Área do associado

  • Associe-se!
  • Esqueci a minha senha

AJD Portal
  • Início
  • Sobre nós
    • Quem somos
    • Estatuto da AJD
    • Aplicativo AJD
  • Notícias
  • Podcasts
  • Documentos
    • Atividades do Conselho
    • Cidadania
    • Voto e Cidadania
  • Decisões
    • Eleitoral
    • Penal
    • Trabalho
    • Administrativo
    • Cível
    • Consumidor
    • COVID-19
    • Povos indígenas e comunidades tradicionais
    • Juros e correção monetária na JT
  • Artigos
  • Publicações
    • Jornal
    • Revista
  • Eventos

Artigos

  1. Início
  2. Artigos

“Vidas Negras Importam”: mas a magistratura é formada por 82% de brancos*

A ONU lançou nota sobre a morte de João Alberto no Carrefour em Porto Alegre. Entre várias considerações, segundo a entidade, o fato “evidencia as diversas dimensões do racismo e as desigualdades encontradas na estrutura social brasileira”, o que deve ser urgentemente eliminado. “Mas a ONU é comunista”, dirão uns, sem nada saber sobre comunismo. “Racismo no Brasil não existe, é infiltração ideológica”, bafejarão outros, carregados de ideologia. De minha parte, não preciso saber que o comunismo é a pretensão, utópica para alguns, de uma sociedade igualitária, fundada na propriedade comum dos meios de produção, ou que ideologia é a integralidade de formas de consciência social, para ver que o Brasil é um país marcado pelo racismo. Não preciso recorrer a estudos que demonstram que em nosso país vidas negras valem menos que vidas brancas, que os assassinatos de negros são muito superiores aos de brancos e que a morte violenta ocorre em praticamente sua totalidade contra pobres e periféricos. Não é pelas estatísticas que conheço as pessoas cujas vidas são ceifadas, eu as conheço pelo nome, quando julgo extintas punibilidades de apenados e egressos mortos. São tantos! Também não é pelas estatísticas que sei que a cor do cárcere, entre os mais de 800.000 presos do sistema, é preta. Não sou daltônico – e também não sou preconceituoso com daltônicos, mas aproveito essa expressão, pois ela foi recente e equivocadamente usada. Quando entro nas prisões de norte a sul, leste a oeste, eu olho para os seres humanos que lá vivem, ou sobrevivem, eu os vejo e sei da sua cor. A Constituição protege o cidadão em face do estado e em face de outro cidadão, mas o fato é que as violações dos Direitos Humanos continuaram no Brasil pós-Constituição e durante o processo de democratização. Houve um avanço, mas muito precário, que não criou raízes, e por isso na primeira oportunidade o autoritarismo retornou e as poucas conquistas no respeito aos direitos fundamentais cederam aos interesses de uma elite que sempre foi racista. O racismo nunca foi superado, ele talvez apenas tenha recolhido suas garras por um breve momento e, agora, aproveita para saciar com voracidade seus traumas, fixações e complexos. Numa época de eleições municipais, poucos foram os candidatos brancos que defenderam políticas reparatórias da dívida histórica para com as populações negras. Talvez porque a classe média e rica não deseje saber da ralé, como muito bem pontua o sociólogo Jessé de Souza, e queira continuar reproduzindo a escravidão, hoje retratada no subemprego e na subalternalização de milhões de brasileiros, que dormem em quartos escuros, abafados e minúsculos, para servir ao patrão e à patroa, em seus luxos hedonistas, replicados de Miami. Por estas terras, os negros são impedidos de ocupar lugares de poder. Poucos são os que exercem cargos e funções de protagonistas dentro do estado e das políticas públicas. Já no Poder Judiciário, sabe-se que a magistratura brasileira é formada por 82% de pessoas brancas. Onde estão os juízes negros? E assim segue o “país do futuro”, com pessoas negras não ocupando espaços de poder, porque as portas de acesso só se abrem às pessoas brancas; com corpos preponderantemente negros sendo aprisionados nas cadeias; e com vidas matáveis, vidas negras. Por que isso não choca? Por que a nação não para diante de tanto horror? Estamos sedados? Palavras não farão superar a dor da injustiça, especialmente quando essa injustiça é tão extrema que interrompe, de forma cruel e violenta, uma vida humana. O motivo pelo qual ora escrevo é porque existem coisas que não podem ser silenciadas. Não quero entorpecer o mundo, mas tentar espremer seu fígado. Como branco, privilegiado, crescido com oportunidades infinitas, tenho o dever de conhecer nossa história racista, patriarcal e colonialista, saber mais da realidade, enxergar a opressão e o sofrimento, por séculos impostos aos negros. Digo mais. Para mim não basta não ser racista, é preciso lutar contra o racismo, é preciso ser antirracista. Os negros não voltarão para a senzala, queiram ou não os racistas. Vidas negras importam! *João Marcos Buch é juiz de direto da vara de execuções penais da Comarca de Joinville/SC e membro da AJD   Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 25 de novembro de 2020.    

Responsabilidade civil e consciência racial da magistratura*

A manifestação de raiva e indignação com a morte de João Alberto Silveira Freitas no interior do supermercado Carrefour pode ser feita desde a ordem, a razão, ou mediante a expressão do sentimento, cumprindo, assim, as premissas clássicas do liberalismo (mente/corpo). Nós preferimos ir além por entendermos que o racismo deve ser visto sob os diversos prismas que conformam a sociedade, afastando-se, assim, da falácia jurídica, ou seja, na crença de que apenas o âmbito jurídico pode garantir direitos. Essa a opção de Mbembe, denominada também de visceralidade, ou o uso da expressão dos nossos sentimentos em forma de razão e indignação. Conceição Evaristo já denominou de escrevivência o ato de escrever o que vivenciamos como grupo racial e racializado. Os vídeos onde se vê seguranças espancando até à morte João Alberto, homem negro, companheiro de Milena e pai de quatro filhos, no estacionamento de uma das lojas da rede de supermercados Carrefour, constitui-se em um padrão da realidade vivenciada pela população negra brasileira. A cena não deixa nada a desejar à descrição de qualquer outra ocorrida no período escravocrata no Brasil. A marcação, a vigilância e o controle dos corpos negros nos espaços públicos e privados constitui-se em exemplo suficiente de como se inviabiliza o princípio liberal de liberdade de locomoção e circulação, e, por conseguinte, a igualdade formal entre todos os cidadãos no Brasil, entre outros contextos onde residem seres racializados. O motivo principal é que os nossos corpos sempre foram vistos e percebidos na esfera pública como ameaça, perigo, descontrole da ordem convencional preestabelecida por âmbitos institucionais governados e coordenados por indivíduos de raça branca. Essa construção e difusão da figura do homem negro como indolente, violento e perigoso redunda em diversos outros indicadores sociais os quais demonstram que, na sociedade brasileira, há um lugar específico para a população negra, qual seja, sem emprego ou subocupada, sem ocupar cargos de poder ou de saber, morta ou encarcerada, desumanizada, hierarquizada e sob intenso controle social. Apesar da superação do conceito da superioridade racial desde o ponto de vista biológico, a raça continua sendo o elemento chave na determinação da superioridade e inferioridade entre as pessoas, sobretudo desde a conjunção modernidade/colonialidade (escravidão e colonização). Aníbal Quijano, ao falar sobre colonialidade do poder, discorre sobre a diferença colonial, a qual consiste, em apertada síntese, em uma marcação de grupos de pessoas ou populações, identificados por suas faltas ou excessos, usando essas diferenças como elementos de classificação de inferioridade em relação a quem as classifica. A colonização foi a matriz que permitiu estabelecer essas diferenças e justificar a cristianização com a lógica de classificar e de hierarquizar as pessoas do planeta de acordo com suas línguas, religiões, nacionalidades, cor de pele, grau de inteligência etc. Desse modo, a questão do racismo não se traduz somente em uma questão de cor de pele ou de cor de sangue e, sim, em uma questão de humanidade, pois um grupo de pessoas definiu o que é humanidade e o que não é. Nessa ótica, alguns são considerados néant (Fanon) ou nadies (Galeano), marcando-se bem as fronteiras da humanidade e contradizendo, assim, os princípios do humanismo a priori. A morte de João Alberto deve ser vista como a manifestação de uma violência branca que se vêm incrementando nos últimos anos devido à legitimidade ou cegueira das violências estruturais que são proferidas desde o governo brasileiro, entre outros, em nível mundial. Quando se pensa na responsabilização civil do Carrefour e no processo cível daí decorrente, convém destacar que todas essas concepções racistas capturam as subjetividades dos julgadores e julgadoras, constroem uma forma de pensar que organiza as relações de poder entre os sujeitos de direito e os operadores do Direito e, por isso, devem ser visibilizadas, ainda mais quando se sabe que o Poder Judiciário brasileiro compõe-se, majoritariamente, por homens e mulheres brancos e que, por outro lado, a população preta/parda corresponde a 54% da população brasileira. A correlação entre órgãos judiciais e população se distancia ainda mais no cenário sul-rio-grandense, onde 97% dos magistrados são brancos e a população negra corresponde a pouco menos de 20% do total. Expor a falácia da "neutralidade do órgão judicial" escancara o fato de que o fenômeno jurídico é produto da atividade humana, pertence à cultura e, como fenômeno cultural, não pode ser compreendido como mera técnica, ao contrário, para seu melhor entendimento se permite e se exige uma aproximação histórica, ciente de que a finalidade do processo não se constitui em simples realização do Direito material e, sim, na concretização da Justiça material e na pacificação social. O Direito entendido como uma técnica de domínio social que não se constitui neutra e determina a priori quem pode produzir a lei, quem pode interpretá-la e quais parâmetros serão fixados para interpretar e aplicar a lei, demonstra como os/as magistrados/as possuem grande poder, pois, não apenas dizem qual o direito mais adequado para cada caso, mas conformam atitudes e regulam relações sociais de acordo com um sentido ideológico e político próprio e determinado. Por tal razão, pensar o assassinato de João Alberto como sendo mais uma das milhares de mortes de homens negros no país constitui-se tarefa primeira de todo/toda magistrado/a que analisar eventual pedido de responsabilidade civil a ser ajuizado perante a rede de supermercados Carrefour, pois a causa estrutural evidente, ou seja, o racismo que conduz a todo esse contexto desigual e violento deixa de ser, costumeiramente, enunciado nas decisões que enfrentam idênticos fatos, por razões conscientes ou, até mesmo, inconscientes. Tendo em conta as questões subjetivas que conformam a branquitude brasileira e a inexistência de neutralidade racial na condução de processos judiciais, conferindo especial ênfase ao silenciamento de tudo o que diga respeito, diretamente, à população negra, apresenta-se impositivo afastar o mito da democracia racial, já que a falácia do "todos somos iguais", brancos ou negros, invisibiliza, por completo, toda e qualquer discussão a respeito de raça e racismo, seja no âmbito da Justiça, seja na própria sociedade, gerando, a partir daí diversas outras situações de desigualdade e exclusão. Nesse contexto, especial ênfase há de se dar à consciência racial, conceito trabalhado na teoria crítica racial, junto com branquitude, microagressão (produzida pelo Direito), interseccionalidade, entre outros, o qual, ao reconhecer as diferenças sociais entre raças, recusa a noção de objetividade da lei (que enxergaria o indivíduo para além de/independente de sua raça) e recusa a ideia de que o direito não deve levar em conta a raça. Espera-se que o Poder Judiciário sul-rio-grandense, constituído, em sua ampla maioria, de pessoas brancas, ao analisar o presente caso, leve em conta o contexto social, racial, cultural, político, do Brasil e do Rio Grande do Sul para compreender, a partir da lógica racista estrutural e institucional implementada desde os tempos coloniais, como se (re)produzem as violências sociais e raciais que culminaram com a morte de João Alberto, por asfixia, no interior das dependências do Carrefour.  * Karla Aveline de Oliveira é juíza de Direito (TJRS) em Porto Alegre, especialista em Processo civil (UNISINOS/RS) e mestra em Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo (UPO/Espanha). ** Edileny Tomé da Mata é doutor em Derechos Humanos y Desarrollo (UPO/Espanha), docente/pesquisador na Universidade Pablo de Olavide na Área de Filosofia do Direito, docente e coordenador (UNIA) no mestrado em Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo (UPO/Espanha). Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 23 de novembro de 2020.

Trabalho feminino em ambientes de embelezamento: a estética da negação*

Muitas de nós frequentam esses espaços, sem talvez jamais ter se questionado condições de trabalho dessas trabalhadoras A ausência de discussões profundas, e de avanço, em relação à proteção social das trabalhadoras em ambientes de embelezamento impõe que reflitamos sobre o caráter misógino da invisibilidade das atividades de cuidado e sobre a necessidade de pensar o Direito do Trabalho como espaço da luta feminista. Os ambientes de embelezamento são predominantemente femininos: a maioria absolutas das trabalhadoras é composta de mulheres, assim como são mulheres muitas das proprietárias e frequentadoras desses espaços. O objeto desses empreendimentos é o cuidado do corpo. E neles, o Direito do Trabalho simplesmente não existe. As trabalhadoras são tratadas como autônomas, quando em realidade vendem sua força de trabalho para quem se apropria do lucro que com ela aufere. Nas atividades das cabelereiras, manicures, pedicures estão presentes todos os requisitos que a CLT estabelece para que se reconheça um vínculo de emprego. Elas, porém, são tratadas como empreendedoras de si mesma, sob a lógica da precarização que simplesmente as impede de viver com um mínimo de previsibilidade e segurança. Ainda assim, as frequentadoras desses ambientes não se revoltam e, no mais das vezes, sequer questionam o absoluto desamparo a que essas mulheres são expostas. As atividades exigem habilidades específicas e motricidade fina, são realizadas em condições ergonômicas inadequadas (em pé ou curvadas), em contato com produtos químicos nocivos à saúde, sem equipamentos de proteção ou treinamento específico para prevenir danos à saúde. As trabalhadoras são cotidianamente expostas ao risco de contrair hepatite, sarampo, caxumba, gripe, dengue, poliomielite, febre amarela, varíola, AIDS, catapora, além da COVID-19. O fato de estarem à margem do sistema, exige dessas profissionais jornadas extenuantes, único modo de garantir-lhes renda mensal minimamente adequada. Elas não podem fruir férias ou feriados prolongados, porque a ausência de remuneração compromete a satisfação de despesas ordinárias. O resultado é o comprometimento da saúde física e mental. O isolamento físico necessário em razão da pandemia completa um quadro de absoluto desamparo, pois o fechamento dos centros de embelezamento retira dessas mulheres a possibilidade de sobrevivência. Como falsas autônomas, não possuem sequer o “privilégio da servidão”, representado pela manutenção de um vínculo com redução de salário, nos moldes da Lei 14.020, ela mesma absolutamente contrária à literalidade e a todo o conjunto de valores previstos na ordem constitucional vigente. As trabalhadoras das estéticas estão em uma situação de ainda maior precariedade. Precisam trabalhar, mesmo durante a pandemia e sem proteção alguma. O desespero diante da falta de renda faz com que “escolham” expor seus corpos ao adoecimento e à morte. A Lei 13.352/2016 refere-se a essas atividades como parcerias. Em uma sociedade de trabalho obrigatório, em que remédios e alimentos só são obtidos através do dinheiro obtido pela troca de trabalho por capital, essa é uma previsão perversa. Desafia a ordem constitucional, segundo a qual há um direito fundamental à relação de emprego (artigo 7º, inciso I). Todas as pessoas que sobrevivem do trabalho que realizam, cujos frutos são apropriados por terceiros, são empregadas. É o que diz, claramente, a CLT, quando define os sujeitos da relação social de trabalho subordinado. É o que garante a nossa Constituição. É nítida a presença, nos ambientes de embelezamento, de um direcionamento da atividade, na fixação do preço do trabalho, na organização da agenda e do espaço, nos uniformes, nos critérios para o atendimento. As donas desses locais se apropriam do mais-valor ali produzido. Lucram com o trabalho alheio. A transferência dos riscos do negócio para a trabalhadora não descaracteriza a relação de emprego. Ao contrário, implica descumprimento de um dever fundamental. Do mesmo modo, não o descaracteriza o fato de a empregadora não dirigir diretamente os serviços ou utilizar de subterfúgios, tal como o repasse de despesas às empregadas (limpeza de uniformes ou compra de produtos). Em regra, excluídos aqueles instrumentos básicos de que a trabalhadora dispõe praticamente como extensão de seus próprios membros, os meios de produção efetivamente necessários para o desenvolvimento da atividade (e normalmente mais dispendiosos), como o local para o desenvolvimento do trabalho, cadeira e alguns aparelhos mais sofisticados, são fornecidos por quem efetivamente emprega a força de trabalho e com ela obtém lucro. Pouco importa que essas trabalhadoras tenham “carteira de clientes”; que possam ou não ser substituídas; que haja variação nos valores do trabalho; que exista na empresa uma recepcionista que direcione e receba pelo serviço ou que o pagamento seja direto. É irrelevante também o caminho feito pelo dinheiro (se passa pelas mãos da empregadora antes de chegar à trabalhadora ou não), pois mesmo no modelo típico da fábrica, muitas vezes o lucro somente chega às mãos da empregadora após serem deduzidos todos os custos da produção, incluída a remuneração da(o)s empregada(o)s. Pouco importa, ainda, se a distribuição é feita pela empregadora ou, para evitar mais esse desgaste, por outra pessoa empregada. Importa perceber que ao final do processo estará garantido, à trabalhadora, o seu meio de subsistência física, e à empregadora o seu lucro. Trata-se, pois, de típica relação de emprego. Muitas de nós frequentam esses espaços, sem talvez jamais ter se questionado sobre as razões para a condição de desamparo em que essas trabalhadoras são colocadas. O fato é que tanto nas tarefas de reprodução social, negadas como forma de exploração capitalista, quanto nas funções realizadas em centros de embelezamento, estamos diante de atividades de cuidado “tipicamente” femininas e, exatamente por isso, mais facilmente assimiladas como algo que pode ser realizado sem o mínimo de proteção social. A luta feminista, necessariamente anticapitalista e emancipadora, deve reconhecer no Direito do Trabalho uma importante condição de possibilidade para a alteração das estruturas misóginas que atravessam e sustentam a lógica da exploração do trabalho pelo capital: um caminho para a transformação social, portanto. Essa transformação não ocorrerá enquanto mantivermos espaços de exploração ilimitada do trabalho humano, de que os ambientes de estética são apenas um exemplo. Não ocorrerá enquanto não reconhecermos a importância do trabalho de cuidado e o machismo estrutural que facilita e determina a sua invisibilização e discriminação. Não ocorrerá, enquanto não assimilarmos o peso da questão racial para essa cegueira seletiva diante de algumas atividades laborais. O trabalho das manicures, pedicures e cabelereiras é trabalho subordinado e deve receber toda a proteção social que daí decorre. Essa é uma dívida histórica a ser saldada com as mulheres que atuam nesses espaços e que, diante do advento da pandemia, se revela ainda mais urgente e inadiável.  * Valdete Souto Severo, É Presidenta da AJD - Associação Juízes para a Democracia. Diretora e Professora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS; Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e Juíza do Trabalho.  Artigo publicado originalmente no site Carta Capital no dia 19 de novembro de 2020.

O STF, a prova ilícita e a violação dos corpos de mulheres*

O Supremo Tribunal Federal tem em suas mãos mais um processo no qual fica clara a violação praticada pelo Estado no ambiente prisional e, mais uma vez, os olhos estão postos com a expectativa que o STF seja efetivamente o guardião da Constituição Federal. Trata-se do ARE 959.620, com repercussão geral, que tem como cerne a revista vexatória realizada para ingresso em estabelecimento prisional e suas consequências para o plano probatório. Para o ministro relator, Edson Fachin, que foi acompanhado pelos ministros Luís Roberto Barroso e Rosa Weber, a revista viola a dignidade humana e as regras de proteção constitucional e, por consequência, as provas dela decorrente são ilícitas. O ministro Alexandre de Morais abriu divergência e aguarda-se a devolução do processo pelo ministro Toffoli, que pediu vista no último dia 29. A revista íntima, que é vexatória, é um procedimento cruel, desumano e degradante em que milhares de pessoas, majoritariamente mulheres, adolescentes, idosas e inclusive crianças, ficam nuas, obrigadas a expor as partes íntimas do corpo. Conduta massificada e naturalizada. Os parentes são considerados, a priori, autores de crime. Caracteriza-se por atos de agentes estatais, com ordem de desnudamento total ou parcial, agachamento, saltos, movimentos corpóreos (como tosse, flexões, pressões contra a parede), observação de órgãos genitais nus e até procedimentos de toque corporal e utilização de espelhos. Todos esses atos ferem a dignidade humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, assim estabelecido na nossa CF. Afrontam o direito à intimidade e à vida privada, à integridade física, psíquica e moral, à honra, ao devido processo legal, à inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito, aos princípios constitucionais da não autoincriminação e da intranscendência das penas, caracterizando-se por um tratamento cruel e degradante. Além da nossa CF, temos a normativa de proteção internacional à qual o Brasil está sujeito, no exercício de sua soberania, como a Declaração Universal de Direitos Humanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos, as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos (regras de Mandela), as Regras de Bangkok, a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes e a Convenção de Belém do Pará. Mas não é de hoje que a questão da revista vexatória é colocada em foco pelo Poder Judiciário. Muitos fecharam os olhos para essa violência, que ocorre desde sempre. Mas nem todos se mantêm omissos. A título de exemplo, no âmbito correcional, temos o oficio da juíza corregedora da Vara de Execuções Criminais de Sergipe, de 9/8/1999, que relatou o que chegou ao seu conhecimento e ordenou: "Fica terminantemente proibida a exposição de corpos femininos nus, em macas, exames de toque na genitália feminina ou coisas correlatas". No âmbito jurisdicional, temos inúmeras decisões que reconhecem a transgressão à normativa constitucional e legal e consideram a prova como ilícita. Nesse sentido, a título de exemplo, na Apelação nº 1500264-28.2016.8.26.0536/TJSP, de 2018, da qual fui relatora, foi decidido que em razão da revista vexatória houve violação da normativa estabelecida pelo Brasil, e nessa medida a prova é ilícita, no ato originariamente realizado e seus subsequentes e, nesta medida, se impôs a absolvição. A construção dos direitos humanos é dolorosamente lenta. Faz longos anos que organizações sociais denunciam e cobram mudanças. Indicam a necessidade de usar a tecnologia para detectar metais e drogas, no controle de entrada das penitenciárias, fazendo o uso de expedientes eletrônicos, com raquetes, scanners e portais, e que a revista pessoal seja feita nos presos, após as visitas, e não nos visitantes. Vieram à lembrança os diálogos travados pela rede Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas, dos quais participei. Em outubro de 2003, no o II Encontro "A mulher no sistema carcerário", indicou-se o uso de meios mecânicos para realização da revista, em cumprimento da Resolução 1 de 21/3/2000 do CNPCP, ainda que prevendo a revista. Era um primeiro passo de regulamentação, que foi superiormente aprimorada com a resolução nº 5, de 28/08/2014, do mesmo conselho. Também foram encaminhadas, pela Pastoral Carcerária da CNBB, em data já distante, informações ao Ministério Público-SP sobre revistas vexatórias procedidas em crianças. Várias organizações — Cejil e a rede Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas — realizaram audiência temática e apresentaram relatório sobre encarceramento de mulheres, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), com denúncia sobre essa prática recorrente em todo o país. Porém, não temos uma norma nacional ainda. Há o projeto de lei aprovado no Senado Federal (PLS 480/2013) que proíbe a revista vexatória, e que agora tramita na Câmara dos Deputados. Na sua justificação há referência ao relatório acima mencionado. No 156º Período Ordinário de Sessões da CIDH, em 2015, foi realizada a audiência regional "Direitos Humanos e revistas corporais de visitantes de pessoas privadas de liberdade nas Américas", mencionada no acórdão acima. No relatório apresentado constou: "O caráter intrusivo alude ao fato de que a revista dos visitantes impõe-se diretamente sobre seus corpos ao exigir o pleno desnudamento e a inspeção de partes íntimas, sem qualquer respeito à privacidade. Além disso, a revista vexatória é um recurso rotineiro, empregado indistintamente e a despeito da existência de fato anterior que justifique seu cabimento ao caso concreto". Já não há dúvida, que para além de abusiva, a prática não é capaz de garantir a segurança dos presídios. No voto do ministro Fachin há menção a dados da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, de 2012. Foram 3.407.926 visitas e 493 apreensões, que podem ser detectadas por modos não indignos. Informativo da Rede Justiça Criminal, de julho de 2015, apresenta dados de algumas penitenciárias de São Paulo. De um universo de cerca de 276 mil visitantes, nenhuma arma foi apreendida, foram 45 casos de drogas e 43 de celulares (eventualmente com a mesma pessoa). Mais lembranças. Como procuradora do Estado de São Paulo, em 1988, vi o processo administrativo de um funcionário de uma penitenciária acusado de fazer ingressar cerca de oito quilos de maconha dentro de um botijão de gás. É uma hipocrisia afirmar que as drogas ingressam no sistema através das visitas. É certo que a legislação interna apresenta algum aprimoramento. Temos a Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, que determinou que os estabelecimentos penitenciários devem ter aparelho detector de metais. Em vários Estados há vedação expressa para a prática da revista vexatória e regulamentação, seja pela atuação do Legislativo, com edições de leis estaduais (Rio e São Paulo) ou por decreto legislativo (Maranhão) ou, ainda, com edição de portarias, na órbita do executivo (Amazonas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Mato Grosso, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Sergipe, Tocantins e Rondônia), mas tudo ainda é insuficiente. É preciso que todos nós façamos um exercício de alteridade, colocando-nos no lugar dos visitantes. É preciso lembrar que os corpos violados são de mulheres, mães, idosas e crianças. É necessário imaginar a violência sexual contra essas mulheres quando uma revista vexatória é realizada por agentes de Estado. É preciso lembrar que o corpo humano é o solo sagrado de cada ser. Foi um longo período até chegarmos a esse julgamento. Neste momento, cabe ao Supremo Tribunal Federal atuar de modo a tirar os princípios e fundamentos constitucionais do papel e fazer deles realidade, superando a profunda negação de direitos que se faz presente para as mulheres que permanecem nas filas dos presídios brasileiros. Que o ritual abjeto não seja referendado pelo STF, sob pena de o Judiciário lançar sua assinatura na cultura que diz que tudo é permitido ao corpo de mulheres e que não há limites, nem para o Estado.  Kenarik Boujikian* é desembargadora aposentada do TJ-SP e especialista em Direitos Humanos.  Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 11 de novembro de 2020.  

Mulheres que enfrentaram o machismo*

O Blog pediu a um grupo de leitores a indicação de magistradas, advogadas, procuradoras, promotoras e defensoras públicas que tiveram papel marcante ao enfrentar o machismo no Judiciário. A proposta teve origem no episódio em que Mariana Ferrer, vítima de estupro, foi humilhada por um advogado numa audiência em Santa Catarina diante de um juiz e um procurador aparentemente omissos. O resultado foi a formação de uma lista de 50 nomes. São mulheres que alcançaram postos de comando, ou sofreram e testemunharam discriminações de gênero. A seleção inclui autoras de obras sobre violência contra a mulher e jovens profissionais que podem relatar o que está mudando nessas instituições. [veja a relação no final deste post] O machismo é definido como o comportamento que tende a negar à mulher a extensão de prerrogativas ou direitos do homem. É um fenômeno que afeta as mulheres em qualquer atividade. É mais grave no Judiciário pelo poder conferido a seus membros. “A audiência de Santa Catarina mostra o Judiciário e o sistema de Justiça cruel com as mulheres”, escreveu nas redes sociais a desembargadora aposentada Kenarik Boujikian, do TJ-SP. “Nada do que vimos nesta audiência lembra o papel do Judiciário na perspectiva da construção de um país que tenha a dignidade humana como fundamento”, disse. Em 2010, Kenarik condenou a 278 anos de prisão o ex-médico Roger Abdelmassih, acusado de estuprar em sua clínica de reprodução 56 mulheres que sonhavam com a maternidade. [A pena foi reduzida depois para 181 anos de prisão, por 48 estupros de 37 de suas pacientes]. Elas sofreram ao ser violentadas, ficaram expostas quando denunciaram os crimes e frustradas ao verem o “serial rapist” fugir da Justiça depois da condenação. O ministro do STF Gilmar Mendes concedeu liminar para o ex-médico recorrer em liberdade. O advogado Márcio Thomaz Bastos sustentara, entre outras alegações, que o fato de 56 crimes sexuais terem sido narrados como estupro “incendiou a opinião pública”. “O mundo penal ainda é dos homens”, Kenarik definiu em 2016. A frase ainda é atual. Em várias ocasiões, ela sustentou ter sido alvo de machismo no tribunal paulista. Em agosto de 2017, o Conselho Nacional de Justiça anulou, por 10 votos a 1, a pena de censura que o Órgão Especial do TJ-SP aplicara a Kenarik, acusada de ter violado o princípio da colegialidade e libertado réus que estavam presos por mais tempo do que a pena fixada. A polêmica sobre as discriminações no Judiciário ganhou maior evidência com a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2004. Em 2005, um estudo de duas ONGs concluiu que a participação da mulher na Justiça é tanto menor quanto maior é a instância julgadora. Na primeira sessão como presidente do Supremo Tribunal Federal, em setembro de 2016, a ministra Cármen Lúcia declarou: “Há sim discriminação contra a mulher, mesmo em casos nossos de juízas, que conseguimos chegar à posição de igualdade”. Em junho de 2017, o TJ-SP decidiu criar o “Comitê de Gênero”, com o objetivo de “propor e fomentar ações institucionais de sensibilização e capacitação de magistrados acerca da temática de gênero”. Entrevistas secretas É possível que algumas mulheres tenham desistido de ser magistradas, mesmo ultrapassando a fase inicial dos exames no TJ-SP, o maior tribunal estadual do país. Em 2007, o juiz Marcelo Semer, de São Paulo, tratou neste espaço das entrevistas secretas nos concursos de ingresso à magistratura. “Costumeiramente, questões constrangedoras são abordadas, desde sutis indagações acerca da sexualidade de candidatos, até temas que possibilitem o controle ideológico dos pretendentes às vagas de juiz”, afirmou Semer. Entre as perguntas feitas por desembargadores foi mencionada a seguinte: “Mas a senhora está grávida. Não acha que já começaria a carreira como um estorvo para o Poder Judiciário”? Não faz muito tempo, a desembargadora Maria Lúcia Pizzotti, que denunciou contratos suspeitos no Tribunal de Justiça de São Paulo, foi tratada como um estorvo para o Judiciário. Ela teve a palavra cerceada no Órgão Especial da corte. Quando questionou valores do orçamento, foi interrompida várias vezes. Rindo, desembargadores simulavam confundir o nome da colega com o da ministra Cármen Lúcia, então presidente do STF. Maria Lúcia diz que sua carreira foi marcada por discriminações. Quando tomou posse como juíza, em 1988, um corregedor-geral explicou por que era contra mulheres na magistratura: “Mulheres servem para cuidar da família, procriar e pilotar o fogão”. A juíza e escritora Andréa Pachá, do TJ do Rio de Janeiro, diz que “o machismo, quando falamos de um espaço de poder, é mais sutil e só é percebido por aqueles que têm vontade de enxergar. Daí porque a negação insistente não só de homens, mas também de mulheres, de que exista desigualdade na profissão”. Ainda Pachá: “Uma juíza firme e exigente ser adjetivada como mal-amada não é vista como vítima de machismo. As piadas sexistas são aceitas e desqualificadas como ofensas porque, afinal, brincadeiras não são manifestação de machismo”. Pachá diz que “a afirmação de que não há machismo na Justiça vem da mesma ideia de que uma mentira repetida muitas vezes vira verdade”. Em artigo publicado neste Blog, em novembro de 2015, a escritora afirmou: “Fundamental é que sejam expostas as entranhas da chaga que contamina a dignidade e silencia as muitas mulheres que chegam ao Judiciário e que não encontram as portas abertas para que a igualdade não seja apenas um texto formal e constitucional dos nossos direitos”. Em abril de 2018, a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), maior entidade de classe da magistratura, teve que tratar publicamente do machismo no Judiciário, tema que os tribunais evitam discutir. Um grupo de mais de 30 juízas, de vários estados, pediu desfiliação da entidade. Seguiram as juízas Geilza Diniz, Rejane Jungbluth Suxberg e Carla Patrícia Lopes, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), inconformadas com a ausência de magistradas entre os conferencistas do 23º Congresso Brasileiro de Magistrados. Dos 28 palestrantes do evento, havia apenas duas mulheres, e elas não eram magistradas: a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e a senadora Ana Amélia (PP-RS). A juíza-escritora Andréa Pachá também pediu para deixar a entidade. Ela foi vice-presidente da AMB e já assumiu interinamente a presidência da associação. “Vejo com profunda tristeza a falta de sensibilidade para a importância da pauta da igualdade”, disse Pachá. Território dos homens A arquitetura das instalações do Judiciário sugere que aqueles espaços foram originalmente destinados a machos. O primeiro banheiro feminino no Salão Branco do Supremo Tribunal Federal só foi construído na gestão da ministra Ellen Gracie, em 2000. É o que revelam os jornalistas Felipe Recondo e Luiz Weber, no livro “Os Onze – O STF, Seus Bastidores e Suas Crises”. “Ainda hoje, no intervalo das sessões, os ministros desprezam a indicação de gênero na porta e o utilizam também”, afirmam os autores. Ou seja, o machismo permanece naquele espaço que deveria ser privativo das mulheres. Essa discriminação não ocorria apenas no Judiciário. A advogada Taís Borja Gasparian lembra que a antiga sede da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) não tinha banheiro feminino no andar da sala do Conselho Diretor. “Eu tinha que pegar um elevador ou descer um lance de escada pra ir ao banheiro”, diz. Anos atrás, o TJ-SP também não tinha banheiro para mulheres no andar dos julgamentos. “Não é exatamente machismo mas é”, comenta a advogada. Em 2002, Taís Gasparian foi chefe de gabinete do então ministro da Justiça, Paulo de Tarso Ramos Ribeiro. Ela tinha que usar o banheiro do titular da Pasta. “Não ter banheiro feminino era de fato muito desagradável. Eu me sentia fora do ambiente. As mulheres se sentiam excluídas. O local não era para elas”, diz. A macheza também se manifesta nas sabatinas do Senado Federal, em meio a bajulações. Primeira mulher a presidir o STF, a ministra Ellen Gracie ouviu do senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR), durante a sabatina: “Como ginecologista, aprendi a lidar com as mulheres, a entender muito profundamente a sensibilidade feminina”. Sem levantar a voz, a presidente Ellen Gracie conduziu com serenidade o recebimento da denúncia do mensalão, enquanto os ministros mais exaltados trocavam insultos. Primeira mulher nomeada para o Superior Tribunal de Justiça, Eliana Calmon admitiu, quando foi sabatinada, que os senadores Edison Lobão, Jader Barbalho e Antonio Carlos Magalhães foram padrinhos de sua indicação. “Se não tivesse [esses padrinhos] não estaria aqui”, respondeu. Quando foi corregedora nacional de Justiça, Eliana Calmon sofreu forte campanha, instigada por magistrados paulistas, por dizer que havia “bandidos de toga” no Judiciário. Não foi ouvida quando disse que a corrupção atingia uma minoria inexpressiva da magistratura. Ela foi alvo de queixa-crime oferecida por três associações de magistrados sob a alegação de quebrar sigilos ao investigar patrimônio suspeito de 62 juízes. A PGR arquivou a representação. Apesar desse histórico, Eliana Calmon disse nunca ter sofrido discriminação no ambiente de trabalho pelo fato de ser mulher. “Essa restrição não vem só dos homens. Vem também das próprias mulheres, que deixam de se candidatar aos cargos de comando”, afirmou Eliana. Ana Lúcia Amaral, procuradora regional da República aposentada, vai além. “Ao longo da carreira, observei que muitas mulheres são mais machistas que homens. Afinal, machistas são criados por mulheres”, ironiza. “Penso que o machismo se mostra no número de mulheres nas carreiras jurídicas. Parece que a magistratura nos Estados continua mais fechada”, diz. Mulheres “poderosas” Ao lado das procuradoras Janice Ascari, Luíza Frischeisen e Isabel Groba, Ana Lúcia participou, em 2003, da Operação Anaconda, que desmantelou na Justiça Federal em São Paulo uma quadrilha que negociava decisões judiciais, envolvendo magistrados, advogados, policiais federais e até um subprocurador-geral da República. As procuradoras Maria Luísa Carvalho, Isabel e Janice atuaram no caso do Fórum Trabalhista de São Paulo, que levou à prisão do juiz Nicolau dos Santos Neto, do ex-senador Luiz Estevão de Oliveira e de dois empresários cúmplices. O escândalo do superfaturamento na construção da nova sede do TRT-SP veio à tona em 1998. Elas acompanharam o caso até a decisão em última instância, desmontando chicanas de advogados. “Alguém comentou que ‘acusação de juiz só com mulheres’”, diz Ana Lúcia. Na época da Operação Anaconda, o TRF-3 era presidido pela juíza federal Anna Maria Pimentel. A relatora do caso foi a juíza federal Therezinha Cazerta. As duas tiveram papel relevante na tramitação dos inquéritos e da ação penal. (*) Há manifestações de machismo nas sessões do STF e no CNJ. No julgamento de um habeas corpus em favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski interromperam e questionaram o voto da ministra Rosa Weber. “Jamais fariam isso com outro ministro”, comentou Maria Berenice Dias, a primeira juíza e desembargadora do TJ-RS. Ela é advogada especializada em direito homoafetivo. Em agosto de 2016, a então corregedora nacional de Justiça, Nancy Andrighi, encerrou o mandato sem que Lewandowski, então presidente do CNJ, tivesse levado a julgamento cerca de 40 processos que ela tinha deixado prontos para decisão do colegiado. Nancy Andrighi “abandonou o plenário sem se despedir nem receber a homenagem prevista”, informou o Painel da Folha. Há dúvidas se Lewandowski faria isso com um corregedor. Ministério Público desigual Em junho de 2018, o CNMP concluiu pesquisa que demonstrou a desigualdade de gênero e a baixa representatividade feminina nos postos de decisão do Ministério Público. “O Ministério Público brasileiro, no geral, é ainda uma instituição machista e desigual”, comentou no Facebook o procurador regional da República Welington Cabral Saraiva. Segundo a pesquisa, o MP é composto por 7.897 membros do sexo masculino e 5.114 do sexo feminino. Desde a Constituição de 1988, 52 mulheres e 240 homens haviam ocupado cargos de procurador-geral, o que representava cerca de 18% de lideranças femininas versus 82% de lideranças masculinas. O desequilíbrio é constatado no próprio CNMP: em onze anos de existência, 86 homens exerceram mandatos no conselho, contra 11 mandatos de mulheres. Nesse período, só uma mulher chefiou a Corregedoria Nacional do Ministério Público. A procuradora de Justiça Valderez Abbud, do MP-SP, atuou no tribunal do júri de São Paulo no julgamento de três crimes graves cometidos por um juiz e dois membros do MP contra as vidas de suas mulheres: os promotores Igor Ferreira da Silva e João Luiz Portolan Minnicelli Trochmann e o juiz Marco Antonio Tavares. Igor foi defendido por Márcio Thomaz Bastos no primeiro caso de homicídio julgado pelo Órgão Especial do TJ-SP. Acusado pela morte de Patrícia Aggio Longo e por aborto, foi condenado, por 25 votos a zero, a 16 anos e 8 meses de prisão. Da Procuradoria do Estado de São Paulo foi indicado para a lista o nome da procuradora Flávia Piovesan, ex-secretária-especial de Direitos Humanos [governo Michel Temer]. Sobre a questão do machismo, em 2016 Flávia Piovesan afirmou que o Brasil tem legislação adequada, mas carrega uma cultura atrasada, pautada no sexismo, que leva à “perversidade de fazer da vítima a culpada”. A atuação do Ministério Público nos estados varia de acordo com o grau de independência em relação ao Executivo estadual. Para uma melhor compreensão do que ocorre hoje no Ministério Público (federal e estadual), a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen sugere conhecer a experiência dos jovens procuradores e promotores. Ela recomenda ouvir as promotoras que trabalham com violência doméstica. Elas podem revelar pontos de machismo no sistema de justiça. E avaliar em que medida a Lei Maria da Penha criou um ambiente propício para o combate ao machismo. “As percepções, desafios e atitudes diferem”, diz Frischeisen. Eis alguns nomes sugeridos pela subprocuradora-geral: Nathalia Mariel, Hayssa Medeiros e Julia Rossi (PR-AM). Valéria Scarance (MP-SP) e Jaceguara Dantas da Silva (MP-MS), e Mônica Nicida (PGR). Os leitores fizeram especial homenagem in memoriam a três mulheres: Esther de Figueiredo Ferraz – Ministra da Educação no governo João Figueiredo, foi a primeira mulher a ocupar a Pasta. Enfrentou as resistências por pertencer a um governo da ditadura, mas contou com apoio de vários grupos feministas. Na década de 40, ingressou no ensino superior, rompendo os preconceitos que condenavam as mulheres nas universidades. Foi a primeira reitora da Universidade Mackenzie. Exerceu a advocacia criminal e de família. Em 1951, participou da elaboração de um plano de combate à prostituição e ao lenocínio. Integrou comissão que criou institutos penais agrícolas no estado de São Paulo. Ada Pellegrini Grinover – Nascida na Itália, foi uma das maiores juristas e processualistas do país. Defendeu a primeira tese oficial de doutorado na Faculdade de Direito da USP. Foi procuradora do Estado de São Paulo. Participou da elaboração do Código Civil, da reforma do Código de Processo Penal e do Código de Defesa do Consumidor. Foi coautora da Lei de Interceptações Telefônicas, da Lei de Ação Civil Pública e da Lei do Mandado de Segurança. Alexandra Lebelson Szafir – Bacharel em Direito pela USP, era sócia do escritório Toron, Torihara e Szafir Advogados e membro do IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Atuou voluntariamente para o IDDD e o Instituto Pro Bono em causas voltadas ao terceiro setor. Um parecer jurídico de sua autoria evitou a transferência de internos da Febem para uma unidade prisional de adultos. Morreu em 2016, aos 50 anos. Lutava contra a esclerose lateral amiotrófica (ELA) diagnosticada em 2005. (*) Com acréscimo de informações em 11/11. * Mulheres que enfrentaram o machismo Ada Pallegrini Grinover – in memoriam (professora e jurista) Alexandra Lebelson Szafir – in memoriam (advogada) Ana Lúcia Amaral (procuradora regional da República aposentada) Andréa Pachá (juíza do TJ-RJ) Angélica de Almeida (desembargadora TJ-SP) Beatriz Stella Azevedo Affonso (advogada) Carla Patrícia Lopes (juíza do TJDFT) Cármen Lúcia (ministra do STF) Claudia Aoun Tannuri (defensora pública) Consuelo Yoshida (juíza federal do TRF-3) Eliana Calmon (advogada, ministra aposentada do STJ) Ellen Gracie (advogada, ministra aposentada do STF) Esther Figueiredo Ferraz – in memoriam (advogada, ex-ministra da Educação) Eunice Prudente (advogada, professora) Flávia Piovesan – (procuradora do Estado) Geilza Diniz (juíza de direito do TJDFT) Hayssa Medeiros (procuradora da República) Isabel Groba Vieira (procuradora da República) Ivana Farina (conselheira do CNJ, procuradora de Justiça MP-GO) Ivete Ferreira (advogada e primeira diretora da Faculdade de Direito da USP) Jaceguara Dantas da Silva (promotora de Justiça, MP-MS) Janice Ascari (procuradora regional da República) Julia Rossi de Carvalho Sponchiado (procuradora da República no AM) Kenarik Boujikian (desembargadora aposentada do TJ-SP) Laurita Vaz (ministra do STJ) Ligia Bisogni (desembargadora do TJ-SP) Liliana Buff de Souza e Silva (advogada, procuradora de Justiça aposentada) Luiza Cristina Fonseca Frischeisen (subprocuradora-geral da República) Luzia Galvão (primeira desembargadora do TJ-SP) Maria Apparecida de Toledo (diretora de cartório) Maria Berenice Dias (advogada, desembargadora aposentada do TJ-RS) Maria Lucia Pizzotti (desembargadora do TJ-SP) Maria Luísa Carvalho (procuradora regional da República) Maria Tereza Sadek (cientista política) Maria Thereza de Assis Moura (corregedora nacional de Justiça) Marisa dos Santos (juíza federal do TRF-3) Nair Lemos (primeira professora titular de direito da USP) Nancy Andrighi (ministra do STJ, ex-corregedora nacional de Justiça) Nathalia Mariel (procuradora da República) Raquel Dodge (ex-procuradora geral da República) Rejane Jungbluth Suxberg (juíza do TJDFT) Rosa Maria Andrade Nery (jurista, desembargadora aposentada) Rosa Maria Cardoso da Cunha (jurista) Rosana Chiavassa (advogada) Silvia Pimentel (professora da Faculdade de Direito da PUC-SP) Taís Borja Gasparian (advogada) Tatiane Moreira Lima (juíza do TJ-SP) Tereza Exner (procuradora de Justiça do MP-SP) Therezinha Cazerta (ex-presidente do TRF-3) Valéria Scarance (promotora de Justiça do MP-SP)  Artigo publicado originalmente no site Folha de São Paulo no dia 10 de novembro de 2020.  

O mito da ressocialização e a eterna luta por ela*

Faz um par de semanas, numa palestra online a uma faculdade de direito, uma acadêmica me perguntou se eu acreditava em ressocialização. Fui implacável na resposta. Afirmei, com todas as letras, que não, não acreditava. — Doutor, no final do ano eu vou estar no direito, já poderei ganhar a liberdade, mas nunca estudei, não aprendi um trabalho, não sei fazer nada, não sei como vou me sustentar na rua, não sei o que vai ser de mim! Eu estava na prisão para tratar de assuntos administrativos e não pretendia entrar nos pavilhões, mas no meio do caminho resolvi assim fazer, pois, alguém me sussurrara que seria importante minha presença. Após constatar os problemas que se repetiam e se agravavam, vi um rapaz que queria dizer algo, porém se calava. Pálido e magro, cabelo raspado no que devia ser “máquina número 2”, trajando puídas bermuda e camiseta amarelas, não devia ter mais de 20 anos. Ele perdeu o receio e respondeu. A resposta está acima, no início deste texto. Faz um par de semanas, numa palestra online a uma faculdade de direito, uma acadêmica me perguntou se eu acreditava em ressocialização. Fui implacável na resposta. Afirmei, com todas as letras, que não, não acreditava. Entre as funções da pena, no estado democrático de direito, está a oficialmente declarada prevenção. A sanção seria justificada para ressocializar e reeducar o “delinquente”, intimidar os que não teriam como se ressocializar e finalmente neutralizar os “incorrigíveis”. Na realidade concreta, porém, a pena abandonou — ou nunca teve — sua função ressocializadora, mantendo apenas as funções intimidadora e neutralizante, como projeto político de controle dos indesejáveis. Não se ressocializa quem nunca foi socializado, quem nunca teve oportunidades para crescer e viver como cidadão, sujeito de direitos e deveres, com inclusão social e econômica. O perfil dos presos no país, quase 900.000 homens e mulheres, para a metade das vagas, cujo racismo estrutural faz com que sejam em sua maioria negros e pobres — isso sempre precisa ser dito — é composto na quase integralidade por quem não concluiu o ensino fundamental ou médio. Muitos não desenvolveram habilidades para o trabalho e chegaram à maioridade, desprovidos da presença das instituições. Essas pessoas, ao longo de suas histórias, acabaram empurradas para a margem, para a miséria, para a violência. Suas existências foram posicionadas num lugar de não ser, de inessencial, de objeto. Quando elas saíram da invisibilidade e se lançaram sobre os incluídos, então se confrontaram com o estado, um estado que se apresentou exclusivamente com seu braço penal, controlador, punitivo, que logo as trancafiou em calabouços e tatuou em suas testas o estigma eterno dos condenados. Na prisão, entre ordens e disciplinas, as normas que objetivam algum resgate humano e de dignidade são ignoradas. Não há oferta de educação, de cultura, de formação. Quanto ao trabalho, nas poucas ocasiões em que algum é propiciado, trata-se de um ofício que serve, para além de qualificar, especialmente para reproduzir exploração durante e depois do retorno à liberdade. Pode-se falar, portanto, em ressocialização no sistema penitenciário brasileiro? É certo que não! Entretanto, já escrevia o poeta: “Os homens, com o auxílio das convenções, têm resolvido tudo com facilidade e pelo lado mais fácil da facilidade; mas é claro que precisamos ater-nos ao difícil” (Rainer Maria Rilke). O difícil nisso tudo é que o mundo real não é uma palestra, uma tese acadêmica ou uma estatística. Quando eu vou à prisão, quando encontro os apenados, e deles ouço súplicas pelo cumprimento da lei e de ajuda da Justiça, não posso lhes dizer que o sistema é assim mesmo, uma máquina de moer gente, que minha luta é pela superação da cultura do encarceramento, por alternativas penais, num estado de bem-estar social, onde desde a primeira infância as oportunidades existam e a dignidade da pessoa seja inegociável, irrenunciável e respeitada. Quem está preso, sem um colchão para dormir ou um sabonete para tomar banho, sem um remédio para aplacar uma dor de dente, precisa de respostas e ações imediatas, não de um juiz que diz não acreditar na prisão ou na ressocialização e que deseja um mundo sem prisões. Por isso, exigir do estado que cumpra a lei de execução penal, que garanta um mínimo existencial para os encarcerados, reduzindo os danos do aprisionamento, é um dever inafastável ao juiz da execução penal. — Você é novo e sempre é tempo de aprender — disse ao jovem — A vida é difícil, ainda mais para quem é egresso da prisão, mas é possível sair desse ciclo. Vou pedir que a direção veja se há alguma vaga para você na penitenciária, lá tem salas de aula e tem trabalho. Não há lugar para todos, muitos aqui estão na mesma situação que você, mas isso não é desculpa, está na lei, é seu direito estudar e trabalhar. A ressocialização é um mito, mas como Sísifo, a quem, não é de hoje, sempre recorro, estou destinado a lutar por ela.  *João Marcos Buch, juiz de direito e membro da Associação Juízes para Democracia - AJD.  Artigo publicado originalmente no site Jornal GGN no dia 09 de novembro de 2020. 

“O senhor é o juiz Buch?”*

Escrevi um texto no final de semana e, depois de algumas revisões, eu o dei por encerrado, pronto para publicação. Dias depois, porém, algo mais aconteceu, que acrescentarei na parte inicial do enredo. Na saída do Fórum para o almoço, em frente à portaria, um jovem se aproximou e me estendeu a mão. "- Não posso lhe apertar a mão, é a pandemia — alertei. - Então, de maneira amistosa, fechei o punho, o que o rapaz também fez, e assim nos cumprimentamos, punho a punho, um costume dos novos tempos. - O senhor é o juiz Buch? — falou o rapaz, num misto de pergunta e afirmação. - Sim, sou. O que você deseja? - Meu nome é Carlos — fictício —, ganhei a liberdade faz 15 dias. Queria saber se já tenho que me apresentar na Justiça. - Carlos, por enquanto as apresentações estão suspensas. - Ah! Mas tenho umas dúvidas. Queria saber sobre o tempo de pena que ainda falta cumprir. - Essa informação deve estar no documento que você recebeu quando da soltura. Vá até ali na portaria e veja como fazer um agendamento. Assim, no dia marcado, você poderá entrar e ir ao cartório para se inteirar de tudo. E procure um advogado. - Mas não tenho como pagar um. - Então vá na defensoria pública, o endereço você igualmente consegue ali na portaria. - Está certo, seu juiz, vou ali agora. - Sim, faça isso. Vai dar tudo certo. Tenha um bom dia! - Obrigado. Bom dia para o senhor também!" Esse acréscimo, ora feito, é importante para ilustrar mais ainda o que eu queria dizer no texto original, que agora segue. Num dia qualquer desta primavera, ao retornar para o Fórum após o almoço, entrei pelo acesso principal, que fica de fronte à rua. Na portaria, um rapaz falou meu nome, “Dr. Buch, seu juiz”. Olhei para ele e acenei, imaginando que devia se tratar de um apenado em regime aberto ou sursis. Quando parei para aferição da temperatura, protocolo exigido para todos que acessam o prédio, a vigilante se aproximou e falou de uma pessoa que aguardava do lado de fora, na fila por onde o público entra, e que insistia em falar comigo ou com alguém da vara de execuções penais. Ela apontou para o jovem que, segundos antes, havia dito meu nome. Ao que parecia, ele usava tornozeleira eletrônica e precisava entregar algum documento, sendo que teria tentado contato por telefone, mas não conseguido, tendo assim resolvido vir ao Fórum pessoalmente. Retornei para perto dele e disse que logo o atenderiam. Chamei o assessor que trabalha comigo, para que verificasse a situação e pedi que deixassem o moço acessar o interior do prédio, mesmo sem horário agendado — outro protocolo da pandemia — respeitando-se os passos sanitários e de segurança. Depois, observando o assessor se dirigir ao rapaz, o convidar a apresentar os documentos, fazer o cadastro e adentrar, agradeci a solicitude de todos e subi as escadarias em direção ao gabinete. Diante da pandemia, os Fóruns ficaram fechados por cerca de seis meses, com 100% de trabalho remoto. A retomada presencial tem sido gradualmente. Nesta etapa, cerca de 30% dos servidores retornaram e os demais permanecem trabalhando de casa. A entrada do público é bastante controlada. Atos presenciais são exceções e a maioria deles são feitos de maneira virtual, inclusive as audiências. Se por um lado a gravidade da situação pandêmica, que persiste e continua ceifando vidas, implicou nessas medidas, orientadas pela ciência, por outro a crise permitiu que os instrumentos tecnológicos, antes usados com mais parcimônia, fossem aprofundados e ampliados, de forma que a produtividade dos servidores inclusive aumentou no período. Vivemos num mundo cujas distâncias se encurtaram, conseguimos saber o que ocorre do outro lado do planeta em tempo real, fazemos chamadas de áudio e vídeo para qualquer lugar, a qualquer hora. Houve uma evolução, uma boa evolução, ao menos em vários pontos de nossas vidas em sociedade. Pergunte a uma avó o que ela acha de poder ver e ouvir com facilidade seu neto na tela de um aparelho de celular, a milhares de quilômetros de distância! Não preciso dizer a resposta. Porém, mesmo diante desses avanços, será que ao apostarmos todas as fichas na tecnologia da informação, em softwares e hardwares, não estamos nos esquecendo de nossa origem humana, feita de carne e osso? A fala é uma das expressões máximas da nossa espécie. Quando essa fala é filtrada por um programa de computador, por melhores que sejam os equipamentos e recursos, ela perde boa parte de comunicação. Nada se iguala à fala presencial, face a face, que vai muito mais além do som que sai de nossas bocas. Nós nos interpretamos pelo olfato, pelos gestos, pelos comportamentos e por muitos outros sinais. Nas audiências que realizo presencialmente na penitenciária, os detentos chegam escoltados, com máscaras, sentam-se a mais de dois metros. Quando suas algemas são tiradas, eu a eles me apresento e lhes explico como ocorrerá o ato. Não raras vezes, assuntos que não dizem respeito ao processo vêm à tona, como atendimento à saúde, problemas familiares, informações sobre trabalho, estudo, acesso a livros, abusos… Tenho certeza que muitos desses assuntos não seriam abordados se estivéssemos todos numa tela acética de um computador. E mais! Como ficam as pessoas livres, sem rede de wi-fi, que sequer saneamento básico em suas casas possuem, que dirá equipamentos digitais? E quem não sabe lidar com essas ferramentas, que não foi educado, que não sabe ler ou escrever integralmente? Não é novidade que numa sociedade de consumo neoliberal, os pobres são indesejáveis, pois não consomem e não interessam ao mercado. Isso pode se refletir com maior profundidade na defesa dos direitos, fazendo com que, mais e mais, apenas os incluídos, os do lado de cá da margem, alcancem a Justiça. Já os pobres, os pretos e periféricos deixarão de vez de alcançá-la, para em seu lugar serem por ela alcançados e neutralizados. A Justiça não pode exigir uma escalada cheia de provas, algumas impossíveis de superar por boa parte da população. O que já era distante, pode ficar mais distante ainda. Aqueles rapazes da portaria, nas duas ocasiões, apenas com suas presenças físicas conseguiram se comunicar com a Justiça. Quando me chamaram, o de hoje e o de tempos atrás, queriam respostas. Eram ambos apenados de vinte e poucos anos, em condições economicamente precárias, socialmente vulneráveis (regra entre os presos do Brasil, em sua maioria negra, diante do racismo estrutural), que desejavam cumprir suas penas corretamente. Eles conseguiram o que buscavam, mas quantos mais conseguem? O primeiro gesto da Justiça não é o intelectual ou moral, mas sim arquitetural. A sensação de entrar fisicamente no “Palácio da Justiça” antecipa a própria justiça. É nesse proceder, na sensação de pertencimento, que a comunicação se inicia e se realiza em sua plenitude. O novo corona vírus tem imposto barreiras. Que essas barreiras caiam quando a pandemia passar!  João Marcos Buch é juiz de direto da vara de execuções penais da Comarca de Joinville/SC e membro da AJD  Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 04 de novembro de 2020.   

Ódio de classe, o pós-golpe e a quebra das garantias sociais*

O Brasil vive uma das suas maiores tormentas históricas, com ameaças à democracia e às instituições, muitas chanceladas pelo atual Presidente da República, entre ataques ao Supremo Tribunal Federal, seus integrantes e familiares, além de sucessivos ataques à liberdade de imprensa, agressões ao meio ambiente, indígenas, quilombolas, negros e negras, mulheres, à comunidade LGBTQI e aos direitos sociais, apenas para ficar nesses exemplos de desconstrução do pacto civilizatório. Essa quadra histórica é apenas reflexo de uma tragédia antecedente que se revela no diálogo publicado pela FSP[1],  em maio de 2016, mantido entre Sergio Machado (ex-presidente da Transpetro) e Romero Jucá, Ministro do Planejamento do próprio governo que planejava golpear.  Na primeira parte dos diálogos Romero diz que “(…) com Dilma não dá, com a situação que está” ao que Machado responde: “Tem que ter um impeachment”.  E a respeito desse ponto, com o golpe parlamentar já consolidado, em 22 de setembro de 2016 Michel Temer concede entrevista[2] e esclarece o “com Dilma não dá”, apontando as “razões maiores” de todo aquele processo.  Ele afirma, sem nenhum pudor, que o impeachment/golpe foi adiante porque Dilma não aceitou incorporar as ideias da chamada “Ponte para o Futuro”, a que traz ideias gerais de uma política de Estado mínimo (menos saúde, educação e segurança como garantias estatais e gratuitas) e entrega do patrimônio das riquezas nacionais ao capital estrangeiro, além de promover reformas amplas contra a população e contra os trabalhadores, a exemplo das reformas previdenciária e trabalhista, que era a mesma agenda defendida por Aécio Neves e derrotada nas urnas (em 2014), mas que os segmentos econômicos insistiam em impor à governante eleita. Ao mesmo tempo em que o Congresso operava o golpe legislativo, a Operação Lava-jato, comandada por Sérgio Moro, agia com parcialidade (revelados em sua plenitude pelo The Intercept), seguindo seu curso de exibicionismo midiático, seletividade penal e interferência no processo político,  inclusive para agir no processo de derrubada de Dilma Rousseff, tal como ocorreu no mês de março de 2016, quando se instava a comissão de impeachment na Câmara, oportunidade que Moro promoveu a divulgação ilegal de áudio de conversas entre Lula e Dilma, de Lula com  sua esposa e dela com diversos outros interlocutores. Foi a mesma ilegalidade que voltou a cometer nas vésperas da eleição presidencial de 2018, faltando seis dias para a realização do primeiro turno[3], ao levantar sigilo de uma delação desacreditada de Antonio Palocci, que serviu de peça de campanha, na qual atuou politicamente para dela depois tirar proveito pessoal o que, em qualquer outro país, teria lhe rendido perda punitiva do cargo.  Sérgio Moro e parte relevante do empresariado nacional (notadamente a CNI/Fiesp)[4], além de responsáveis pelo quadro desenhado no início, especialmente pela degradação dos limites civilizatórios de uma nação, ao preço da barbárie hoje institucionalizada, tinham também a consciência de que a projetada e desejada eleição do atual presidente representava seus interesses.  Para Moro, ser catapultado ao STF e, para os segmentos empresariais que o apoiaram e ainda apoiam, a promessa de “banir” os direitos sociais da ordem jurídica, sendo na área econômica, com destaque nas relações de trabalho, que a aventura golpista de 2016 se conecta com a escolha dessa elite nacional por Jair Bolsonaro, notadamente quando, ainda candidato, instruído pela figura de seu assessor/ministro, promete bancar um amplo programa de oferta de trabalho para os brasileiros, mas sem nenhum direito, chegando até mesmo a  cogitar reforma constitucional para abolir o art.7º da Constituição, extinguir a o histórico Ministério do  Trabalho [o que fez no primeiro dia], a Fiscalização do Trabalho, e até extinguir o Ministério Público e a Justiça do Trabalho, como promessas para fortalecer os ganhos empresariais. Não há dúvidas, nesse resgate histórico, que os atos de Michel Temer e do atual presidente são como os de almas ressonantes, de modo que houve recrudescimento do desmonte da conquistas sociais demarcadas no processo constituinte de 1987/1988, em franco processo de desmonte no pós-golpe , cuja expressão maior é aprovação e sanção da Lei 13.467. Tudo dentro de uma lógica (sempre a mesma) de transferir renda do trabalho para o capital, reduzindo ao máximo  a participação do trabalhador na proporção do valor criado[5] pelo seu trabalho em prol do lucro .  E é justamente durante o governo Bolsonaro que esse processo se aprofunda não só por medidas legislativas concretas (como o impacto da lei da liberdade econômica e da legislação editada na pandemia), mas na medida em que os elementos da superestrutura, especialmente os de caráter ideológico, apresentam-se mais refinados e articulados, muitas vezes alimentados pelo preconceito e por quebras deontológicas,  passando a dar suporte mais definido aos interesses do capital, à revelia das delimitações constitucionais traçadas pelo próprio Estado burguês.  Não por outro motivo, além de várias outras situações igualmente esdrúxulas,  mostra-se impactante que candidato a ministro do STF saia em  busca de apoio da FIESP[6] para sua indicação,  prometendo comportar-se de determinada forma e dentro de determinado perfil ao ser eventualmente investido no cargo, ficando claro que o real poder – o poder econômico –  é quem determina o papel a ser cumprido não só por legisladores (que não vacilam em patrocinar golpes políticos ou deter  impeachments cabíveis, se for o caso) , mas por hermeneutas estratégicos, incumbidos do controle de legalidade e constitucionalidade.  No tempo presente, quando  garantias fundamentais e direitos sociais são relegados ou minimizados por instâncias do Ministério Público e do Poder Judiciário[7] para viabilizar equações econômicas vantajosas para os mais ricos, em nome de abstrações como  “o mercado” ou hipóteses igualmente vagas  como “saúde financeira” das empresas , descolando-se arbitrariamente do pacto político constitucional que deveria  guiar a nação, é sinal de que não há mais nenhuma perspectiva de triunfo de valores como igualdade, dignidade e cidadania.  Quando determinados aparelhos ideológicos e seus agentes movem-se sob tais premissas como a entoar um réquiem para a morte dos direitos sociais a única lembrança possível é a trazida por Leo Huberman  (“História da Riqueza do Homem”- 1981,  p.  138/139),  recordando o processo político decorrente da revolução francesa , ao afirmar que o Código Napoleônico destina-se “ (…) evidentemente a proteger a  propriedade – não a feudal, mas a burguesa”  e que o Código  tinha cerca  de  2.000  artigos “(…) dos quais apenas 7 tratam do trabalho e cerca de 800 da propriedade privada. Os sindicatos e as greves são proibidos, mas as associações de empregadores permitidas. Numa disputa judicial sobre salários, o Código determina que o depoimento do patrão, e não do empregado, é que deve ser levado em conta. O código foi feito pela burguesia e para a burguesia: foi feito pelos donos da propriedade para proteção da propriedade. (…)”. Não estamos distantes disso. Ao fim e ao cabo, apesar de uma Constituição de forte carga declaratória e afirmativa de valores, nos temas de interesse dos trabalhadores, diante os retrocessos experimentados, caminha-se no Brasil para os padrões de dominação da burguesia francesa. Enquanto for assim, a constituição, as leis  e a interpretação hegemônica nos domínios econômicos serão apena éditos da burguesia nacional protegida pelo aparelho de Estado, não importando a Lei Maior. Talvez porque, como já disse Darcy Ribeiro “o Brasil, último país a acabar com a escravidão, tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante (**e seus estamentos) enferma de desigualdade, de descaso” ou , como afirmou mais recentemente o sociólogo Jessé de Sousa[8], no mesmo rumo, simplesmente porque “ o Brasil é um país doente, patologicamente doente pelo ódio de classe (…)”, o mesmo ódio que não respeita a democracia, faz pouco caso dos trabalhadores e do processo civilizatório. Notas: [1] http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/2016/05/em-gravacao-juca-sugere-pacto-para-deter-lava-jato-diz-jornal.html [2] .be em matéria do site The Intercept de 22/09/2016 https://theintercept.com/2016/09/22/michel-temer-diz-que-impeachment-aconteceu-porque-dilma-rejeitou-ponte-para-o-futuro/ [3] https://epoca.globo.com/sergio-moro-entra-na-campanha-eleitoral-ao-suspender-sigilo-de-parte-da-delacao-de-palocci-23126422 [4] “Empresários redobram pressão contra Governo Dilma e cobram apoio do Congresso” – https://brasil.elpais.com/brasil/2016/03/30/politica/1459289168_509972.html [5] “SALÁRIO , PREÇO E LUCRO” – KARL MARX – [6] https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2020/10/19/alem-de-politicos-kassio-procura-setor-economico-para-levar-mensagem-de-seguranca-juridica.ghtml [7] A exemplo de decisões recentes do próprio STF, que negou aos Sindicatos o direito elementar de participar de negociações para redução salarial na pandemia; quando autoriza quebra de isonomia na terceirização e a própria terceirização ilimitada  [8] Doutor em Sociologia pela Universidade de Heidelberg – Alemanha e autor de “ A Elite do Atraso”    * Germano Siqueira é juiz do trabalho na 7ª Região e membro da Associação dos Juízes pela Democracia – AJD.  Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 29 de outubro de 2020. 

Nem Direito, nem Psicologia: quando o nada deixa de conduzir a lugar nenhum*

Durante muito tempo, os argumentos despidos de lógica inteligível ou ainda aqueles baseados em "achismos" e preconceitos — já que construídos em premissas que não encontram qualquer semelhança com a realidade — eram simplesmente ignorados, sob a consideração de que, não conduzindo a lugar nenhum, estariam fadados ao esquecimento. Ainda hoje, a grande maioria de falas absurdas não gera qualquer repercussão. Porém, tal desprezo cobra um paradoxalmente caro preço: por serem bobagens, são ignoradas; por serem ignoradas, as falácias e as mentiras não são contestadas e ficam por isso mesmo, eternizando-se por meio do velho artifício segundo o qual "a mentira dita mil vezes se torna uma verdade". Assim, muitos desses desvios da razão começaram a integrar o patrimônio "cultural" da humanidade. Acreditando-se no império da razão, da ciência e do conhecimento, principalmente no campo acadêmico, não se teve a devida apreensão do desenvolvimento desse processo de desconstrução da racionalidade. Não se atentou, inclusive, para a forma como essas falas foram se integrando e até se organizando, impulsionadas por motivações de caráter financeiro ou de ordem pessoal, na busca de lucratividade ou de algum tipo de projeção. Deixaram, pois, de ser produto de algum ser alucinado ou meras distrações, para serem carregadas de intencionalidade e se difundir de modo mais articulado e com fórmulas de expressão cada vez mais sofisticadas, a tal ponto de o absurdo se apresentar como se fosse ponderação racional e lógica. E na medida em que ganham espaço, passam a ser agressivas a tudo que possa revelar sua fragilidade científica. O discurso de ódio é uma forma de desviar o olhar da origem do pensamento descomprometido com os fatos, com a racionalidade e com a ciência. Do ponto de vista da disputa política, o desprezo à razão, ainda que baseado em argumentos que se pretendam apresentar como lógicos e racionais, busca destruir as certezas que são fruto das experiências históricas, para abafar sonhos e projeções. Anula a história e conta a sua própria estória. O efeito grave da difusão, sem contestação, das intervenções descompromissadas com o conhecimento é o de que a percepção da verdade fica cada vez mais difícil. Então, urge que sejam rebatidas. A dificuldade é que como essas ideias são desapegadas dos fatos e dos dados históricos, constituindo, portanto, crenças, quem nelas acredita não se importa muito com evidências. Embora pareça simples, porque baseado em inúmeros estudos e esteja sedimentado no conhecimento humano produzido há séculos, não é nada fácil convencer um terraplanista de que a Terra é redonda. Assim, qualquer tipo de distorção proposital da realidade, mesmo em forma de escracho, pode ser dita até com ares de autoridade intelectual. É apenas desse modo que se devem visualizar tanto a recente publicação de um texto que diz promover uma análise psicológica do Direito, mas que não fala nem do Direito, nem da Psicologia, partindo do nada para chegar a lugar nenhum, quanto à árdua tarefa de o rebater. Além de muito difícil, a tarefa pode ter efeito muito reduzido, porque quem se expressou a favor do texto, mesmo sendo impossível extrair de seu conteúdo algum tipo de compreensão, não terá, por certo, ouvidos para uma contraposição. E quem já não deu muita bola para aquilo não carece de maiores convicções para tanto. De todo modo, a omissão neste momento histórico é o pior a fazer. Como dito, o texto não tem começo, meio e fim. Não traz problematização sobre um fato. Não possui premissa. Não delineia objetivos. Do ponto de vista acadêmico, revela-se um texto inepto. De todo modo, enfrentando o desafio de escrever a respeito, identificamos como ponto de partida do texto a narrativa de que o TST promoveu 38 mudanças em sua jurisprudência em favor dos trabalhadores nos anos de 2003 e 2012, e que isso desagradou a empresários. Esse descontentamento dos empresários teria feito com que o legislador promovesse, em 2017, a reforma trabalhista, na qual 34 daqueles 38 entendimentos jurisprudenciais foram revertidos (neste ponto, o texto ao menos tem o mérito de reconhecer o que os reformistas sempre negaram: que a "reforma" trabalhista reduziu direitos dos trabalhadores e trabalhadoras). A conclusão do texto é a de que caso essa jurisprudência "generosa" com os trabalhadores, baseada em ativismo judicial, mantenha-se, corre-se o risco da extinção da Justiça do Trabalho, cabendo, pois, aos órgãos de cúpula do Judiciário trabalhista "corrigir o rumo da prosa, naquilo que tem havido de excessos, e cumprir da melhor forma possível a nobilíssima missão de pacificar os conflitos sociais, na esteira do dístico de nossa bandeira do TST, calcada no profeta Isaías: 'Opus justitiae pax' (a obra da Justiça é a paz)". Esse desfile narrativo, no entanto, se passa sem qualquer explicação. Toma-se a jurisprudência pacífica do TST produzida até 2002 como o padrão do que seria o "correto", sem avaliar, por exemplo, se essa jurisprudência estava em conformidade com a Constituição Federal de 1988. Aliás, a Constituição Federal só aparece para ser invocada como fundamento da "flexibilização" de direitos, logo ela que, bem ao contrário, alçou os direitos trabalhistas ao patamar de direitos fundamentais, acobertados, inclusive, por cláusula pétrea. Faz-se uma crítica à forma de concepção das novas súmulas, sem mencionar como as anteriores foram constituídas (vide, por exemplo, a Súmula 331) e pressupõe-se que as súmulas anteriores eram perfeitas e as que se produziram depois, que beneficiaram os trabalhadores, foram erradas porque deixaram os empregadores desnorteados e os trabalhadores em situação de falsas expectativas, isto porque, segundo o texto, todas essas decisões com interpretações favoráveis aos trabalhadores "serão reformadas futuramente". Não há nada no texto, no entanto, que fale sobre os efeitos produzidos na realidade social — na economia e no mundo do trabalho — nos dois períodos mencionados. Se houvesse ao menos um pouco da preocupação de falar sobre a realidade, teria de se reconhecer: primeiro, que a Constituição Federal de 1988 ampliou sobremaneira o rol de direitos dos trabalhadores e alterou a posição jurídica desses direitos, sobrepondo-os aos interesses econômicos individuais; segundo, que a jurisprudência da década de 90 foi extremamente reducionista quanto ao alcance desses direitos, bastando lembrar, por exemplo, do que se fez com o inciso I do artigo 7º e o artigo 9º; terceiro, que a reação da jurisprudência em 2003 se deu em razão do reconhecimento do estágio elevado de sofrimento a que foi conduzida a classe trabalhadora em razão dos entendimentos dominantes da década de 90; quarto, que a economia brasileira, nos períodos em que a jurisprudência do TST e do STF serviu como o aparato de proteção dos interesses do capital, afundou completamente; e quinto, que a reconstrução bastante tímida do projeto constitucional em direção ao Estado social baseado na primazia da valorização do trabalho humano fez com que, de 2003 a 2013, o Brasil experimentasse uma recomposição de sua economia e mínima inserção social. Aliás, se os fatos fossem considerados, teria que reconhecer que de 2014 em diante e, notadamente, depois da "reforma" trabalhista, o sofrimento no trabalho aumentou e a saúde econômica do país só piorou. O texto refere ao sofrimento das empresas, mas não relata, em momento algum, quais foram os lucros obtidos por essas empresas em todo esse percurso histórico. Esse espaço é curto para isso, daí porque remetemos o leitor aos balanços publicados pelas grandes empresas e bancos nos anos referidos, que demonstram como, no geral, as políticas de restrição de direitos aumentaram a concentração da renda produzida. Para falar de Direito do Trabalho, o dado histórico relevante é o sofrimento da classe trabalhadora. Como o texto despreza o Direito, embora diga que faz uma análise psicológica do Direito, nada se fala sobre os trabalhadores e trabalhadoras. Ocorre que o conteúdo do Direito do Trabalho são as normas de limitação da exploração econômica sobre a força de trabalho. O artigo 7º da Constituição Federal é expresso no sentido de que o que se elenca são "os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais" e não os direitos dos empregadores. O direito dos empregadores, dentro da lógica capitalista abarcada pela Constituição, é o de explorar a força de trabalho alheia no contexto de seu empreendimento, desde que respeitados os "direitos dos trabalhadores". O Direito do Trabalho é o limite dos interesses do capital. E não há nenhum sentido lógico e histórico em conceber um Direito do Trabalho que seja o direito do empregador de obter fórmulas ilimitadas de extração de valor do trabalho humano. O texto, por isso, despreza a própria história do Brasil, marcada pelo sofrimento da classe que vive do trabalho, pela opressão, pelos baixos salários, pelos elevados índices de acidentes do trabalho etc. Não cabe em nenhum relato histórico sério e comprometido com a realidade falar, no Brasil, em empregadores como vítimas de direitos excessivos dos trabalhadores, ainda mais provenientes de um ativismo da magistratura trabalhista. De fato, nunca houve uma jurisprudência excessivamente protetiva dos direitos dos trabalhadores no Brasil. Muito pelo contrário. Vejamos os exemplos trazidos no próprio referido texto. Segundo se sustentou, o novo teor da Súmula 277 se deu em contrariedade à lei (Lei 10.192/01), sendo exemplo de ativismo judicial em favor dos trabalhadores. Só se esqueceu de dizer que a negativa da ultratividade representa afronta ao §2º do artigo 114 da CF, cuja redação, com a alteração promovida em 2004, no bojo da reforma do Judiciário, deixa clara a intenção da consagração desse direito, senão vejamos: No texto originário: "Artigo 114, §2º — Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho". Redação atual: "Artigo 114, § 2º, CF — Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente". Ainda que assim não tenha reconhecido o ministro Gilmar Mendes, na ADPF 323, em decisão monocrática proferida em 14/10/2016, o que se tem, no caso, é mais um exemplo de que como a jurisprudência não garantiu aos trabalhadores um direito constitucionalmente consagrado do que de um ativismo judicial ampliativo de Direito. São atacadas as decisões judiciais que acolhem responsabilidade do Estado na terceirização, negam validade à terceirização e garantem igualdade de salários entre trabalhadores efetivos e terceirizados. Primeiro, não há nenhuma relação de causa e efeito com relação a essas decisões que merecesse algum comentário. Segundo, novamente o que se tem são exemplos que provam exatamente o contrário. De fato, como se toma a Constituição Federal como referência jurídica e não o que se resulta do desejo de alguém isoladamente, o reconhecimento necessário nesta temática é que a jurisprudência trabalhista, desde 1993, reduziu consideravelmente a rede de proteção jurídica trabalhista. Com efeito, não há nenhuma norma constitucional que autorize a terceirização no serviço público, conforme já manifestava o ministro Ayres Britto. Então, reconhecer a responsabilidade subsidiária do Estado não é ampliação de direitos e, sim, minimização dos efeitos da indevida redução de direitos. Terceiro, a terceirização, anteriormente vedada pela Súmula 256, foi reconhecida como válida, em 1993, pela Súmula 331, significando, pois, uma redução do patamar de proteção jurídica dos trabalhadores. Além disso, a Constituição Federal, que inibe a prevalência dos interesses econômicos sobre a condição humana, não concebe a validação de qualquer forma jurídica em que o trabalhador seja comercializado. O caput do artigo 7º da CF deixa claro que os direitos dos trabalhadores servem à melhoria de sua condição social e não à sua transformação em objeto de comércio. A marchandage é coibida desde o Tratado de Versalhes. E, quarto, a igualdade salarial para o trabalho de igual valor é um preceito fundamental do Direito do Trabalho, consagrado, inclusive, na Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 23), que a tática empresarial da terceirização não tem como superar. Por fim, o texto traz uma crítica à resistência em se assumir a prevalência do negociado sobre o legislado, preconizando a não intervenção do Estado nas relações coletivas de trabalho. O argumento supostamente jurídico para essa defesa são os incisos VI, XIII, XIV e XXVI do artigo 7º da CF, que fazem referência ao reconhecimento dos acordos e convenções coletivas (XXVI) e autorizam a regulação negocial de direitos por essa via. Não se tem em tais dispositivos, no entanto, uma autorização para que o poder econômico imponha redução de direitos aos trabalhadores, até porque esses incisos estão inseridos no rol do artigo 7º, que trata dos direitos dos trabalhadores e não dos direitos dos empregadores e que estabelece tais direitos como instrumentos de melhoria da condição social dos trabalhadores, não podendo, por conseguinte, ser vistos como mecanismos a serviço de iniciativas empresariais voltadas ao aprimoramento dos negócios e à obtenção de vantagens na concorrência econômica. Além disso, a eficácia desses dispositivos está atrelada à consagração de outros três direitos: a garantia contra a dispensa arbitrária (inciso I do artigo 7º), a vedação da interferência do poder público na organização sindical (inciso I do artigo 8º) e o amplo direito de greve (artigo 9º). De forma sintomática, o texto que propõe ampliação da negociação coletiva, e não intervenção do Estado nas relações de trabalho, nada fala da negação aos trabalhadores desses direitos, que são essenciais à livre negociação. Novamente, portanto, o que se demonstra é um rebaixamento jurisprudencial dos direitos constitucionais. Aliás, esses e tantos outros direitos não foram assegurados até hoje aos trabalhadores, destacando-se o preceito que garante a progressividade da condição social aos trabalhadores e que coíbe, por consequência, o retrocesso social. Esse rebaixamento, ademais, que se viu mitigado no período de 2003 a 2013, foi retomado pelo STF a partir de 2014 e se aprofundou pelas mãos do legislador em 2017, chegando ao fundo do poço em 2020, com a produção dos efeitos danosos que estão à nossa volta: precarização, informalidade, desemprego e desalento. Muito mais poderia ser dito para demonstrar como o que se tem em mãos é um artigo que, escondendo o fato de que o legislador da "reforma" confunde-se, em certa medida, com o próprio autor do texto, não reflete minimamente a experiência jurídica nacional se considerados, como deve ser, os parâmetros jurídicos traçados pela Constituição Federal, a razão de ser do Direito do Trabalho e a história do mundo do trabalho no Brasil. Mas o espaço concedido para essa abordagem (cerca de 15 mil caracteres) não é suficiente para ir adiante com mais fatos e argumentos, que, no fundo, apenas se repetiriam na explicitação de como todos os exemplos citados no texto em questão constituem prova do contrário do que tenta demonstrar. Uma utilidade, de todo modo, não se lhe pode negar: o de revelar como ainda será longo e difícil o caminho a ser percorrido para que consigamos superar a fase colonial e as bases escravistas, atreladas, no Brasil, a crendices, preconceitos, elitismos oligárquicos e dogmas neoliberais. O maior problema é saber se teremos tempo para atingir esse objetivo tão necessário e urgente, isto porque, diante da proliferação cada vez mais intensa do desprezo ao conhecimento baseado em fatos, evidências, raciocínios lógicos, pesquisas e estudos comprometidos com a constituição e a elevação da condição humana, o que se vislumbra mais próximo no horizonte é o colapso da humanidade.  *Jorge Luiz Souto Maior é desembargador do TRT-15 e livre-docente em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP).  Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 27 de outubro de 2020. 

Terceirização, isonomia salarial e o STF desconstruindo o pensamento alheio*

No início dos anos 80, eu era estagiária de Direito e li uma petição da parte contrária. Fui ler na íntegra um acórdão que o advogado mencionava. Na época, as coisas eram mais difíceis. Não tinha um computador para dar um clique e ler o julgado. Fui à biblioteca, tirei xerox e comecei a me dedicar à leitura. Qual não foi o meu choque ao constatar que o advogado tinha enganado o juiz ao indicar o trecho de um acórdão que concluía de forma oposta ao que ele dizia. Fiquei verdadeiramente inconformada com a falta de ética, mais ainda por vir de uma pessoa mais experiente, com número da OAB, que indicava anos e anos de advocacia. Passaram-se mais de duas décadas e fato semelhante se repetiu, não em um processo verdadeiro, mas num júri simulado/aula, cujo tema era a justiciabilidade dos direitos humanos, e tinha como mote o direito à educação. Às tantas, o grupo adverso menciona o paradigmático acórdão do STF, de lavra do ministro Celso de Mello, referente ao RE 436.996, que eu conhecia muito bem, e que determinou que o município deveria garantir acesso à creche e ao ensino fundamental. Mas o aluno deu sentido inverso ao que constava do acórdão. Confesso que o sangue me subiu à cabeça. Inaceitável distorcer o pensamento de um magistrado! Não tenho a verve de advogada de júri, mas a indignação fez com que eu fizesse a defesa mais contundente que poderia fazer! Pois bem, a história se repete, agora de forma mais gravosa, porque é a vez de um ministro do STF desvirtuar o pensamento de um professor em um julgamento! O Supremo Tribunal Federal julgou a equiparação de direitos trabalhistas entre terceirizados e empregados de empresa pública tomadora de serviços, com repercussão geral, no processo RE 635.546, nos seguintes termos: "Decisão: O tribunal, por maioria, apreciando o tema 383 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário, vencidos os ministros Marco Aurélio (relator), Edson Fachin e Ricardo Lewandowski, que negavam provimento ao recurso. A ministra Rosa Weber acompanhou o relator com ressalvas quanto à tese. Os ministros Roberto Barroso, Cármen Lúcia e Luiz Fux (presidente) davam provimento ao recurso com fixação de tese. Os ministros Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes também davam provimento ao recurso, mas com tese diversa. Nesse sentido, o julgamento foi suspenso para deliberação da tese de repercussão geral em assentada posterior. Não participou deste julgamento, por motivo de licença médica, o ministro Celso de Mello. Plenário, Sessão Virtual de 11/9/2020 a 21/9/2020". A questão fundamental era saber se, à luz da Constituição Federal, seria legítimo utilizar a terceirização como ferramenta para a precarização do trabalho e para a redução dos salários. Noutras palavras, a terceirização é técnica da gestão empresarial, com focalização e especialização, ou mero mecanismo de incremento da mais-valia absoluta? O julgamento, que foi suspenso para deliberação da tese, choca por dois motivos. Primeiro, por verificar que a Suprema Corte negou o direito à isonomia salarial assegurado na normativa internacional, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 23) até os artigos 5º e 7º, XXXII, da Constituição brasileira, passando por diversos tratados e convenções internacionais. É o típico julgamento que desconstitucionaliza os direitos fundamentais, na medida em que retira o conteúdo material da Constituição Cidadã. Como se isso não bastasse, constato que o voto-minuta do ministro Alexandre de Moraes desvirtua o pensamento alheio e traz saudades das referências do ministro Celso de Mello, com seus negritos e sublinhados, sempre tão precisos, material e formalmente, com perfeita indicação da fonte. Consta do voto que foi publicada como minuta a transcrição de trecho de trabalho científico do juiz Reginaldo Melhado, invocado pelo ministro para sustentar que "terceirizada pela empresa determinada atividade laboral, não pode haver direito à equiparação entre trabalhadores das empresas tomadora e prestadora de serviços, pois cada uma é, em si mesma, um empregador distinto" (Reginaldo Melhado, "Globalização, Terceirização e Princípio de Isonomia Salarial", RDT 95/10, Jul/1996). Surpreendi-me por conhecer algumas das reflexões do autor do trecho transcrito, o que se mostrava incompatível com o que sublinhava o ministro Alexandre de Moraes. Reli o voto como quem não crê no que leu e fui à busca do artigo citado. E, como imaginei que fosse, a tese sustentada pelo professor Melhado no artigo parcialmente transcrito no voto é exatamente oposta à acolhida pelo ministro, que recortou o trecho em que o autor explicava qual era a posição então adotada na doutrina e na jurisprudência justamente para, em seguida, criticá-la. O ministro Alexandre de Moraes usou esse recorte e atribuiu ser aquela a opinião do autor. Mas era justamente o contrário! Isso é grave! O artigo do professor Reginaldo Melhado, de 1996, é uma das primeiras publicações da tese da isonomia salarial quando os empregados da empresa terceirizada e os da tomadora de serviços realizam igual teletrabalho, mesmo se a terceirização é considerada lícita, na forma da Súmula 331 do TST (que ele critica). No artigo, com análise socioeconômica e de Direito Comparado da terceirização, Melhado constrói sua argumentação baseado em analogia e simetria entre os empregados terceirizados e os temporários da Lei 6.019/74, que assegura a estes "remuneração equivalente à percebida pelos empregados da mesma categoria da empresa tomadora ou cliente" (artigo 12, alínea "a"). Também funda a argumentação no artigo 7º, XXXII, que proíbe a "distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos". Acrescenta em sua argumentação referências à teoria do abuso de direito, albergada pelo Código Civil, sustentando que a terceirização não poderia ser empregada para subverter os fins sociais da propriedade privada e da empresa, configurando-se ilícita quando seu objetivo é a restrição aos salários pela via da intermediação da mão de obra. Em seu artigo, portanto, o juiz Reginaldo Melhado sustenta de maneira consistente e, naquele momento, também de modo original e inovador exatamente o direito à isonomia negado agora aos trabalhadores terceirizados pelo ministro Alexandre de Moraes e por nossa Suprema Corte. O lamentável episódio revela não apenas como o Supremo Tribunal Federal vem negando vigência aos direitos constitucionais dos trabalhadores, em favor do capital, como também a desconsideração da longa construção teórica e jurisprudencial sobre os direitos fundamentais e, não raro, à própria literalidade da norma constitucional, Foi assim na decisão recente referente ao artigo 316, parágrafo único, do CPP; na aplicação deturpada da teoria do domínio do fato; na coarctação do direito de greve dos servidores públicos; na derrubada da atividade-fim como limite à terceirização; na redução do prazo prescricional do FTGS; na sistemática limitação da competência da Justiça do Trabalho; no legislado sobre o negociado; no derruimento da proteção à relação de trabalho e num longo et cetera. Espero que o ministro Alexandre de Moraes retire de seu voto a referência ao pensamento de Reginaldo Melhado ou a use de forma correta e justa, para que não se perpetue uma fake news no processo.  Kenarik Boujikian é desembargadora aposentada do TJ-SP e especialista em Direitos Humanos.  Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 26 de outubro de 2020. 

  • Início
  • Anterior
  • 1
  • 2
  • 3
  • 4
  • 5
  • 6
  • 7
  • 8
  • 9
  • 10
  • Próximo
  • Fim
Página 3 de 20

logo horizontal branco

Reunir institucionalmente magistrados comprometidos com o resgate da cidadania do juiz, por meio de uma participação transformadora na sociedade.

Rua Maria Paula, 36 - 11º andar, Conj.B
Bela Vista, São Paulo-SP, CEP: 01219-904
Tel.: (11) 3242-8018 / Fax.: (11) 3105-3611
juizes@ajd.org.br

 

varidelAssessoria de Imprensa:
Varidel Comunicação

varidel@varidelcomunicacao.com

Aplicativo AJD

O aplicativo da AJD está disponível nas lojas para Android e IOs. Clique abaixo nos links e instale:

google

apple

Juízes para a Democracia © 2019 Todos os direitos reservados.

logo

  • Início
  • Sobre nós
    • Quem somos
    • Estatuto da AJD
    • Aplicativo AJD
  • Notícias
  • Podcasts
  • Documentos
    • Atividades do Conselho
    • Cidadania
    • Voto e Cidadania
  • Decisões
    • Eleitoral
    • Penal
    • Trabalho
    • Administrativo
    • Cível
    • Consumidor
    • COVID-19
    • Povos indígenas e comunidades tradicionais
    • Juros e correção monetária na JT
  • Artigos
  • Publicações
    • Jornal
    • Revista
  • Eventos