj>. Acesso em 19 de abril de 2020. [6] Sobre a atuação da DPU como custus vulnerabilis, conferir: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-06/stj-admite-defensoria-custos-vulnerabilis-penal:. Acesso em 19 de abril de 2020. [7] A DP/RJ obteve êxito em HC Coletivo para suspensão de mandados de busca e apreensão conforme: <https://www.jornalterceiravia.com.br/2020/04/02/defensoria-publica-obtem-na-justica-suspensao-de-busca-e-apreensao-de-menores-infratores/>. Acesso em 19 de abril de 2020. [8] Disponível em: <https://www.publico.pt/2020/04/10/politica/noticia/covid19-presidente-salienta-indultos-nao-aplicam-presos-homicidio-pedofilia-1911831> Acesso em 19 de abril de 2020. [9] Conferir: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2020/03/24/com-1934-mortos-pela-covid-19-ira-estende-liberdade-provisoria-a-presos.htm > Acesso em 19 de abril de 2020. [10] Conferir: <https://www.saudemais.tv/noticia/11331-covid-19-marrocos-concede-perdao-a-mais-de-5-000-presos-como-medida-preventiva >. Acesso em 19 de abril de 2020. [11] Conferir: <https://www.dw.com/pt-002/covid-19-17-mil-presos-recebem-indulto-no-burkina-faso/a-53004198>. Acesso em 19 de abril de 2020. [12] Conferir: <https://www.metropoles.com/mundo/covid-19-4-mil-detentos-vao-para-prisao-domiciliar-na-colombia>. Acesso em 19 de abril de 2020. [13]  Disponível em: <http://www.rfi.fr/br/geral/20200415-covid-19-nas-pris%C3%B5es-chile-aumenta-indultos-e-fran%C3%A7a-tem-menos-10-mil-presos-em-1-m%C3%AAs> Acesso em 19 de abril de 2020. [14] O CNJ pediu apuração em relação a racionamento de água em Minas Gerais: <https://www.cnj.jus.br/cnj-pede-apuracao-sobre-racionamento-de-agua-em-presidios-de-mg/> Acesso em 19 de abril de 2020. [15] Dados publicados pelo Observatório sobre o Covid-19 nas prisões. Disponível no instagram @ infovírus. Acesso em 19 de abril de 2020. [16] Os riscos decorrentes da atuação como força de segurança foram reconhecidos pelo Ministério da Saúde para fins de vacinação contra a influenza, conforme: <https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/45380-nova-etapa-de-vacinacao-contra-gripe-comeca-e-inclui-forcas-de-seguranca-e-salvamento>. Acesso em 19 de abril de 2020. [17] Conferir: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/16/rj-quatro-agentes-penitenciarios-contaminados-e-um-morto-por-coronavirus.htm>, <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2020/04/17/interna_cidadesdf,845822/papuda-tem-67-casos-de-coronavirus-entre-agentes-e-internos.shtml>  e <https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,rio-confirma-primeiro-preso-morto-por-covid-19,70003274570> Acesso em 19 de abril de 2020. [18] Nas palavras de Mbembe, "a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode morrer e quem deve viver". "Necropolítica, biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte". 3ª edição, São Paulo, 2018.   Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 27 de abril de 2020.

No teatro de egos quem perde é a população brasileira

Imersos até o pescoço em crimes e condutas anti-éticas, ex-ministro e presidente se atacam publicamente   “Nos dias de hoje esteja tranquiloHaja o que houver pense nos teus filhosNão ande nos bares, esqueça os amigosNão pare nas praças, não corra perigoNão fale do medo que temos da vidaNão ponha o dedo na nossa feridaNos dias de hoje não lhes dê motivoPorque na verdade eu te quero vivo” – Música Cartomante, Ivan Lins Ato I: um ministro que não suporta corrupção Sergio Moro ignorou as regras sobre competência criminal durante a operação Lava-Jato. Desautorizou a decisão de um desembargador que estava respondendo pelo plantão, sem que para isso tivesse competência e enquanto estava em férias. Vazou áudio de interceptação telefônica em que registrada conversa entre a Presidenta Dilma e o ex-Presidente Lula, de forma ilegal. A seis dias do primeiro turno das eleições, retirou o sigilo do primeiro anexo da delação premiada do ex-ministro Antonio Palocci. Durante toda a operação, determinou as ações do Ministério Público, indicando as provas a serem ou não produzidas. Sentenciou em tempo recorde e após retirar o ex-presidente Lula da corrida eleitoral, aceitou cargo na cúpula do Poder Executivo, por parte do candidato diretamente beneficiado com a prisão, enquanto ainda atuava como juiz. Sergio Moro aceitou ser ministro de alguém que tem como ídolo Ustra, um torturador. Alguém que durante a campanha disse que iria “fuzilar a petralhada” do Acre, e que enquanto atuou no parlamento empurrou e ofendeu sua colega deputada Maria do Rosário, dizendo-lhe que não “merecia” ser estuprada. Na condição de ministro, Sergio Moro entregou a Bolsonaro cópia de inquérito sobre candidaturas “laranjas” no PSL, que tramita em segredo de justiça. Durante o tempo em que atuou como braço direito de Bolsonaro, pediu a abertura de 12 investigações sobre possíveis crimes contra a honra do presidente, “mais do que todas as investigações sobre crimes a honra pedidas pelos ministros da Justiça que serviram a Michel Temer, Dilma Rousseff, Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso somadas”. O The Intercept apontou em reportagem que Sergio Moro deixou de fora da lista de criminosos mais procurados do país o miliciano Adriano da Nóbrega, amigo da família Bolsonaro, “envolvido nas rachadinhas de Flavio, o filho 01, e possivelmente envolvido no assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes Nóbrega”, executado em seguida pela polícia baiana. Também mandou a Polícia Federal investigar o porteiro do condomínio em que vivem Jair e Carlos Bolsonaro, depois de ele ter dito que Élcio Queiroz, motorista do carro usado para matar Marielle e Anderson, foi a casa do presidente no dia do crime”. Segundo a Folha de São Paulo, Bolsonaro já cometeu – antes mesmo da denúncia feita por Sergio Moro – pelo menos 15 atos passíveis de serem configurados como crime de responsabilidade: “deu declarações falsas; insultou jornalistas”; ameaçou fechar a Ancine caso não fosse possível filtrar o conteúdo das produções apoiadas pela Agência; publicou vídeo com conteúdo pornográfico durante o carnaval; exonerou o fiscal do Ibama que o havia multado; exonerou o diretor do INPE porque ele o criticou; em 2019 determinou que os quartéis “comemorassem” o golpe civil-militar de 1964, entre outras condutas que nunca mereceram atenção, repreensão ou atitude por parte do ministro Sergio Moro. Mas há algo ainda mais grave. Sergio Moro nada fez quando o presidente, contrariando a OMS e o Ministério da Saúde, minimizou a pandemia e sugeriu o imediato retorno do funcionamento das escolas e do comércio, mesmo diante do fato de que isso implicaria um crescimento exponencial dos adoecimentos e mortes em nosso país. Também nada fez quando o presidente convocou para ato contra o parlamento ou participou de manifestação que pedia a volta do AI-5. Não se pronunciou diante da escalada de mortes provocada pela COVID-19 e o descalabro de uma medida provisória autorizando extensão de jornada justamente na área da saúde. Enquanto os relatos de falta de equipamentos de proteção e de adoecimento entre as trabalhadoras e trabalhadores da saúde multiplicavam-se, Sergio Moro era só silêncio. Afinal de contas, Sergio Moro acabou confessando o crime de corrupção passiva, ao dizer claramente haver negociado uma pensão. Ao se referir às exigências que comentaram terem sido por ele feitas, quando do convite para assumir o ministério, disse: “pedi que a minha família não ficasse desamparada, sem uma pensão”. Ele, portanto, solicitou vantagem indevida para a ocupação do cargo de ministro, ato descrito como crime de corrupção em nosso Código Penal. E não é só isso. Ao relatar que o presidente da República cometeu atos ilícitos e não apresentar denúncia formal, instruída com as provas de suas acusações, sua conduta pode vir a ser qualificada como crime de prevaricação. Fato é que o ex-ministro que não suporta corrupção, admitiu tal prática em rede nacional. Ato II: Um presidente magoado Tão falsa quanto a preocupação de Sergio Moro com interferências políticas na Polícia Federal é a mágoa revelada em cadeia nacional pelo presidente da República. Em seu pronunciamento, na tarde do dia 24 de abril, Bolsonaro negou tenha tentado interferir nos inquéritos, mas nada disse sobre a falsificação da assinatura de Sergio Moro ou sobre a prática de corrupção através da concessão de vantagem (pensão) para que ele assumisse o cargo de ministro. Em lugar disso, referiu o dia em que conheceu pessoalmente Sergio Moro. Disse estar decepcionado, magoado, chegando até a afirmar que ficou muito triste com a forma como Sergio Moro se comportou. Durante sua fala desconexa, referiu que quer sim poder “dialogar” com as pessoas do “primeiro escalão” de seus ministros, admitindo, portanto, a interferência política denunciada por Sergio Moro. Mesmo supostamente magoado com a alta traição de seu principal aliado, Bolsonaro não deixou de referir que, ao saber de notícias sobre possível namoro de seu filho “Zero 04” com a filha de Ronie Lessa, investigado por suposto envolvimento na morte de Marielle e Anderson, resolveu confrontá-lo. Como resposta, segundo o presidente, o filho disse-lhe que não tinha como saber, pois já havia “saído com metade do condomínio”. A fala é de uma violência brutal. Sem que houvesse relação alguma com as denúncias de Sergio Moro, sem que alguém houvesse perguntado a propósito, Bolsonaro fez questão de enunciar que seu filho “coleciona” mulheres, sem saber sequer quem são. Em um país que conta com números recordes de violência de gênero e em um momento no qual as denúncias de violência doméstica aumentaram 44,9% apenas em São Paulo, durante o período de isolamento físico, essa fala é um convite ao desrespeito. O tom utilizado, de quem conta vantagem sobre a virilidade de um de seus filhos é apenas mais uma evidência da sua completa incapacidade para exercer o cargo a que foi alçado pelo voto de 57 milhões de brasileiras e brasileiros. A afirmação é tão repugnante quanto outra por ele feita, há alguns dias, de que se estiver contaminado, o problema é apenas seu, o que revela completo descaso com as vidas humanas, qualificando-se como uma fala genocida, pois seu corpo pode servir de veículo para a contaminação de pessoas que venham a falecer em razão da doença. O ponto mais absurdo do discurso ocorreu quando Bolsonaro referiu expressamente que a sua vida de presidente da República vale mais do que a vida de Marielle, ao criticar o fato de a Polícia Federal, segundo ele, haver preterido as investigações sobre quem tentou assassiná-lo. Invocar o nome dessa mulher negra, que tombou na luta contra a desigualdade e o milicianismo no Brasil, para exaltar a importância da própria vida, enquanto o país enfrenta uma pandemia que já atingiu, segundo números oficiais que não refletem integralmente a realidade, mais de 53.000 e vitimou mais de 3.700 pessoas, é desumano, além de machista. A vida do presidente não vale mais dos que as vidas das pessoas mortas em razão de uma gestão pública de descaso para com uma doença da gravidade da COVID-19, sobre a qual, aliás, o discurso do presidente não dedicou sequer uma palavra. Certamente, sua vida também não vale mais do que a vida de Marielle Franco, assassinada covardemente no dia 14 de março de 2018. Não há mágoa ou traição, portanto. O que existe é o desacerto entre dois sujeitos que não conseguem pensar e agir para além de seus interesses pessoais, e que sequer se importam de travar sua disputa de vaidades durante o enfrentamento de uma pandemia. Ato III: “Cai o rei de espadas; Cai o rei de ouros; Cai o rei de paus; Cai não fica nada” Jair Bolsonaro já havia trocado cinco ministros, quando afastou Mandetta. O ministro da saúde, antes de iniciar a série de coletivas de imprensa vestindo colete do SUS, acabou com o Programa Mais Médicos e demitiu os médicos cubanos, deixando milhões de pessoas desassistidas. Mandetta participou calado, assim como calado estava Sergio Moro, dos atos que promoveram cortes significativos em Universidades Federais e, portanto, no fomento de pesquisa científica capaz de descobrir formas de enfrentamento da doença, em todo o país. Também não se opôs aos cortes de verba do Bolsa Família, que determinaram o aprofundamento da miséria de milhões de pessoas. Em 2016, Mandetta comemorou o impeachment de Dilma com um “tchau querida”, reforçando a conduta misógina que parece ser a marca desse governo. Ao ganhar prestígio por adotar uma postura racional diante da ameaça da COVID-19 e ser anunciado como possível candidato nas próximas eleições presidenciais, foi descartado por Bolsonaro. Sua saída foi anunciada como “divórcio consensual”, mas o fato é que a troca foi determinada à revelia da vontade do ministro, pelo crescimento de sua popularidade. É verdade que Mandetta resistiu em seguir o conselho de Bolsonaro, de acabar com o isolamento físico e ministrar cloroquina sem apoio em pesquisa científica séria. Mas essa é uma questão que seu afastamento não resolve. Basta ver que mesmo após a saída de Mandetta, segue valendo a realidade de que “não existem evidências sólidas da confirmação do efeito da cloroquina e a hidroxicloroquina na prevenção e tratamento da covid-19”, como anunciou o Conselho Federal de Medicina no último dia 23 de abril. O que é preciso compreender é que nenhum dos dois motivos é técnico. Um diz diretamente com ameaças ao projeto de poder de Bolsonaro e o outro com o incômodo em se ver contrariado. Mas nada disso legitimou a adoção de alguma atitude por parte de Sergio Moro. Aliás, a insistência de Jair Bolsonaro em referir a necessidade de uso de cloroquina no tratamento da COVID-19, enquanto vários estudos apontam o risco dessa prescrição, também pode configurar prática de crime de responsabilidade, na medida em que atenta contra “o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais”, mais especificamente o direito à vida e o direito à saúde, e contra “a segurança interna do país”, ao promover adoecimento e morte em uma realidade na qual não há condições de atendimento médico para todos. Ainda assim, as falas do presidente e a demissão do colega Mandetta não mereceram atenção alguma de Sergio Moro. Curioso é que, mesmo diante do silêncio eloquente do ministro da justiça em relação à evidente ausência de republicanismo na demissão do ministro da saúde, Mandetta se apressou em prestar solidariedade a Moro, quando soube do seu afastamento. Isso demonstra, uma vez mais, o verdadeiro mote de toda a encenação: disputa de egos e de projetos pessoais de poder, que estão absolutamente desconectados – todos eles – das necessidades vitais da população brasileira. Ato final: fecham-se as cortinas Imersos até o pescoço em crimes e condutas anti-éticas, ex-ministro e presidente se atacam publicamente   “Nos dias de hoje esteja tranquiloHaja o que houver pense nos teus filhosNão ande nos bares, esqueça os amigosNão pare nas praças, não corra perigoNão fale do medo que temos da vidaNão ponha o dedo na nossa feridaNos dias de hoje não lhes dê motivoPorque na verdade eu te quero vivo” – Música Cartomante, Ivan Lins Ato I: um ministro que não suporta corrupção Sergio Moro ignorou as regras sobre competência criminal durante a operação Lava-Jato. Desautorizou a decisão de um desembargador que estava respondendo pelo plantão, sem que para isso tivesse competência e enquanto estava em férias. Vazou áudio de interceptação telefônica em que registrada conversa entre a Presidenta Dilma e o ex-Presidente Lula, de forma ilegal. A seis dias do primeiro turno das eleições, retirou o sigilo do primeiro anexo da delação premiada do ex-ministro Antonio Palocci. Durante toda a operação, determinou as ações do Ministério Público, indicando as provas a serem ou não produzidas. Sentenciou em tempo recorde e após retirar o ex-presidente Lula da corrida eleitoral, aceitou cargo na cúpula do Poder Executivo, por parte do candidato diretamente beneficiado com a prisão, enquanto ainda atuava como juiz. Sergio Moro aceitou ser ministro de alguém que tem como ídolo Ustra, um torturador. Alguém que durante a campanha disse que iria “fuzilar a petralhada” do Acre, e que enquanto atuou no parlamento empurrou e ofendeu sua colega deputada Maria do Rosário, dizendo-lhe que não “merecia” ser estuprada. Na condição de ministro, Sergio Moro entregou a Bolsonaro cópia de inquérito sobre candidaturas “laranjas” no PSL, que tramita em segredo de justiça. Durante o tempo em que atuou como braço direito de Bolsonaro, pediu a abertura de 12 investigações sobre possíveis crimes contra a honra do presidente, “mais do que todas as investigações sobre crimes a honra pedidas pelos ministros da Justiça que serviram a Michel Temer, Dilma Rousseff, Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso somadas”.   O The Intercept apontou em reportagem que Sergio Moro deixou de fora da lista de criminosos mais procurados do país o miliciano Adriano da Nóbrega, amigo da família Bolsonaro, “envolvido nas rachadinhas de Flavio, o filho 01, e possivelmente envolvido no assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes Nóbrega”, executado em seguida pela polícia baiana. Também mandou a Polícia Federal investigar o porteiro do condomínio em que vivem Jair e Carlos Bolsonaro, depois de ele ter dito que Élcio Queiroz, motorista do carro usado para matar Marielle e Anderson, foi a casa do presidente no dia do crime”. Segundo a Folha de São Paulo, Bolsonaro já cometeu – antes mesmo da denúncia feita por Sergio Moro – pelo menos 15 atos passíveis de serem configurados como crime de responsabilidade: “deu declarações falsas; insultou jornalistas”; ameaçou fechar a Ancine caso não fosse possível filtrar o conteúdo das produções apoiadas pela Agência; publicou vídeo com conteúdo pornográfico durante o carnaval; exonerou o fiscal do Ibama que o havia multado; exonerou o diretor do INPE porque ele o criticou; em 2019 determinou que os quartéis “comemorassem” o golpe civil-militar de 1964, entre outras condutas que nunca mereceram atenção, repreensão ou atitude por parte do ministro Sergio Moro. Mas há algo ainda mais grave. Sergio Moro nada fez quando o presidente, contrariando a OMS e o Ministério da Saúde, minimizou a pandemia e sugeriu o imediato retorno do funcionamento das escolas e do comércio, mesmo diante do fato de que isso implicaria um crescimento exponencial dos adoecimentos e mortes em nosso país. Também nada fez quando o presidente convocou para ato contra o parlamento ou participou de manifestação que pedia a volta do AI-5. Não se pronunciou diante da escalada de mortes provocada pela COVID-19 e o descalabro de uma medida provisória autorizando extensão de jornada justamente na área da saúde. Enquanto os relatos de falta de equipamentos de proteção e de adoecimento entre as trabalhadoras e trabalhadores da saúde multiplicavam-se, Sergio Moro era só silêncio. Não há, pois, como acreditar na versão de um sujeito ético, indignado com práticas de corrupção. Afinal de contas, Sergio Moro acabou confessando o crime de corrupção passiva, ao dizer claramente haver negociado uma pensão. Ao se referir às exigências que comentaram terem sido por ele feitas, quando do convite para assumir o ministério, disse: “pedi que a minha família não ficasse desamparada, sem uma pensão”. Ele, portanto, solicitou vantagem indevida para a ocupação do cargo de ministro, ato descrito como crime de corrupção em nosso Código Penal. E não é só isso. Ao relatar que o presidente da República cometeu atos ilícitos e não apresentar denúncia formal, instruída com as provas de suas acusações, sua conduta pode vir a ser qualificada como crime de prevaricação. Fato é que o ex-ministro que não suporta corrupção, admitiu tal prática em rede nacional. Ato II: Um presidente magoado Tão falsa quanto a preocupação de Sergio Moro com interferências políticas na Polícia Federal é a mágoa revelada em cadeia nacional pelo presidente da República. Em seu pronunciamento, na tarde do dia 24 de abril, Bolsonaro negou tenha tentado interferir nos inquéritos, mas nada disse sobre a falsificação da assinatura de Sergio Moro ou sobre a prática de corrupção através da concessão de vantagem (pensão) para que ele assumisse o cargo de ministro. Em lugar disso, referiu o dia em que conheceu pessoalmente Sergio Moro. Disse estar decepcionado, magoado, chegando até a afirmar que ficou muito triste com a forma como Sergio Moro se comportou. Durante sua fala desconexa, referiu que quer sim poder “dialogar” com as pessoas do “primeiro escalão” de seus ministros, admitindo, portanto, a interferência política denunciada por Sergio Moro. Mesmo supostamente magoado com a alta traição de seu principal aliado, Bolsonaro não deixou de referir que, ao saber de notícias sobre possível namoro de seu filho “Zero 04” com a filha de Ronie Lessa, investigado por suposto envolvimento na morte de Marielle e Anderson, resolveu confrontá-lo. Como resposta, segundo o presidente, o filho disse-lhe que não tinha como saber, pois já havia “saído com metade do condomínio”. A fala é de uma violência brutal. Sem que houvesse relação alguma com as denúncias de Sergio Moro, sem que alguém houvesse perguntado a propósito, Bolsonaro fez questão de enunciar que seu filho “coleciona” mulheres, sem saber sequer quem são. Em um país que conta com números recordes de violência de gênero e em um momento no qual as denúncias de violência doméstica aumentaram 44,9% apenas em São Paulo, durante o período de isolamento físico, essa fala é um convite ao desrespeito. O tom utilizado, de quem conta vantagem sobre a virilidade de um de seus filhos é apenas mais uma evidência da sua completa incapacidade para exercer o cargo a que foi alçado pelo voto de 57 milhões de brasileiras e brasileiros. A afirmação é tão repugnante quanto outra por ele feita, há alguns dias, de que se estiver contaminado, o problema é apenas seu, o que revela completo descaso com as vidas humanas, qualificando-se como uma fala genocida, pois seu corpo pode servir de veículo para a contaminação de pessoas que venham a falecer em razão da doença. O ponto mais absurdo do discurso ocorreu quando Bolsonaro referiu expressamente que a sua vida de presidente da República vale mais do que a vida de Marielle, ao criticar o fato de a Polícia Federal, segundo ele, haver preterido as investigações sobre quem tentou assassiná-lo. Invocar o nome dessa mulher negra, que tombou na luta contra a desigualdade e o milicianismo no Brasil, para exaltar a importância da própria vida, enquanto o país enfrenta uma pandemia que já atingiu, segundo números oficiais que não refletem integralmente a realidade, mais de 53.000 e vitimou mais de 3.700 pessoas, é desumano, além de machista. A vida do presidente não vale mais dos que as vidas das pessoas mortas em razão de uma gestão pública de descaso para com uma doença da gravidade da COVID-19, sobre a qual, aliás, o discurso do presidente não dedicou sequer uma palavra. Certamente, sua vida também não vale mais do que a vida de Marielle Franco, assassinada covardemente no dia 14 de março de 2018. Não há mágoa ou traição, portanto. O que existe é o desacerto entre dois sujeitos que não conseguem pensar e agir para além de seus interesses pessoais, e que sequer se importam de travar sua disputa de vaidades durante o enfrentamento de uma pandemia. Ato III: “Cai o rei de espadas; Cai o rei de ouros; Cai o rei de paus; Cai não fica nada” Jair Bolsonaro já havia trocado cinco ministros, quando afastou Mandetta. O ministro da saúde, antes de iniciar a série de coletivas de imprensa vestindo colete do SUS, acabou com o Programa Mais Médicos e demitiu os médicos cubanos, deixando milhões de pessoas desassistidas. Mandetta participou calado, assim como calado estava Sergio Moro, dos atos que promoveram cortes significativos em Universidades Federais e, portanto, no fomento de pesquisa científica capaz de descobrir formas de enfrentamento da doença, em todo o país. Também não se opôs aos cortes de verba do Bolsa Família, que determinaram o aprofundamento da miséria de milhões de pessoas. Em 2016, Mandetta comemorou o impeachment de Dilma com um “tchau querida”, reforçando a conduta misógina que parece ser a marca desse governo. Ao ganhar prestígio por adotar uma postura racional diante da ameaça da COVID-19 e ser anunciado como possível candidato nas próximas eleições presidenciais, foi descartado por Bolsonaro. Sua saída foi anunciada como “divórcio consensual”, mas o fato é que a troca foi determinada à revelia da vontade do ministro, pelo crescimento de sua popularidade. É verdade que Mandetta resistiu em seguir o conselho de Bolsonaro, de acabar com o isolamento físico e ministrar cloroquina sem apoio em pesquisa científica séria. Mas essa é uma questão que seu afastamento não resolve. Basta ver que mesmo após a saída de Mandetta, segue valendo a realidade de que “não existem evidências sólidas da confirmação do efeito da cloroquina e a hidroxicloroquina na prevenção e tratamento da covid-19”, como anunciou o Conselho Federal de Medicina no último dia 23 de abril. O que é preciso compreender é que nenhum dos dois motivos é técnico. Um diz diretamente com ameaças ao projeto de poder de Bolsonaro e o outro com o incômodo em se ver contrariado. Mas nada disso legitimou a adoção de alguma atitude por parte de Sergio Moro. Aliás, a insistência de Jair Bolsonaro em referir a necessidade de uso de cloroquina no tratamento da COVID-19, enquanto vários estudos apontam o risco dessa prescrição, também pode configurar prática de crime de responsabilidade, na medida em que atenta contra “o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais”, mais especificamente o direito à vida e o direito à saúde, e contra “a segurança interna do país”, ao promover adoecimento e morte em uma realidade na qual não há condições de atendimento médico para todos. Ainda assim, as falas do presidente e a demissão do colega Mandetta não mereceram atenção alguma de Sergio Moro. Curioso é que, mesmo diante do silêncio eloquente do ministro da justiça em relação à evidente ausência de republicanismo na demissão do ministro da saúde, Mandetta se apressou em prestar solidariedade a Moro, quando soube do seu afastamento. Isso demonstra, uma vez mais, o verdadeiro mote de toda a encenação: disputa de egos e de projetos pessoais de poder, que estão absolutamente desconectados – todos eles – das necessidades vitais da população brasileira. Ato final: fecham-se as cortinas A música Cartomante, com letra de Ivan Lins, é reflexo de um desejo. Lançada em 1978 na voz de Elis Regina, tem o claro propósito de conferir esperança diante do sofrimento gerado pelo regime civil-militar. Se naquela época a frase “não lhes dê motivo porque na verdade eu te quero vivo” representava o medo da violência estatal, hoje ganha novos contornos. Ao medo da violência promovida pelo Estado, que segue sendo praticada principalmente contra a população negra e pobre desse país, soma-se o medo da morte causada pelo novo coronavírus. Um medo que não se justifica apenas em razão da novidade de uma doença que mata em poucas horas, mas também em face da consciência de que somos um país, cujos sistemas de saúde e de seguridade foram sucateados, com milhões de pessoas miseráveis, sem condições mínimas de saneamento básico, sem possibilidade alguma de sobrevivência digna, especialmente se colocadas em contato com o novo coronavírus. A necropolítica que permite aprovação de regras como a EC 95 de 2016, que congela gastos sociais, gerando uma perda de R$ 20 bilhões em investimento na saúde só em 2019, não é novidade no Brasil, mas sem dúvida torna-se ainda mais perversa em um ambiente de pandemia. O congelamento aprovado no governo Temer teve como resultado uma significativa piora nas condições de oferta e qualidade do SUS, o retorno de doenças que já estavam praticamente erradicadas como sarampo e dengue, o aumento da mortalidade infantil e materna e da mortalidade precoce em doenças crônicas como câncer. A “reforma” trabalhista, em 2017, liberou a terceirização e promoveu a maior descostura já sofrida pela CLT, tendo como efeito o atingimento de recordes históricos em número de desempregados e desalentados. Nada disso foi desfeito ou combatido por Mandetta, Moro ou Bolsonaro. Ao contrário, a política do atual governo aprofundou ainda mais a aposta na miséria e na morte da população brasileira. A EC 103 de 2019, chamada “reforma” da previdência, estimula a capitalização e praticamente impede acesso a benefícios como a aposentadoria. A lei da “liberdade econômica” precarizou ainda mais as condições de trabalho. O sucateamento e a privatização de órgãos públicos como a DATAPREV impede concretamente que benefícios irrisórios como o emergencial de R$ 600,00 cheguem às mãos de quem deles necessita. A edição de uma medida provisória (MP 927/2020) para estabelecer a possibilidade de extensão praticamente ilimitada da jornada de 12 horas para quem atua na área da saúde coloca em risco de morte pessoas, cujo trabalho é indispensável para o enfrentamento da COVID-19. Pessoas que estão trabalhando em condições inseguras, sem os equipamentos de proteção necessários. As inúmeras denúncias nesse sentido também não mereceram atenção de Sergio Moro ou Luiz Henrique Mandetta. Enquanto esse último sofreu a dispensa sem desagradar seu chefe e aplaude Moro; enquanto Moro pousa de vítima das circunstâncias embora admita prática de corrupção; enquanto Bolsonaro profere discursos misóginos e incentiva a contaminação, o número de pessoas desalentadas, desempregadas e desesperadas em razão da política econômica, do sucateamento da saúde e da COVID-19 cresce de forma assustadora. Não existem heróis, nem mesmo verdadeiros opositores, entre os atores das últimas cenas desse teatro político indecente. Existem pessoas cujas escolhas são determinadas por seus projetos de poder e que insistentemente revelam um descaso obsceno, em relação ao caos socias que ajudam a produzir. A esperança é que uma hora “cai o rei de espadas; cai o rei de ouros; cai o rei de paus; cai não fica nada”. A partir daí, a (re)construção de um projeto de nação será urgente e necessária. Dependerá das escolhas que fizermos e deverá ter como principal objetivo a consolidação da solidariedade como parâmetro intransigente de convívio social. Artigo publicado originalmente no site da Carta Capital no dia 27 de abril de 2020. 

Em defesa da constitucionalidade do juiz das garantias

A figura do juiz das garantias, introduzida no Código de Processo Penal pela lei 13964, de 24.12.19, provocou acirradas disputas a respeito de sua virtude e de sua constitucionalidade. Registre-se que o artigo primeiro da referida lei anuncia que a mesma destina-se a “aperfeiçoar” a legislação penal e processual penal. Muito se pode discutir sobre se as novas regras de fato aperfeiçoam a legislação, mas não se pode confundir esse debate com a análise da constitucionalidade dos novos institutos. Apenas três dias após a promulgação da lei 13964, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) ajuizaram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal impugnando o instituto do juiz de garantias. Arguiram a inconstitucionalidade do art. 3º da lei 13964, que acrescentou os artigos 3º-A a 3º-F ao Código de Processo Penal, bem como de seu art. 20, que fixava o prazo de 30 dias de vacatio legis.[1] Em 03.2.20, o Ministro Luiz Fux deferiu monocraticamente a suspensão liminar das regras relacionadas com o juiz de garantias, adiando sua implementação. O presente artigo, inicialmente, apresenta o juiz de garantias, tal como instituído pela lei 13964/19, explicitando os motivos pelos quais, na concepção da autora, o instituto de fato aperfeiçoa o sistema processual penal brasileiro, na medida em que concretiza o princípio acusatório e reforça a regra de que a prova relevante na formação da convicção do juiz deve ser produzida em contraditório judicial. Na segunda parte, analisa as razões invocadas pelas entidades que arguem a inconstitucionalidade do instituto e os motivos explicitados na decisão monocrática do ministro Fux para suspender sua implantação. Pretende-se distinguir os argumentos relacionados com a alegada inconstitucionalidade dos argumentos morais relacionados com o suposto prejuízo que o juiz de garantias traria para a eficiência do sistema penal, e se estes podem justificar que escolhas políticas feitas pelo parlamento sejam substituídas por outras feitas pelo judiciário, ainda que no exercício de jurisdição constitucional. Clique aqui para ler o artigo na íntegra.    Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 25 de abril de 2020.   

Judicialização deve assegurar direitos sem infantilizar a política

O fenômeno da judicialização das políticas públicas já se faz sentir nestes tempos de pandemia decorrente da Covid-19. Os meios de comunicação de massa noticiam, praticamente de forma diária, decisões judiciais que alteram os rumos de ações ou inações estatais para conter a propagação da moléstia que tem infectado, de forma inédita no presente início de século XXI, milhões de pessoas em todo o mundo. Não é de se surpreender a judicialização em um país como o Brasil, onde, desde a redemocratização sucedida na década de 1980, as principais decisões acerca dos seus rumos políticos são levadas ao Judiciário. Sempre importante lembrar que tal protagonismo configura, sobretudo, uma opção das elites do Executivo e do Legislativo (da situação ou da oposição a governos), bem como de cidadãos e entidades da sociedade civil que, frequentemente, utilizam-se dos instrumentos processuais previstos na vigente Constituição, para que a atividade jurisdicional interfira na forma e no conteúdo de atos normativos ou governamentais. A judicialização na pandemia: alguns exemplosNo âmbito da ocorrente judicialização sob a pandemia, o presente texto realça inicialmente quatro decisões, citando-se, mais adiante, uma quinta. Tal destaque deve-se ao fato de os atos decisórios revelarem a diversidade de estratos populacionais que podem ser alcançados quando o Judiciário é chamado a garantir direitos em tempo de elevada contaminação da Covid-19: crianças, trabalhadores, religiosos e, no caso de propaganda governamental, toda a população. Das quatro decisões de início aludidas, duas foram proferidas no estado de São Paulo, primeira localidade atingida pela pandemia e que, em termos numéricos, é a que mais sofre de suas consequências. Cita-se um ato proferido no Rio de Janeiro, por colocar ao debate os limites do direito ao culto religioso no ente da Federação cuja capital é o centro de conflitos em torno da defesa do caráter laico estatal, ao menos desde a última eleição para a prefeitura. Por fim, há menção a uma decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) pelo fato de evidenciar que a temática em análise está também sucedendo em controle concentrado de constitucionalidade. Aludem-se a mandamentos de vários graus de jurisdição, deixando claro que os elementos em comum dos atos judiciais independem da instância decisória (ainda que os de instância inferior estejam sujeitos à pronta reforma, o que não desmerece sua importância). Outrossim, menciona-se ordem oriunda da Justiça do Trabalho, o que explicita a relevância deste ramo do Judiciário na proteção das classes historicamente subalternas, em que pese o ataque que vêm sofrendo pelos detentores do poder econômico do país.    Procedidas as necessárias advertências, cita-se, primeiramente, tutela provisória de urgência proferida pelo Juiz Adriano Laroca, da 12ª Vara da Fazenda Pública da Capital de São Paulo, em Ação Civil Pública (processo nº 1018713-46.2020) ajuizada pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público de São Paulo. Ambas as instituições impugnam a opção dos governos estadual e municipal em garantir, durante a suspensão de aulas para conter o contágio da Covid-19, a segurança alimentar apenas a crianças cujas entidades familiares estão cadastradas no programa federal do Bolsa Família. Na aludida decisão, o magistrado determinou o fornecimento de alimentação escolar a todos os alunos de educação básica das redes públicas municipal e estadual, assim o fazendo com base na Constituição, no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação e na Lei do Programa de Alimentação Escolar.  Saindo da primeira instância e alcançando a cúpula do Judiciário, menciona-se medida liminar, proferida no Supremo Tribunal Federal, nos autos de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (processo nº 669- DF) ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos e pela Rede Sustentabilidade. O relator do caso, o ministro Luís Roberto Barroso, vedou a veiculação de peça publicitária promovida pelo governo federal intitulada 'Brasil não pode parar", salientando que tal campanha seguia o sentido contrário ao alertado pelas autoridades técnico-científicas mundiais e nacionais acerca da gravidade da pandemia. O relator baseou-se expressamente nos direitos à vida, à saúde, à informação, à moralidade, à probidade, à transparência e à eficiência, previstos constitucionalmente. Em sede de segunda instância, destaca-se a proibição de culto, determinada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em tutela de urgência proferida nos autos do agravo de instrumento (nº 0060424-05.2020) interposto pelo Ministério Público estadual, autor de Ação Civil Pública ajuizada para tal escopo proibitivo. O relator do ato, o desembargador Sérgio Seabra, apontou a possibilidade de se restringir a liberdade de crença e culto, previstos na Constituição, para preservar a vida e a saúde, direitos de igual índole constitucional, ameaçados pela conglomeração de pessoas sob uma pandemia a ser enfrentada pelo isolamento social. Por fim, ingressa-se no primeiro grau da Justiça do Trabalho para se mencionar a tutela de urgência proferida na 5ª Vara do Trabalho de São José dos Campos, em ação coletiva movida por sindicato em face da sociedade de economia mista Urbanizadora Municipal Urbam S/A e do referido município como responsável subsidiário (processo nº 0010378-067.2020). Realizando controle de convencionalidade a partir da Convenção 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o juiz Bruno da Costa Rodrigues determinou que as requeridas fornecessem a seus empregados, que não podem aderir ao isolamento, Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) como luvas e máscaras. E mais: para evitar o contágio pela Covid-19, legitimou ainda eventual recusa dos trabalhadores em exercer suas funções caso não recebam as EPIs. Como se vê, a despeito da diversidade de graus e de ramos de jurisdição acima aludidos, as decisões exemplificadas esclarecem como o Judiciário pode ser acionado para reparar ações e omissões oficiais na garantia da saúde e da vida de cidadãos, bases de toda sistemática dos direitos humanos reconhecidos pelo próprio Estado violador. Em nenhuma delas, substituiu-se aleatoriamente alguma prioridade advinda de típica escolha política de outra função estatal. O Judiciário simplesmente colocou-se como garantidor da ordem jurídica em situações conflituosas, o que está inserido nas suas funções constitucionais.  A infantilização da políticaNão se pode, contudo, pecar pela ingenuidade e desprezar o problema que a judicialização pode gerar. Como bem lembrado por Jürgen Habermas em seu Direito e Democracia, a atuação do Judiciário no controle sobre os atos dos demais poderes tem também o potencial de substituir a gestão pública pelo paternalismo de juízes, de modo a infantilizar a política e, portanto, o Executivo e o Legislativo. É necessário, então, lembrar o que deveria ser óbvio: a democracia necessita da política. Afinal, é do campo político que advêm as decisões fundamentais acerca dos rumos que a sociedade deve seguir; é deste campo que prioridades são tomadas para o enfrentamento dos problemas sofridos pela população, inclusive o decorrente do coronavírus; é deste campo, enfim, que surgem os direitos a quem os juízes devem assegurar. Alguns desses mesmos direitos a serem assegurados configuram, por seu turno, a garantia da própria política: voto universal e secreto em eleições periódicas, funcionamento de partidos políticos e oportunidades igualitárias de acesso às funções estatais a todos os cidadãos, entre outros. Tudo isso a demandar, para a efetivação, gastos públicos, tal como acontece em relação aos demais direitos vigentes, com a peculiaridade de serem necessários para que a democracia (e, portanto, as liberdades cidadãs) se mantenha. Ora, vive-se em um momento em que as autoridades pertencentes a partidos políticos e eleitas democraticamente pelo sufrágio universal, nos entes federativos, não conseguem oferecer alternativas seguras para tratar da propagação da moléstia. É tentador, então, sob a ótica do senso comum, passar a enxergá-las como obstáculos aos problemas atravessados, vendo, assim, como desperdício, os gastos por elas gerados. É tentador, ademais, sob o mesmo ponto de vista, querer assumir o lugar dessas autoridades na implementação de políticas, embora sem nenhuma espécie de planejamento orçamentário e gerencial. Ocorre que a atribuição jurisdicional de garantir direitos não se faz pelo voluntarismo paternalista. Pelo contrário, faz-se pelo respeito, dentre outros, às instituições democráticas e aos fundamentos que as sustentam, tidos por imprescindíveis à democracia: por exemplo, salário de parlamentares existe para possibilitar que não apenas os endinheirados tenham acesso ao Legislativo (e, portanto, na elaboração de normas decorrentes da pandemia); o fundo partidário foi criado para que os partidos não fiquem nas mãos do financiamento lobista privado (que pode contrapor-se à saúde pública); os gastos em eleições são necessários para o respeito às escolhas populares, etc. Nada disso é desperdício. Nada disso viola algum princípio constitucional. O que há são gastos decorrentes de escolhas políticas tomadas por uma sociedade madura e que, como tal, deve tratar, com o mesmo amadurecimento, instituições formadas por pessoas maiores e capazes. Daí a importância da decisão proferida pela presidência do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em sede de pedido de suspensão de liminar formulado pela União Federal (processo nº 1009299-18.2020). Em tal ato, o desembargador Carlos Moreira Alves impediu o bloqueio judicial de fundo eleitoral, ressaltando, como fundamento, que o combate à pandemia deve ser realizado por ações coordenadas de todas as esferas federativas do poder público, com respeito à suas atribuições constitucionais, restando ao Judiciário intervir apenas excepcionalmente. Tem-se, pois, uma orientação das possibilidades e limites da judicialização das políticas em tempos de elevado contágio pela Covid-19: parlamentos e governos atuando com autonomia e independência, sob o controle jurisdicional decorrente do sistema de freios e contrapesos. Garantir direitos sem heroísmoA despeito de sua relevância em ocasião de apelo crescente ao Judiciário, a conclusão do ato decisório acima mencionado relaciona-se, na realidade, à conclusão clássica decorrente da missão constitucional atribuída à atividade dos juízes. Sob a perspectiva teórica, não há novidade. Claro que nem sempre é fácil verificar os limites entre garantir direitos e respeitar as escolhas políticas do Legislativo e Executivo. Trata-se, aliás, de situação que se torna mais complexa agora em que parlamentos e governos, de todas as unidades da Federação, legislam e promovem medidas excepcionais para conter a pandemia. Aqui é de ressaltar a advertência de Mauro Cappelletti, em seu "Juízes legisladores?", para quem o fortalecimento do Judiciário é uma exigência democrática de controle quando do fortalecimento das demais funções estatais. De toda forma, a mencionada decisão do TRF1, somada aos quatro atos decisórios também citados no início deste texto, apontam caminhos que podem ser seguidos pelos juízes, com técnica e serenidade, sem voluntarismos paternalistas (mesmo repletos de boas intenções).  Nunca é demais lembrar o descabimento do heroísmo na magistratura.  A história recente revela que o heroísmo, praticado a pretexto da incapacidade dos membros dos poderes do Estado, beneficia tão somente pretensões políticas pessoais. A democracia não precisa de heróis, mas de respeito à Constituição e aos documentos internacionais que definem os direitos humanos normatizados. Como bem pontuado por Habermas, em recente entrevista veiculada no diário francês Le Monde, "os direitos fundamentais proíbem os órgãos estatais de tomar qualquer decisão que aceite a possibilidade de morte dos indivíduos". Eis a vedação básica que cabe ao Judiciário fazer cumprir, como função institucional. Não é pouco. Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 27 de abril de 2020.     

A “coveira” que existe em mim saúda a “coveira” que existe em ti

Eu, assim como Bolsonaro, também não sou coveira. Ao menos de profissão. Mas hoje fiz enterro, com respeito e amor pela vida de todos os terráqueos, humanos ou não, que partiram. E, nesse breve  ritual, como um átimo, veio-me a lembrança do belíssimo filme japonês, “A partida”, de Yojiro Takita, diretor que soube exaltar, como ninguém,  a importância e a grandiosidade de todos os agentes funerários. Essa noite, aqui no silêncio da colônia, assim como em outras partes do mundo, travou-se uma batalha perdida. Acordei  com o sopro da morte em minha cara.    Um corpo esfacelado. Curiosamente, como alguns humanos sabem ser, a cabeça/razão de um lado e as vísceras/coração de outro. Assim encontrei esse passarinho que meu inconsciente logo quis identificar como bem-te-vi, ressaltando desde já a inexistência de qualquer compromisso com a ornitologia. Diante de um corpo sem vida, sem novos voos e horizonte, sou dor. Sinto profundamente essa perda. Qualquer morte, qualquer abate, qualquer violência, faz aumentar essa fissura que nasceu em mim desde que tomei consciência de que  a Terra onde habito pode (é) ser um mundo desigual, irracional, injusto, opressor e perverso. Perverso. Essa morte tem sentido em mim. Sou essa falta, esse corpo inerte; sem gestos, quereres, desejos, voz, luz, ânimo. Ainda sou a menina que enterrava passarinhos e cachorros, deixando junto toda a perplexidade diante da morte e, por isso, depositei esse pequeno cadáver em um cantinho da minha horta orgânica. Se esse bem-te-vi não pôde voltar ao lar, deixando seus filhotes sem comida, por isso eu também hoje não pude comer. Essa noite, acompanhando o ritmo mundial do planeta, também fez-se luto e tristeza aqui em Linha Olinda, lugar ainda intocado pelo vírus mas impregnado de bolsonaristas, como se viu dos números das últimas eleições. Pode que aqui sintam mais a unha encravada do que um coração ao léu, atirado no jardim. Pode. A morte  do bem-te-vi foi em vão, já se sabe; tratou-se de um desatino atávico dos cães; amorosos, mas, caçadores. Para eles, matar foi suficiente. Do bem-te-vi não se alimentaram, a não ser seus instintos, agora apaziguados depois que o pequeno coração – do tamanho da unha do meu dedo do pé - , parou de bater. Mas essa noite, teve muito mais do que isso. Dezenas, certamente, centenas de pessoas perderam suas vidas para o COVID-19 no nosso Brasil, ainda que os testes não tenham sido realizados e, por isso, essas mortes não tenham sido contabilizadas. Algumas dessas pessoas sequer serão pranteadas ou enterradas com dignidade.  Manaus está enterrando cadáveres – leia-se, pessoas que tiveram uma “gripezinha” - em valas coletivas. Sei que a imagem do passarinho despedaçado por dois terráqueos irracionais não é nada comparada com a do cemitério de Manaus, pois esta mostra o que os números não querem dizer. Mais e mais mortes, todos os dias, são PRODUZIDAS por Bolsonaro e sua trupe. A displicência, o desamor, o despreparo, a ignorância, a desfaçatez, o desrespeito, tudo isso dá lugar a algo que tem nome e que se traduz em projeto de Estado: necropolítica. Bolsonaro ignora, ele mesmo, as recomendações da Organização Mundial da Saúde, sai às ruas como se não houvesse amanhã, nega a ciência, polariza uma doença que abate milhares de pessoas em todo o mundo, fomenta a discórdia com seus discursos de ódio, alia-se ao capital e esquece-se dos trabalhadores e trabalhadoras desse país. Em vez de editar medidas provisórias em favor do povo brasileiro, transfere trilhões para auxiliar bancos. Acossado, submete-se à vontade do Congresso Nacional e sanciona, com muito atraso, um auxílio emergencial que mal dá para pagar o aluguel e a luz do mês. Bolsonaro é um fantoche nas mãos do empresariado, do capital, mas não é louco, retardado ou imbecil. Bolsonaro faz a sua gestão da morte, com requintes de crueldade, ao desprezar e não incrementar as políticas públicas, seja deixando de comprar testes e respiradores em massa, seja deixando de importar máscaras para os nossos profissionais de saúde (não se esqueçam que na linha de frente não estão os médicos e, sim, as enfermeiras, os técnicos, as fisioterapeutas, as terceirizadas da limpeza), seja deixando de aportar verbas para que os Estados possam montar hospitais de campanha, seja congelando as verbas públicas destinadas à saúde, seja demitindo, em plena pandemia, o Ministro da Saúde. Para compreensão do contexto atual, nos basta o conceito de necropolítica  desenvolvido por Achile Mbembe. Trata-se de entender o modo como o poder político apropria-se da morte como objeto de gestão. Bolsonaro se apropria da vida de milhares de brasileiros, estabelece normas de como essa população empobrecida, negra em sua maioria, deve se comportar, agir, trabalhar, e também decide, toma medidas de como deve morrer. Bolsonaro, com suas ações, decide quem deve viver e quem deve morrer; Bolsonaro, apoiado na lógica hegemônica vigente no país, através do estabelecimento do inimigo interno, do racismo, de mãos dadas com as políticas neoliberais e fascistas, age de modo violento e mortífero com as periferias, locais onde, em tempo de coronavírus, há um risco permanente de morte. A “saúde da população”, a “saúde nacional”, a “saúde do Brasil”, a “saúde dos empresários” está a salvo pois outros grupos indesejados, descartáveis, incômodos, esse excesso irrecuperável, esses verdadeiros inimigos da pátria, podem e devem ser mortos. Bolsonaro com suas políticas decide quem morre, como morre, quando morre e porquê morre. Ainda assim, não quer ser responsável pelo número de mortes. Claro, de coveiro não se trata, como já declarou essa semana. Alto lá! Coveiro, não! Respeito com essa classe de trabalhadores. BOLSONARO, GENOCIDA DO POVO BRASILEIRO. (*) A autora é juíza do 3º Juizado Regional da Infância e Juventude de Porto Alegre.

Superencarceramento e Covid-19: entre a necropolítica e a necrojurisdição

Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 2 de abril de 2020. ***** Com a grave pandemia do Coronavírus (COVID-19), que se espalha em progressão geométrica, conforme amplamente noticiado, advém a premente necessidade de retardar, ao máximo, a contaminação em massa com consequente sobrecarga da infraestrutura complexa do sistema público de saúde para o enfrentamento dos casos agravados da doença. Na maioria dos casos (80%), a doença não apresenta maiores gravidades. Mas, dependendo da faixa etária e das comorbidades dos pacientes, a letalidade pode atingir 15% dos infectados, como ocorre com idosos, sobretudo os maiores de 80 anos, os imunossuprimidos, os portadores de doença pulmonar crônica, os portadores de doença crônica que afetam os grandes sistemas corporais. No Brasil, entretanto, pode haver o rejuvenescimento da Covid-19. Segundo Margareth Dalcolmo, pneumologista da ENSP, “a média de idade dos pacientes em estado grave no Brasil está, por ora, entre 47 anos e 50 anos.” (DALCOLMO, 2020) Um quadro de profunda seriedade que se incrementa com a projeção do número absoluto de pacientes com evolução agravada da patologia, necessitando de tratamento em regime intensivo, frente ao insuficiente número de vagas em CTIs e UTIs no nosso sistema de saúde, tanto o público quanto o privado. Ainda que todas as vagas fossem destinadas exclusivamente para o tratamento dos pacientes acometidos da COVID-19, não há leitos suficientes. A imensa demanda judicial pelo fornecimento de vagas em UTIs e CTIs evidencia que já não há vagas para atender à demanda ordinária da rede pública de saúde. Assevera Ligia Bahia que o drama cotidiano de todas as instituições envolvidas com a saúde pública e com parte da privada no Brasil é o de tentar evitar a morte de uma pessoa e prejudicar tantas outras que também aguardam por cuidados emergenciais.(BAHIA, 2020) Nesse quadro, muitas medidas restritivas foram recomendadas pela OMS, com quarentena e isolamento para as pessoas incluídas nos grupos de risco visando o mínimo de circulação nas ruas. O Sistema Penal, nesse contexto, evoca seriamente a preocupação com a disseminação do novo coronavírus, tanto no ambiente intramuros, como no meio aberto. As unidades prisionais superlotadas têm déficit de 70% de vagas nas cadeias do Estado do Rio de Janeiro, conforme Mapa de Estabelecimentos Prisionais no site do CNJ (“GEOPRESIDIOS – CNJ”, 2020), sendo classificadas como ruins ou péssimas 40 unidades num universo de 56, ou seja 71,83% das prisões. A grande maioria dos presos está em locais superlotados. Conforme asseverado por Buch (2020), A superlotação de mais de 800.000 pessoas presas para a metade de vagas, leva os detentos a ficarem confinados em celas úmidas, sem saneamento e sem insolação, nelas permanecendo em média 22h por dia, com duas horas apenas de banho de sol. Isso tudo, aliado à falta de alimentação adequada, higiene, água potável e pouco acesso a equipes de saúde, faz com que a imunidade da pessoa presa decline drasticamente. (BUCH, 2020) Por tudo isso, foi declarado o estado de coisas inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347. Não à toa, doenças graves são frequentes entre as pessoas privadas de liberdade, sendo a Tuberculose o exemplo mais emblemático, como denunciado por Dalcolmo (2020): Um exemplo é o caso da tuberculose, uma doença que é fator de agravamento da Covid-19. O Brasil tem uma taxa elevada, cerca de 30 casos por 100 mil habitantes. Em cidades como o Rio de Janeiro, ela já é muito alta, de 70 a 75 casos por 100 mil. Mas na Cidade de Deus, onde houve um caso, na Rocinha e em Manguinhos, por exemplo, ela explode para 280 a 300 por 100 mil. E nos presídios chega a absurdos 2.500 casos por 100 mil. Cerca de 80% dos casos de tuberculose são pulmonares. Quando a Covid-19 encontrar a tuberculose teremos uma mortalidade absurda. (DALCOLMO, 2020) Todos esses fatores incrementam o risco de aceleração da propagação do vírus na população carcerária que é repleta de pessoas inseridas no risco de letalidade do COVID-19. Note-se que, a julgar pela incidência da Tuberculose, conforme acima mencionado, será catastrófica a entrada, no ambiente carcerário, do Coronavírus, cujo poder de contaminação ocorre em escala geométrica, alastrando-se exponencialmente entre as pessoas livres. Entre os presos, diante de sua peculiar condição de vulnerabilidade sanitária, dadas as epidemias que já os acometem e a baixa imunidade, a velocidade de contágio será incontavelmente maior. Não há como concluir de forma diversa. Tais circunstâncias merecem a atenção das pessoas livres, pois os agentes penitenciários e demais trabalhadores do sistema carcerário são vetores que não apenas levam o vírus para o interior das cadeias, mas também o trazem de lá, num ciclo vicioso que contribuirá para disseminar mais rapidamente a doença no meio extramuros. Não bastasse a superlotação carcerária contribuir importantemente para o risco de contágio às pessoas livres, também a incidência de agravamento dos casos de COVID-19 será exponencialmente maior, dadas as precárias condições físicas dos presos, sobrecarregando o sistema público de saúde e utilizando vagas de UTI e CTI que poderiam ser destinadas a outras pessoas, se houvesse êxito em diminuir essa incidência. Diminuir a população carcerária é a única forma de contribuir para que o Sistema Penitenciário não seja fator de incremento da disseminação da Covid-19 e de sobrecarga com consequente colapso do Sistema de Saúde em prejuízo para todos os usuários. Ciente de todo esse estado de coisas, o Conselho Nacional de Justiça emitiu a Recomendação nº 62, de 17 de março de 2020 para a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – Covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo. O ato expressa a vontade constitucional de que a prisão provisória tem caráter excepcionalíssimo, sendo a liberdade a regra no nosso ordenamento jurídico. Alguns magistrados atendendo à recomendação do Conselho Nacional de Justiça, seja na competência da instrução e julgamento das ações penais, seja na execução penal, passaram a reavaliar as prisões provisórias e definitivas conforme os critérios expressos no ato administrativo. Muitos já o fizeram antes mesmo de o CNJ baixar a recomendação que foi referendada pela ONU (“Nações Unidas difundem recomendação do CNJ sobre coronavírus em prisões”, 2020). Porém, ainda que as prisões estejam sendo reavaliadas, o encarceramento não sofreu impacto, não sendo divulgada significativa diminuição dos números para reduzir o risco de explosão generalizada da pandemia. Manter a população carcerária nos números astronômicos que temos hoje terá sim consequências nefastas na evolução da pandemia da Covid-19 no Brasil, e não apenas para os presos, repito. Vale dizer que manter o quantitativo carcerário nos níveis atuais equivale a condenar presos à vedada pena de morte (artigo 5º, XLVII, a, da CR), sem possibilidade de acesso rápido sequer a tratamento. É responsabilidade do Estado assegurar a saúde e a vida à pessoa privada de liberdade, que se encontra sob cautela estatal e, por isso, não pode se defender e buscar, por conta própria, acesso a atendimento médico-hospitalar. O magistrado precisa compreender a sua responsabilidade pelas pessoas que encarcera e por aquelas que, mesmo livres, podem ser contaminadas em decorrência da superlotação penitenciária. Como bem salientou Buch (2020), “Estamos falando de vidas! Vamos correr o risco de deixar pessoas morrerem por falta de coragem?” Já é demais o Presidente da República ter minimizado uma pandemia que parou o mundo todo e mata vorazmente, ao incentivar a circulação e aglomeração de pessoas, em completo descaso pela vida dos brasileiros, especialmente os mais vulneráveis social e economicamente. (GIELOW, 2020) A decisão é entre assumir como política pública a morte de milhares de pessoas encarceradas, negando-lhes assistência médica, em aplicação sumária, espúria, inadmissível e inconstitucional de uma vedada pena de morte, ou diminuir a população carcerária visando, inclusive, não impactar e colapsar a rede pública de saúde brasileira. O Poder Judiciário não pode exercer o papel de algoz enveredando perigosamente para o que a Desembargadora Federal do Rio de Janeiro, Simone Schreiber, perfeitamente denominou de “Necrojurisdição”. Assumir como aceitável a morte de uma só pessoa, privada ou não de liberdade, é sujar as mãos de sangue. Temos de ser muito maiores do que isso. ***** Simone Nacif é juíza de direito, mestra em Saúde Pública. Membra da AJD e da ABJD

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