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Fórum Social Mundial Justiça e Democracia: outra Justiça é possível!*

O Fórum Social Mundial, realizado pela primeira vez no ano de 2001, na cidade de Porto Alegre, reuniu pessoas do mundo inteiro, naquela e nas edições seguintes, em cidades brasileiras e em outras partes do mundo, sempre mantendo a aspiração original de transformação do sistema de dominação, da busca incessante de uma utopia, representada por seu lema de que "outro mundo é possível". Como desdobramento da dinâmica inaugurada pelo FSM, nestes 19 anos ocorreram diversos fóruns temáticos. A motivação de 2001 foi fazer um contraponto ao Fórum Econômico Mundial, que se realiza em Davos, na Suíça, desde 1971, e se colocar diante do avanço do neoliberalismo no mundo pós-queda do Muro de Berlim, no sentido de trocar e propor alternativas ao modelo econômico vigente. Na atual quadra da conjuntura mundial, é preciso olhar detidamente para uma parte fundamental na manutenção do status quo e para o fortalecimento de projetos políticos de modelo autoritário e antidemocrático: o papel do Direito. E, mais precisamente, de seus braços de aplicação institucional, que chamamos de sistema de Justiça. Nesse sentido, instigadas por uma sugestão do professor Boaventura de Sousa Santos, as associações jurídicas brasileiras do campo progressista Coletivo Transforma MP, Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), Associação de Juízes para a Democracia (AJD), Defensoras e Defensores Públicos pela Democracia, Advogadas e Advogados Públicos pela Democracia (APD) e Movimento Policiais Antifascismo (PAF), somando-se a dezenas de outras entidades de diferentes áreas e partes do mundo, iniciaram o processo de construção coletiva do Fórum Social Mundial Justiça e Democracia (FSMJD). No Brasil, a promessa da democracia posta na Constituição Federal de 1988 se concretizou, em larga medida, na efetivação de direitos sociais, trabalhistas e de cidadania. Contudo, o modelo de Estado que nela se sedimentou com o fortalecimento de um sistema de Justiça totalmente autônomo e despido de mecanismos de controle social, terminou por gerar um formato de órgãos de decisões que utilizam e são utilizados pelo poder político. O papel dos tribunais e dos órgãos do Ministério Público tornou-se ambíguo, confundindo-se e interferindo na atribuição de outros poderes. Por outro lado, a jurisdição tem sido manipulada para realização de projetos excludentes em vários países, não apenas no Brasil. A guerra jurídica faz parte das estratégias das disputas de modelo híbrido, com exemplos do uso do Direito para perseguir pessoas (lawfare) em várias nações da América Latina. As consequências do uso do Direito para fins políticos são absolutamente graves, comprometendo conquistas civilizatórias postas nas constituições democráticas, como as que dizem respeito ao direito de defesa, de manipulação social por meio da mídia hegemônica, sob um falso discurso de combate à corrupção, cujo exemplo melhor no Brasil é o da "lava jato", promotora de uma guerra utilitarista com objetivos muito específicos, tendo sido fundamental para a destituição de uma presidenta eleita em um processo ilegítimo sem cometimento de crime de responsabilidade, bem como para a alteração dos rumos do último processo eleitoral nacional, condenando e prendendo um ex-presidente da República, primeiro colocado nas pesquisas de opinião. Instituições jurídicas vêm sendo usadas, e o Direito vem sendo instrumentalizado em prol de um projeto de poder. E esse projeto de poder serve ao modo de produção capitalista. Com virtudes celebradas, problemas e lacunas identificados a serem superados, desafios a serem enfrentados, compreendemos que o Fórum Social Mundial persiste como uma agregação de críticos, resistentes e esperançosos, sendo, portanto, o espaço onde devemos debater, aprofundar e buscar caminhos, com o compromisso político — que constitui sentimento necessário para projeções utópicas — de uma Justiça para todas e todos, imparcial e igualitária. Ao mesmo tempo, precisamos mostrar a relação do uso desvirtuado do Direito com o desmonte dos sistemas de saúde, educação, assistência social e previdência públicos, com a derrocada dos direitos dos trabalhadores, com as queimadas na Amazônia e a destruição dos ecossistemas do planeta, com as perseguições à comunidade LGBTQI+, à população negra, aos indígenas, aos movimentos feministas e tantas outras. Nós, cidadãs e cidadãos do mundo, precisamos reafirmar o compromisso pela busca da construção de outro mundo. Juntos, como mostra a logomarca do fórum. Temos ali representados os punhos de luta de negros e negras, de indígenas, de LGBTQI+, de crianças, muitas das quais já nascem lutando para sobreviver. Temos o mapa mundi invertido, pondo em destaque a população do Hemisfério Sul, em questionamento aberto ao eurocentrismo. Um mapa onde as fronteiras estão apagadas e os muros foram destruídos. É isso que justifica um Fórum Social Mundial Justiça e Democracia. Realizá-lo no Brasil, em setembro de 2021, sob a égide de um governo de extrema-direita com características neofascistas, é elemento que agrega valor ao nosso desafio e nossa responsabilidade. Outro mundo é possível! Outra Justiça é possível! * Kenarik Boujikian é desembargadora aposentada do TJ-SP, especialista em Direitos Humanos, membra da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). ** Tânia Oliveira é membra da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) *** Vanessa Patriota é coordenadora nacional do coletivo MP Transforma.  Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 26 de novembro de 2020.

CNJ julga o valor da independência judicial*

Nesta terça-feira (1º/12), o Conselho Nacional de Justiça se encontrará diante de um julgamento que explicita uma de suas funções mais importantes: a tutela da autonomia do Poder Judiciário e a independência do magistrado. O juiz paulista Roberto Corcioli pleiteia a revisão da pena de censura que lhe foi imposta em face de decisões judiciais que, resumidamente, teriam sido proferidas "com ideologia" e provocado a soltura de presos e adolescentes apreendidos, e, com isso, supostamente, o desassossego em sua comarca — consoante declarações de autoridades locais. Corcioli foi acusado por um conjunto de promotores de Justiça de ter uma "ideologia contra o modelo do sistema penal vigente e favorável ao desencarceramento" e, por isso, relaxar sistematicamente prisões em flagrante, conceder liberdades provisórias em crimes graves e absolver muitos réus e adolescentes infratores. Na estampa do título que se pretende revisar, consta que Corcioli teria se utilizado da doutrina do garantismo e, com isso, provocado o aumento da insegurança e o descrédito das instituições. Como exemplos das infrações atribuídas ao juiz, o conjunto de promotores de Justiça elencou, entre outras, a aplicação da detração contra texto de lei, a absolvição pelo princípio da insignificância e até por "inexigibilidade de conduta diversa", além da fixação de pena abaixo do mínimo legal. Ele teria ainda questionado prisão e condenação com base exclusiva na palavra de policiais e declarado a nulidade de atos realizados por GCMs, pela falta de competência para a investigação. Enfim, todos temas sobre os quais a doutrina e a jurisprudência se debruçam há décadas, nem sempre no mesmo sentido. Sendo certo que a independência do juiz tem como principal corolário o fato de que ele não pode ser punido em razão do entendimento jurisdicional que esposa, a acusação tentou atribuir o desvio a uma certa contaminação da ideologia que teria feito o juiz decidir contra a lei —embora tenham ignorado no libelo, em grande medida, a normatividade dos princípios, como se não fizessem eles também parte do direito. Desconheço se de fato houve algum estudo aprofundado acerca de eventual aumento da criminalidade na cidade onde ele judicou — a sociologia não costuma ser pródiga em apontar causas tão determinantes para o acréscimo ou decréscimo de infrações penais; ou, ainda, se tudo transitou apenas na esfera da impressão, como é o hábito na constituição dos pânicos morais. Mas certo é que se o juiz deve decidir por princípios e não por políticas — até porque não foi eleito para isso — de diminutíssima valia, a não ser do ponto de vista retórico, é a análise das possíveis consequências de uma determinada decisão. Pautar a decisão criminal por certas políticas, como proposto, representaria a imersão naquilo que se acostumou a chamar de ativismo. Ou judicialização da política, impensável, sobretudo, na área penal ou da conexa infância e juventude infracional. Não deixa de ser sintomático que combativos promotores ou diligentes policiais possam produzir alarde sobre decisões judiciais garantistas, no sumo do que Raul Zaffaroni denomina criminologia midiática — as diatribes chegam a ser cultuadas na mídia, embora raramente atinjam as academias. Mas que elas possam determinar decisões judiciais, aí, sim, se trataria de considerável abalo na independência do magistrado. Dos comentários ao princípios de Bangalore, elaborado pelo Grupo Internacional de Integridade Judicial, a pedido da ONU, se extrai a importância desse predicado: "O cerne do princípio da independência judicial é a completa liberdade do juiz para ouvir e decidir as ações impetradas na corte. Nenhum estranho, seja governo, grupo de pressão, indivíduo ou mesmo um outro juiz deve interferir, ou tentar interferir, na maneira como um juiz conduz um litígio e sentencia" [1]. Mais ainda há uma outra questão. Se normalmente já é um esforço inglório a tentativa de distinguir de forma absoluta a técnica da ideologia (a escolha de um método de trabalho sempre parte da tomada de decisões com certa arbitrariedade), tanto mais no âmbito do Direito, que depende da interpretação que é, por essência, um ato político — carregado de  escolha de valores, poucas vezes dissociadas de leituras, lugares de fala, experiências etc. Por tudo isso, uma absoluta homogeneidade nas decisões é não só impossível como indesejada. Tanto mais em uma sociedade declaradamente pluralista. Veja-se o caso, por exemplo, das reiteradas críticas do Superior Tribunal de Justiça à resistência dos desembargadores paulistas a cumprirem os paradigmas consolidados do STJ e até mesmo sumulados pelo Supremo Tribunal Federal. Foi um sem-número de advertências, conversas, reuniões, antes da decisão que determinou, em sede de Habeas Corpus coletivo [2], que os presos que se encontrassem condenados, por delito de tráfico privilegiado, a um ano e oito meses de reclusão, em regime fechado, fossem colocados pelos juízes das execuções criminais diretamente no regime aberto, servindo a decisão, ademais, de salvo conduto, para impedir novos excessos. Entre os fundamentos deduzidos pelo relator, ministro Rogério Schietti Cruz, a crítica contundente a: "Uma política estatal que se poderia, não sem exagero, qualificar como desumana, desigual, seletiva e preconceituosa. Tal orientação, que se forjou ao longo das últimas décadas, parte da premissa equivocada de que não há outro caminho, para o autor de qualquer das modalidades do tráfico — nomeadamente daquele considerado pelo legislador como de menor gravidade —, que não o seu encarceramento" [3]. Acerca da crítica que havia sido formulada por Schietti Cruz em tom similar em um seminário recente, o Tribunal de Justiça de São Paulo respondeu por intermédio do culto desembargador presidente de sua seção criminal, assentando que: "(...) Em decorrência da garantia da independência funcional, no exercício da atividade jurisdicional, o magistrado não deve estar sujeito a qualquer tipo de ordem ou injunções institucionais, cabendo-lhe seguir apenas a sua consciência, formada a partir do que dispõem as leis e a Constituição da República;(...) O que não se pode conceber é que se retire do magistrado sua liberdade de analisar as particularidades de cada caso concreto e de decidir conforme seu livre convencimento motivado" [4]. E com relação ao criticado excesso das prisões provisórias e a plêiade de decisões que mantinham regimes mais gravosos que a lei autorizava, arrematou: "São Paulo desponta como um dos Estados com os melhores índices de segurança do país, resultado que, em grande parte, deve-se à atuação firme e obstinada de seus magistrados, sobretudo na área criminal" [5]. Poder-se-ia dizer que a ideologia punitivista, que consagrou os excessos prisionais, para obter mais encarceramento (tenho lá fundadas dúvidas acerca dessa "efetividade" anunciada pelo senso comum), vinha sendo decidida em afronta aos paradigmas nacionais da jurisprudência. Mas jamais passaria pela cabeça de um jurista que, por tais decisões, juízes pudessem ser levados ao banco dos réus e recebessem uma tão desabonadora sanção. Afinal, independência judicial não casa com censura fundada em atividade jurisdicional. Da última vez que foi colocado à frente de uma questão similar, o Conselho Nacional de Justiça não hesitou. Cassou, por estrondosa maioria, a punição da então juíza Kenarik Boujikian, a quem do mesmo modo se lhe aplicara punição por decisão judicial. Coincidentemente, também por soltar presos. Na época, o então corregedor-geral da Justiça, João Otávio de Noronha, assinalou que havia evidente contradição na sanção imposta, que buscava condenar a juíza por sua convicção jurídica: "O juiz, a qualquer instante, está autorizado a proferir decisões de natureza penal concessiva da liberdade" [6], disse o ministro do STJ. Já a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, encerrou a sessão afirmando que a todos os juízes é permitido proferir decisões de acordo com a convicção que têm sobre o Direito: "Nenhum país democrático, e nenhum cidadão, pode dormir sossegado se não tiver a certeza de que o juiz foi conduzido pela convicção do Direito em determinado caso. É isto que dá a necessária segurança jurídica de direitos e liberdades" [7]. A composição do Conselho Nacional de Justiça mudou desde então. Mas supomos que a convicção de garantir a segurança jurídica de direitos e liberdades mantenha-se íntegra. - [1] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Escritório Contra Drogas e Crime (UNODC). Comentários aos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial. Disponível em <https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil/Topics_corruption/Publicacoes/2008_Comentarios_aos_Principios_de_Bangalore.pdf>, acesso em 30/11/18, às 19h30. [2] STJ, Sexta Turma: Habeas Corpus 596.603/SP. [3] Idem. [4] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Nota da Presidência da Seção Criminal (5/8/2020). Disponível em http://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=61813&pagina=1, acesso em 07/8/2020, às 19h00. [5] Idem. [6] "CNJ absolve juíza que havia sido punida por soltar presos provisórios", Agência Brasil, 29/8/2017, disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-08/cnj-absolve-juiza-que-havia-sido-punida-por-soltar-presos-provisorios. [7] "Por 10 votos a 1, CNJ anula condenação de juíza paulista Kenarik Boujikian", Consultor Jurídico, 29/8/2017, disponível em https://www.conjur.com.br/2017-ago-29/10-votos-cnj-anula-condenacao-juiza-kenarik-boujikian. Marcelo Semer* é juiz de Direito, escritor, mestre em Direito Penal e doutor em Criminologia, ambos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.  Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 30 de novembro de 2020.

Existem, sim, juízes no Brasil*

Em artigo publicado nesta revista eletrônica no último dia 24 de novembro, defendendo a necessidade de isenção da magistratura, o juiz Otávio Amaral Calvet imputa ao Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região prejulgamento de questões trabalhistas em casos concretos. O artigo já inicia com um erro básico: confunde imparcialidade com isenção ideológica e, nesse sentido, simplesmente ignora todos os estudos, doutrinas, filosofias que se debruçam sobre o tema. Ignora até mesmo o conceito das palavras que utiliza. Imparcialidade é o ato de não assumir o lugar da parte e, pois, não julgar a partir da identificação pessoal com determinada situação concreta. Isenção é "falta de comprometimento moral; desinteresse". Em sentido figurado, o dicionário aponta, ainda, isenção como "demonstração de desprezo; indiferença, desdém". Isenção ideológica é a ausência de ideologia. Para afirmar que alguém é isento de ideologia é preciso ignorar também o conceito de ideologia. Ideologia, como ensina Ovídio Baptista ("Processo e Ideologia"), é um conceito apresentado na obra de Francis Bacon, um dos preconizadores do racionalismo. Bacon aponta quatro idola que nos impediriam de chegar à essência das coisas, por criar "pré-juízos". Na obra, de 2004, Ovídio alerta para o fato de que tratar opositores como ideológicos pressupõe sermos detentores da "verdade única", elemento central do pensamento conservador. Aponta como marca da modernidade a "ideologia da neutralidade", que naturaliza a realidade que o próprio sistema elabora, de modo que toda a pessoa que destoar dessa realidade será acusada de ideológica. É, pois, um argumento autoritário. No âmbito do processo, segundo Ovídio, "essa naturalização da realidade tem uma extraordinária significação", apontada pelo professor como um dos pilares do sistema: "É através dela que o juiz consegue tranquilidade de consciência, que lhe permite a ilusão de manter-se irresponsável" (BAPTISTA DA SILVA, p. 16). E conclui que os dois principais compromissos ideológicos inerentes a essa compreensão do Direito e da missão do Poder Judiciário são: "A ideia de que o juiz somente deve respeito à lei, sendo-lhe vedado decidir as causas segundo sua posição política" e a "tirania exercida pela economia sobre o resto", um "sonho racionalista" que "possui um imenso componente autoritário, correspondendo a um modelo político propenso mais às tiranias do que a um regime democrático, como hoje tornou-se fácil perceber" (Idem, pp. 22-5). Impressionante a atualidade da lição. No artigo publicado no dia 24, sob o argumento de que a magistratura deve observar "sobriedade no falar", Calvet imputa ao TRT da 4ª Região "prejulgamento", afirmando ter fixado "uma pauta abstrata de valores e conceitos que, depois, irá apreciar ao julgar o caso concreto". A pauta, no caso, é o antirracismo. E realmente essa é uma pauta que, aliás, me faz ter orgulho de pertencer a esse tribunal. Se é abstrata, como afirma o articulista, não está relacionada ao caso concreto, outro equívoco básico que faz perder-se o próprio fundamento da crítica. Também não compromete, evidentemente, a imparcialidade em eventual julgamento de questão trabalhista. O articulista acusa o tribunal de "expressar sua revolta, externalizar seus sentimentos, mormente quando se conecta com o evento pessoalmente", como se o erro estivesse na manifestação pública de repúdio a um assassinato que foi filmado, do início ao fim, e que torna nítida a existência de um racismo estrutural que nos atravessa. E não na omissão diante de todo o flagelo social que faz com que trabalhadores precarizados se arvorem a justiciar um cliente de uma grande rede de supermercados, que há menos de quatro meses foi notícia por haver coberto o corpo de um empregado que morreu no ambiente de trabalho, com guarda-sóis, para seguir em funcionamento. O mínimo que se espera de um Tribunal do Trabalho em uma realidade democrática é a indignação e o firme posicionamento diante de atos que banalizam a morte. Note-se que o autor refere que não se trata de concordar ou discordar da afirmação de que houve um brutal assassinato revelador do racismo que estrutura nossa sociedade, fazendo lembrar a frase célebre de Lacan: "O desejo enquanto real não é da ordem da palavra e sim do ato". É preciso refletir sobre a escolha que fazemos acerca dos lugares discursivos e políticos onde colocamos nossa energia. Em uma realidade marcada pela violência, pelo desemprego que atinge parcela significativa da população economicamente ativa e pela apatia diante do flagelo da Covid-19, que já provocou, apenas em números oficiais, mais de 170 mil mortes em nosso país, é muito simbólico que se gaste energia com a crítica à ideologia, em lugar da denúncia da barbárie, como se todos não fôssemos seres políticos, sociais e, portanto, ideológicos. Ou por acaso há isenção ideológica em um texto em que o autor sugere ser possível "a arguição de suspeição para os futuros julgamentos em tal jurisdição pelas empresas envolvidas"? Em lugar de se preocupar com o fato de que alguma juíza ou juiz do TRT-4 possa julgar ações trabalhistas decorrentes do tenebroso episódio, a preocupação deveria voltar-se ao evento em si, a revelar tenhamos ultrapassado mais uma barreira de civilidade, capaz de comprometer todas as conquistas sociais que nos separam hoje de um ambiente de barbárie. Impressiona a dificuldade na compreensão da nota pública do TRT-4, pois em momento algum imputa-se às pessoas que espancaram João Alberto "motivação racial". Ao contrário, o recado é claro: "Sem prejuízo da devida apuração dos fatos, é importante salientar que João Alberto era um homem negro, vivendo em uma sociedade marcada pelo racismo estrutural, que tende a naturalizar violências praticadas contra a população negra e indígena. Salientamos, assim, a necessidade de políticas públicas e institucionais — aí incluídas as empresas privadas — que tragam à tona o debate racial. Como nos ensina o professor doutor Silvio Almeida, "as instituições que não tratarem de maneira ativa e como um problema a desigualdade racial irão facilmente reproduzir as práticas racistas já tidas como 'normais' em toda a sociedade". Talvez seja esse convite à reflexão que tanto incomode. O que dignifica a função da magistratura não é a covarde omissão ou a inércia que mal se disfarça sob a desvirtuada noção de isenção ideológica. Comportar-se de forma prudente é tornar claro à sociedade que um Tribunal do Trabalho repudia atos de morte por espancamento e reconhece a existência de racismo estrutural. Causa estranheza, portanto, que depois de tantos avanços, sobretudo no âmbito da ciência processual, ainda estejamos sonhando com juízes neutros, desconectados da realidade, alheios às questões sociais. Se tal pensamento foi sustentado à época de Montesquieu e sob a lógica de um direito pautado pelo falso paradigma da igualdade, é certamente anacrônico em um Poder Judiciário inscrito na ordem democrática e contaminado por valores que não estão à disposição do intérprete, pois presentes no texto da Constituição da República.  Com algo concordamos, vivemos mesmo tempos difíceis, diante dos quais nenhum ser humano pode calar-se, exerça ou não a função jurisdicional. Não é apenas em Berlim: há juízes também no Brasil, e eles não são cegos, surdos ou imunes à realidade. São seres políticos, comprometidos com a ordem constitucional e com toda a carga ideológica que ela contém.  Valdete Souto Severo* é juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região e presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD).  Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 26 de novembro de 2020.    

O esgotamento da pós-democracia neoliberal*

“Você não sente nem vê Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo Que uma nova mudança em breve vai acontecer” Velha roupa colorida (Belchior) Inicio minhas reflexões guiado pela poesia de meu amado conterrâneo Antônio Carlos Belchior, tendo como pano de fundo a evolução dos acontecimentos históricos que estão deixando o mundo em ebulição. Além dos protestos antirracistas “vidas negras importam” que pipocaram no mundo todo e contribuíram sobremaneira para a derrota eleitoral de Donald Trump, ventos de resistência também vêm invadindo nossa América Latina. O povo Boliviano em menos de um ano derrotou nas urnas e de forma contundente o golpe de Estado praticado pelas forças reacionárias do país. E não poderia deixar de citar também a força do povo chileno, que após um ano de massivos protestos, mesmo mediante violenta repressão das forças de segurança do Estado, enterrou por ampla maioria, e de forma definitiva, a constituição autoritária neoliberal promulgada pelo odioso ditador militar Augusto Pinochet. Demais disso, não poderia deixar de pontuar o resultado das eleições municipais em nosso país, que podem sugerir a chegada paulatina ao Brasil desse processo de rebelião popular. Além do derretimento da extrema direita em todas as regiões, o sucesso da candidatura popular de Guilherme Boulos na maior cidade do país é muito relevante, assim como a eleição de inúmeros vereadores provenientes de movimentos sociais das periferias das grandes e médias cidades. Esses acontecimentos revelam que as massas populares inflamadas em nossa Pátria Grande latino-americana, e em todo o mundo, começam a se rebelar contra toda sorte de opressões. Surge assim, nessa quadra histórica, uma oportunidade rara para sairmos dessa terra arrasada deixada pela Pós-democracia. Vale frisar que a situação do Brasil é muito particular, e mais complexa, já que vivemos um momento de profundo retrocesso civilizatório, principalmente com a total desregulação do direito do trabalho operada por essa extrema direita chucra e apoiada com desfaçatez pelos representantes de sempre do poder econômico-financeiro no Congresso Nacional.  Falando em Pós-democracia, cumpre mencionar as lições de nosso colega Rubens Casara que em sua obra “Sociedade sem lei” esmiúça a catástrofe social que vivemos no mundo, principalmente na periferia do sistema capitalista. Direitos fundamentais, e principalmente os direitos sociais do trabalho, são habitualmente destruídos pelos agentes estatais que representam os interesses do “deus mercado”. O ser humano é coisificado, sendo apenas mais uma mercadoria negociável. Não há limites para a relativização de direitos fundamentais, principalmente quando são empecilhos para atender determinado interesse econômico. “Lucro Máquina de louco Você pra mim é lucro Máquina de louco” Lucro (Descomprimindo) (Baiana System)  A consolidação dessa lógica nefasta da Pós-democracia, principalmente na periferia do sistema, vem tensionando o conflito de interesses do povo trabalhador X grandes conglomerados econômico-financeiros. Auxiliados pelos seus tentáculos nos Poderes do Estado, desequilibraram profundamente a balança civilizatória. As condições de vida cada vez mais precária da população, aliada a violência estatal para lidar com o exército de pessoas excluídas do sistema, têm gerado uma onda de insatisfação e revolta que fez com que algumas figuras do mainstream neoliberal global ligassem o sinal de alerta. Além dessa pressão civilizatória e econômica advinda do caos provocado pela Pós-democracia, é primordial, na minha ótica, destacar pontualmente o papel chave do fator China na geopolítica. A crescente importância dessa nação no tabuleiro de forças do planeta, com outros paradigmas sociais, políticos e econômicos, também está servindo de combustível para essa efervescência no mundo.  Ademais dos excelentes indicadores sociais e econômicos da potência asiática no contexto pré-pandemia, sendo o país que mais reduziu a fome e a extrema pobreza nas últimas décadas, a conduta do governo chinês no combate a pandemia do COVID-19 é um exemplo de grande sucesso reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Diante desse contexto perigoso para as grandes elites financeiras, instituições neoliberais do calibre de Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional se viram forçadas a defender maior investimento público para redução das desigualdades sociais e mitigação temporária do dogma da austeridade fiscal. Figuras conhecidas no Brasil, representantes dessas mesmas elites financeiras internacionais, como Armínio Fraga (ex Presidente do Banco Central do governo FHC) e André Lara Resende (um dos criadores do plano real e ex Presidente do BNDES do governo FHC), passaram a defender de forma oportunista a suspensão do famigerado ajuste fiscal, e conseqüente aumento do investimento do Estado, e até da carga tributária, como ferramentas para concretizar a redução das desigualdades, auxiliando a recuperação da economia. Nesse contexto de efervescência mundial e com o fator China pressionando o mainstream neoliberal, um caminho alternativo já se apresenta, muito similar ao que ocorreu no pós 2ª guerra. Os grandes conglomerados financeiros globais, e seus marionetes locais, tentam buscar um caminho desavergonhado de manutenção do status quo, mas desta feita com a observância de direitos fundamentais mínimos, reaproximando os valores fluídos do sistema a um keynesianismo de ocasião, como uma tentativa de retomar, no caso do Brasil, parte de nosso combalido projeto constitucional social democrata.  Apesar dessa mudança de caminho apontada acima, nas periferias do sistema a situação é mais complexa. Ao contrário das figuras do mercado financeiro mencionadas, os representantes máximos do neoliberalismo no Estado Brasileiro permanecem na mesma toada pós-democrática, com destaque para o papel do Poder Judiciário, principalmente do Supremo Tribunal Federal. Toda sorte de ataque ao nosso sistema de direitos fundamentais sociais do trabalhador está sendo chancelada pela maioria do plenário da corte, a exemplo de inúmeras inconstitucionalidades da Reforma Trabalhista e ainda mais recentemente o fim do salário isonômico para os trabalhadores terceirizados.  Além disso, foi validado o direito de exceção estabelecido nas medidas provisórias editadas nessa temporada de pandemia, em que direitos basilares dos trabalhadores com previsão em nossa Carta Magna foram totalmente violados, como a exclusão do Sindicato nas negociações de redução de salário, jornada e suspensões contratuais. Infelizmente não é somente no âmbito das cortes superiores que os interesses do poder econômico estão presentes, mas também em todos os graus e níveis do Judiciário, inclusive no âmbito da Justiça do Trabalho. Historicamente nosso país formou uma elite de magistrados que em sua maioria não tem nenhum compromisso com nossa Carta Magna e a complexidade de direitos fundamentais ali consagrados. Filhos das mesmas elites econômico-financeiras que comandam o país, ou oriundos da classe média mais abastada que fantasia ser elite, a grande maioria desses magistrados age como Pôncio Pilatos da modernidade. Agravam a situação social e econômica da classe trabalhadora, chancelando toda sorte de desconstrução de direitos sociais em absoluta incompatibilidade com os alicerces de nosso Estado Democrático de Direito (arts. 1º e 3º da CF/1988), notadamente a dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho, a construção de uma sociedade livre, justa, solidária, a erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais e regionais, dentre outros preceitos. Essa visão estritamente econômica do direito é tão incompatível com nosso projeto constitucional, inclusive pensando de forma pragmática, que ao invés de atuar como Poder contramajoritário em face dos interesses selvagens do mercado e manter o patamar digno de direitos sociais da população, na verdade precariza de forma tão aviltante as condições de vida do trabalhador que prejudica inclusive a possibilidade de recuperação econômica. Ora, ao fim e ao cabo, essa retirada de direitos reduz a massa salarial e o consumo das famílias, que é o maior motor de nossa economia. Além dessa alternativa que já se apresenta, com a possibilidade de retomada paulatina e desavergonhada de nosso projeto constitucional defendida por alguns dos representantes do mercado financeiro, esse tensionamento que o mundo neoliberal institucional tupiniquim tem operado em desfavor do cidadão trabalhador, pode estar levando a um ponto de ruptura, onde quem sabe, num processo parecido com o que ocorreu no Chile no último ano, possamos avançar como nação para uma democracia mais humanizada, em que nossos Poderes sejam ocupados por cidadãos compromissados com o povo brasileiro, e não sirvam somente como entrepostos dos interesses do mercado. Termino minhas breves reflexões, agora movido pelo samba “Juízo Final” imortalizado na voz de Clara Nunes, com desejo e esperança de que a força popular que está invadindo nossa Pátria Grande latino-americana possa continuar ultrapassando as fronteiras do Brasil. Com isto talvez tenhamos uma nação mais humana, em que os povos originários e quilombolas sejam respeitados e reparados, em que todos possam conviver fraternalmente independente de raça, orientação sexual, gênero, em que se reconheça cada vez mais direitos aos trabalhadores, e que todos, independente de ideologia, tenham absoluto compromisso com os princípios fundamentais de nossa Constituição, para que possamos coletivamente sempre frear qualquer sinalização de mudanças antidemocráticas que nos joguem novamente na barbárie. “O Sol há de brilhar mais uma vezA luz há de chegar aos coraçõesDo mal será queimada a sementeO amor será eterno novamente” Juízo Final (Nelson Cavaquinho e Élcio Soares) *Vladimir Paes de Castro é juiz do Trabalho do TRT21-RN, membro da Associação de Juízes para Democracia (AJD) e da Associação Nacional de Magistrados da Justiça  do Trabalho (ANAMATRA)  Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 19 de novembro de 2020.

“Vidas Negras Importam”: mas a magistratura é formada por 82% de brancos*

A ONU lançou nota sobre a morte de João Alberto no Carrefour em Porto Alegre. Entre várias considerações, segundo a entidade, o fato “evidencia as diversas dimensões do racismo e as desigualdades encontradas na estrutura social brasileira”, o que deve ser urgentemente eliminado. “Mas a ONU é comunista”, dirão uns, sem nada saber sobre comunismo. “Racismo no Brasil não existe, é infiltração ideológica”, bafejarão outros, carregados de ideologia. De minha parte, não preciso saber que o comunismo é a pretensão, utópica para alguns, de uma sociedade igualitária, fundada na propriedade comum dos meios de produção, ou que ideologia é a integralidade de formas de consciência social, para ver que o Brasil é um país marcado pelo racismo. Não preciso recorrer a estudos que demonstram que em nosso país vidas negras valem menos que vidas brancas, que os assassinatos de negros são muito superiores aos de brancos e que a morte violenta ocorre em praticamente sua totalidade contra pobres e periféricos. Não é pelas estatísticas que conheço as pessoas cujas vidas são ceifadas, eu as conheço pelo nome, quando julgo extintas punibilidades de apenados e egressos mortos. São tantos! Também não é pelas estatísticas que sei que a cor do cárcere, entre os mais de 800.000 presos do sistema, é preta. Não sou daltônico – e também não sou preconceituoso com daltônicos, mas aproveito essa expressão, pois ela foi recente e equivocadamente usada. Quando entro nas prisões de norte a sul, leste a oeste, eu olho para os seres humanos que lá vivem, ou sobrevivem, eu os vejo e sei da sua cor. A Constituição protege o cidadão em face do estado e em face de outro cidadão, mas o fato é que as violações dos Direitos Humanos continuaram no Brasil pós-Constituição e durante o processo de democratização. Houve um avanço, mas muito precário, que não criou raízes, e por isso na primeira oportunidade o autoritarismo retornou e as poucas conquistas no respeito aos direitos fundamentais cederam aos interesses de uma elite que sempre foi racista. O racismo nunca foi superado, ele talvez apenas tenha recolhido suas garras por um breve momento e, agora, aproveita para saciar com voracidade seus traumas, fixações e complexos. Numa época de eleições municipais, poucos foram os candidatos brancos que defenderam políticas reparatórias da dívida histórica para com as populações negras. Talvez porque a classe média e rica não deseje saber da ralé, como muito bem pontua o sociólogo Jessé de Souza, e queira continuar reproduzindo a escravidão, hoje retratada no subemprego e na subalternalização de milhões de brasileiros, que dormem em quartos escuros, abafados e minúsculos, para servir ao patrão e à patroa, em seus luxos hedonistas, replicados de Miami. Por estas terras, os negros são impedidos de ocupar lugares de poder. Poucos são os que exercem cargos e funções de protagonistas dentro do estado e das políticas públicas. Já no Poder Judiciário, sabe-se que a magistratura brasileira é formada por 82% de pessoas brancas. Onde estão os juízes negros? E assim segue o “país do futuro”, com pessoas negras não ocupando espaços de poder, porque as portas de acesso só se abrem às pessoas brancas; com corpos preponderantemente negros sendo aprisionados nas cadeias; e com vidas matáveis, vidas negras. Por que isso não choca? Por que a nação não para diante de tanto horror? Estamos sedados? Palavras não farão superar a dor da injustiça, especialmente quando essa injustiça é tão extrema que interrompe, de forma cruel e violenta, uma vida humana. O motivo pelo qual ora escrevo é porque existem coisas que não podem ser silenciadas. Não quero entorpecer o mundo, mas tentar espremer seu fígado. Como branco, privilegiado, crescido com oportunidades infinitas, tenho o dever de conhecer nossa história racista, patriarcal e colonialista, saber mais da realidade, enxergar a opressão e o sofrimento, por séculos impostos aos negros. Digo mais. Para mim não basta não ser racista, é preciso lutar contra o racismo, é preciso ser antirracista. Os negros não voltarão para a senzala, queiram ou não os racistas. Vidas negras importam! *João Marcos Buch é juiz de direto da vara de execuções penais da Comarca de Joinville/SC e membro da AJD   Artigo publicado originalmente no site Justificando no dia 25 de novembro de 2020.    

Responsabilidade civil e consciência racial da magistratura*

A manifestação de raiva e indignação com a morte de João Alberto Silveira Freitas no interior do supermercado Carrefour pode ser feita desde a ordem, a razão, ou mediante a expressão do sentimento, cumprindo, assim, as premissas clássicas do liberalismo (mente/corpo). Nós preferimos ir além por entendermos que o racismo deve ser visto sob os diversos prismas que conformam a sociedade, afastando-se, assim, da falácia jurídica, ou seja, na crença de que apenas o âmbito jurídico pode garantir direitos. Essa a opção de Mbembe, denominada também de visceralidade, ou o uso da expressão dos nossos sentimentos em forma de razão e indignação. Conceição Evaristo já denominou de escrevivência o ato de escrever o que vivenciamos como grupo racial e racializado. Os vídeos onde se vê seguranças espancando até à morte João Alberto, homem negro, companheiro de Milena e pai de quatro filhos, no estacionamento de uma das lojas da rede de supermercados Carrefour, constitui-se em um padrão da realidade vivenciada pela população negra brasileira. A cena não deixa nada a desejar à descrição de qualquer outra ocorrida no período escravocrata no Brasil. A marcação, a vigilância e o controle dos corpos negros nos espaços públicos e privados constitui-se em exemplo suficiente de como se inviabiliza o princípio liberal de liberdade de locomoção e circulação, e, por conseguinte, a igualdade formal entre todos os cidadãos no Brasil, entre outros contextos onde residem seres racializados. O motivo principal é que os nossos corpos sempre foram vistos e percebidos na esfera pública como ameaça, perigo, descontrole da ordem convencional preestabelecida por âmbitos institucionais governados e coordenados por indivíduos de raça branca. Essa construção e difusão da figura do homem negro como indolente, violento e perigoso redunda em diversos outros indicadores sociais os quais demonstram que, na sociedade brasileira, há um lugar específico para a população negra, qual seja, sem emprego ou subocupada, sem ocupar cargos de poder ou de saber, morta ou encarcerada, desumanizada, hierarquizada e sob intenso controle social. Apesar da superação do conceito da superioridade racial desde o ponto de vista biológico, a raça continua sendo o elemento chave na determinação da superioridade e inferioridade entre as pessoas, sobretudo desde a conjunção modernidade/colonialidade (escravidão e colonização). Aníbal Quijano, ao falar sobre colonialidade do poder, discorre sobre a diferença colonial, a qual consiste, em apertada síntese, em uma marcação de grupos de pessoas ou populações, identificados por suas faltas ou excessos, usando essas diferenças como elementos de classificação de inferioridade em relação a quem as classifica. A colonização foi a matriz que permitiu estabelecer essas diferenças e justificar a cristianização com a lógica de classificar e de hierarquizar as pessoas do planeta de acordo com suas línguas, religiões, nacionalidades, cor de pele, grau de inteligência etc. Desse modo, a questão do racismo não se traduz somente em uma questão de cor de pele ou de cor de sangue e, sim, em uma questão de humanidade, pois um grupo de pessoas definiu o que é humanidade e o que não é. Nessa ótica, alguns são considerados néant (Fanon) ou nadies (Galeano), marcando-se bem as fronteiras da humanidade e contradizendo, assim, os princípios do humanismo a priori. A morte de João Alberto deve ser vista como a manifestação de uma violência branca que se vêm incrementando nos últimos anos devido à legitimidade ou cegueira das violências estruturais que são proferidas desde o governo brasileiro, entre outros, em nível mundial. Quando se pensa na responsabilização civil do Carrefour e no processo cível daí decorrente, convém destacar que todas essas concepções racistas capturam as subjetividades dos julgadores e julgadoras, constroem uma forma de pensar que organiza as relações de poder entre os sujeitos de direito e os operadores do Direito e, por isso, devem ser visibilizadas, ainda mais quando se sabe que o Poder Judiciário brasileiro compõe-se, majoritariamente, por homens e mulheres brancos e que, por outro lado, a população preta/parda corresponde a 54% da população brasileira. A correlação entre órgãos judiciais e população se distancia ainda mais no cenário sul-rio-grandense, onde 97% dos magistrados são brancos e a população negra corresponde a pouco menos de 20% do total. Expor a falácia da "neutralidade do órgão judicial" escancara o fato de que o fenômeno jurídico é produto da atividade humana, pertence à cultura e, como fenômeno cultural, não pode ser compreendido como mera técnica, ao contrário, para seu melhor entendimento se permite e se exige uma aproximação histórica, ciente de que a finalidade do processo não se constitui em simples realização do Direito material e, sim, na concretização da Justiça material e na pacificação social. O Direito entendido como uma técnica de domínio social que não se constitui neutra e determina a priori quem pode produzir a lei, quem pode interpretá-la e quais parâmetros serão fixados para interpretar e aplicar a lei, demonstra como os/as magistrados/as possuem grande poder, pois, não apenas dizem qual o direito mais adequado para cada caso, mas conformam atitudes e regulam relações sociais de acordo com um sentido ideológico e político próprio e determinado. Por tal razão, pensar o assassinato de João Alberto como sendo mais uma das milhares de mortes de homens negros no país constitui-se tarefa primeira de todo/toda magistrado/a que analisar eventual pedido de responsabilidade civil a ser ajuizado perante a rede de supermercados Carrefour, pois a causa estrutural evidente, ou seja, o racismo que conduz a todo esse contexto desigual e violento deixa de ser, costumeiramente, enunciado nas decisões que enfrentam idênticos fatos, por razões conscientes ou, até mesmo, inconscientes. Tendo em conta as questões subjetivas que conformam a branquitude brasileira e a inexistência de neutralidade racial na condução de processos judiciais, conferindo especial ênfase ao silenciamento de tudo o que diga respeito, diretamente, à população negra, apresenta-se impositivo afastar o mito da democracia racial, já que a falácia do "todos somos iguais", brancos ou negros, invisibiliza, por completo, toda e qualquer discussão a respeito de raça e racismo, seja no âmbito da Justiça, seja na própria sociedade, gerando, a partir daí diversas outras situações de desigualdade e exclusão. Nesse contexto, especial ênfase há de se dar à consciência racial, conceito trabalhado na teoria crítica racial, junto com branquitude, microagressão (produzida pelo Direito), interseccionalidade, entre outros, o qual, ao reconhecer as diferenças sociais entre raças, recusa a noção de objetividade da lei (que enxergaria o indivíduo para além de/independente de sua raça) e recusa a ideia de que o direito não deve levar em conta a raça. Espera-se que o Poder Judiciário sul-rio-grandense, constituído, em sua ampla maioria, de pessoas brancas, ao analisar o presente caso, leve em conta o contexto social, racial, cultural, político, do Brasil e do Rio Grande do Sul para compreender, a partir da lógica racista estrutural e institucional implementada desde os tempos coloniais, como se (re)produzem as violências sociais e raciais que culminaram com a morte de João Alberto, por asfixia, no interior das dependências do Carrefour.  * Karla Aveline de Oliveira é juíza de Direito (TJRS) em Porto Alegre, especialista em Processo civil (UNISINOS/RS) e mestra em Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo (UPO/Espanha). ** Edileny Tomé da Mata é doutor em Derechos Humanos y Desarrollo (UPO/Espanha), docente/pesquisador na Universidade Pablo de Olavide na Área de Filosofia do Direito, docente e coordenador (UNIA) no mestrado em Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo (UPO/Espanha). Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 23 de novembro de 2020.

Trabalho feminino em ambientes de embelezamento: a estética da negação*

Muitas de nós frequentam esses espaços, sem talvez jamais ter se questionado condições de trabalho dessas trabalhadoras A ausência de discussões profundas, e de avanço, em relação à proteção social das trabalhadoras em ambientes de embelezamento impõe que reflitamos sobre o caráter misógino da invisibilidade das atividades de cuidado e sobre a necessidade de pensar o Direito do Trabalho como espaço da luta feminista. Os ambientes de embelezamento são predominantemente femininos: a maioria absolutas das trabalhadoras é composta de mulheres, assim como são mulheres muitas das proprietárias e frequentadoras desses espaços. O objeto desses empreendimentos é o cuidado do corpo. E neles, o Direito do Trabalho simplesmente não existe. As trabalhadoras são tratadas como autônomas, quando em realidade vendem sua força de trabalho para quem se apropria do lucro que com ela aufere. Nas atividades das cabelereiras, manicures, pedicures estão presentes todos os requisitos que a CLT estabelece para que se reconheça um vínculo de emprego. Elas, porém, são tratadas como empreendedoras de si mesma, sob a lógica da precarização que simplesmente as impede de viver com um mínimo de previsibilidade e segurança. Ainda assim, as frequentadoras desses ambientes não se revoltam e, no mais das vezes, sequer questionam o absoluto desamparo a que essas mulheres são expostas. As atividades exigem habilidades específicas e motricidade fina, são realizadas em condições ergonômicas inadequadas (em pé ou curvadas), em contato com produtos químicos nocivos à saúde, sem equipamentos de proteção ou treinamento específico para prevenir danos à saúde. As trabalhadoras são cotidianamente expostas ao risco de contrair hepatite, sarampo, caxumba, gripe, dengue, poliomielite, febre amarela, varíola, AIDS, catapora, além da COVID-19. O fato de estarem à margem do sistema, exige dessas profissionais jornadas extenuantes, único modo de garantir-lhes renda mensal minimamente adequada. Elas não podem fruir férias ou feriados prolongados, porque a ausência de remuneração compromete a satisfação de despesas ordinárias. O resultado é o comprometimento da saúde física e mental. O isolamento físico necessário em razão da pandemia completa um quadro de absoluto desamparo, pois o fechamento dos centros de embelezamento retira dessas mulheres a possibilidade de sobrevivência. Como falsas autônomas, não possuem sequer o “privilégio da servidão”, representado pela manutenção de um vínculo com redução de salário, nos moldes da Lei 14.020, ela mesma absolutamente contrária à literalidade e a todo o conjunto de valores previstos na ordem constitucional vigente. As trabalhadoras das estéticas estão em uma situação de ainda maior precariedade. Precisam trabalhar, mesmo durante a pandemia e sem proteção alguma. O desespero diante da falta de renda faz com que “escolham” expor seus corpos ao adoecimento e à morte. A Lei 13.352/2016 refere-se a essas atividades como parcerias. Em uma sociedade de trabalho obrigatório, em que remédios e alimentos só são obtidos através do dinheiro obtido pela troca de trabalho por capital, essa é uma previsão perversa. Desafia a ordem constitucional, segundo a qual há um direito fundamental à relação de emprego (artigo 7º, inciso I). Todas as pessoas que sobrevivem do trabalho que realizam, cujos frutos são apropriados por terceiros, são empregadas. É o que diz, claramente, a CLT, quando define os sujeitos da relação social de trabalho subordinado. É o que garante a nossa Constituição. É nítida a presença, nos ambientes de embelezamento, de um direcionamento da atividade, na fixação do preço do trabalho, na organização da agenda e do espaço, nos uniformes, nos critérios para o atendimento. As donas desses locais se apropriam do mais-valor ali produzido. Lucram com o trabalho alheio. A transferência dos riscos do negócio para a trabalhadora não descaracteriza a relação de emprego. Ao contrário, implica descumprimento de um dever fundamental. Do mesmo modo, não o descaracteriza o fato de a empregadora não dirigir diretamente os serviços ou utilizar de subterfúgios, tal como o repasse de despesas às empregadas (limpeza de uniformes ou compra de produtos). Em regra, excluídos aqueles instrumentos básicos de que a trabalhadora dispõe praticamente como extensão de seus próprios membros, os meios de produção efetivamente necessários para o desenvolvimento da atividade (e normalmente mais dispendiosos), como o local para o desenvolvimento do trabalho, cadeira e alguns aparelhos mais sofisticados, são fornecidos por quem efetivamente emprega a força de trabalho e com ela obtém lucro. Pouco importa que essas trabalhadoras tenham “carteira de clientes”; que possam ou não ser substituídas; que haja variação nos valores do trabalho; que exista na empresa uma recepcionista que direcione e receba pelo serviço ou que o pagamento seja direto. É irrelevante também o caminho feito pelo dinheiro (se passa pelas mãos da empregadora antes de chegar à trabalhadora ou não), pois mesmo no modelo típico da fábrica, muitas vezes o lucro somente chega às mãos da empregadora após serem deduzidos todos os custos da produção, incluída a remuneração da(o)s empregada(o)s. Pouco importa, ainda, se a distribuição é feita pela empregadora ou, para evitar mais esse desgaste, por outra pessoa empregada. Importa perceber que ao final do processo estará garantido, à trabalhadora, o seu meio de subsistência física, e à empregadora o seu lucro. Trata-se, pois, de típica relação de emprego. Muitas de nós frequentam esses espaços, sem talvez jamais ter se questionado sobre as razões para a condição de desamparo em que essas trabalhadoras são colocadas. O fato é que tanto nas tarefas de reprodução social, negadas como forma de exploração capitalista, quanto nas funções realizadas em centros de embelezamento, estamos diante de atividades de cuidado “tipicamente” femininas e, exatamente por isso, mais facilmente assimiladas como algo que pode ser realizado sem o mínimo de proteção social. A luta feminista, necessariamente anticapitalista e emancipadora, deve reconhecer no Direito do Trabalho uma importante condição de possibilidade para a alteração das estruturas misóginas que atravessam e sustentam a lógica da exploração do trabalho pelo capital: um caminho para a transformação social, portanto. Essa transformação não ocorrerá enquanto mantivermos espaços de exploração ilimitada do trabalho humano, de que os ambientes de estética são apenas um exemplo. Não ocorrerá enquanto não reconhecermos a importância do trabalho de cuidado e o machismo estrutural que facilita e determina a sua invisibilização e discriminação. Não ocorrerá, enquanto não assimilarmos o peso da questão racial para essa cegueira seletiva diante de algumas atividades laborais. O trabalho das manicures, pedicures e cabelereiras é trabalho subordinado e deve receber toda a proteção social que daí decorre. Essa é uma dívida histórica a ser saldada com as mulheres que atuam nesses espaços e que, diante do advento da pandemia, se revela ainda mais urgente e inadiável.  * Valdete Souto Severo, É Presidenta da AJD - Associação Juízes para a Democracia. Diretora e Professora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS; Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e Juíza do Trabalho.  Artigo publicado originalmente no site Carta Capital no dia 19 de novembro de 2020.

O STF, a prova ilícita e a violação dos corpos de mulheres*

O Supremo Tribunal Federal tem em suas mãos mais um processo no qual fica clara a violação praticada pelo Estado no ambiente prisional e, mais uma vez, os olhos estão postos com a expectativa que o STF seja efetivamente o guardião da Constituição Federal. Trata-se do ARE 959.620, com repercussão geral, que tem como cerne a revista vexatória realizada para ingresso em estabelecimento prisional e suas consequências para o plano probatório. Para o ministro relator, Edson Fachin, que foi acompanhado pelos ministros Luís Roberto Barroso e Rosa Weber, a revista viola a dignidade humana e as regras de proteção constitucional e, por consequência, as provas dela decorrente são ilícitas. O ministro Alexandre de Morais abriu divergência e aguarda-se a devolução do processo pelo ministro Toffoli, que pediu vista no último dia 29. A revista íntima, que é vexatória, é um procedimento cruel, desumano e degradante em que milhares de pessoas, majoritariamente mulheres, adolescentes, idosas e inclusive crianças, ficam nuas, obrigadas a expor as partes íntimas do corpo. Conduta massificada e naturalizada. Os parentes são considerados, a priori, autores de crime. Caracteriza-se por atos de agentes estatais, com ordem de desnudamento total ou parcial, agachamento, saltos, movimentos corpóreos (como tosse, flexões, pressões contra a parede), observação de órgãos genitais nus e até procedimentos de toque corporal e utilização de espelhos. Todos esses atos ferem a dignidade humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, assim estabelecido na nossa CF. Afrontam o direito à intimidade e à vida privada, à integridade física, psíquica e moral, à honra, ao devido processo legal, à inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito, aos princípios constitucionais da não autoincriminação e da intranscendência das penas, caracterizando-se por um tratamento cruel e degradante. Além da nossa CF, temos a normativa de proteção internacional à qual o Brasil está sujeito, no exercício de sua soberania, como a Declaração Universal de Direitos Humanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos, as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos (regras de Mandela), as Regras de Bangkok, a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes e a Convenção de Belém do Pará. Mas não é de hoje que a questão da revista vexatória é colocada em foco pelo Poder Judiciário. Muitos fecharam os olhos para essa violência, que ocorre desde sempre. Mas nem todos se mantêm omissos. A título de exemplo, no âmbito correcional, temos o oficio da juíza corregedora da Vara de Execuções Criminais de Sergipe, de 9/8/1999, que relatou o que chegou ao seu conhecimento e ordenou: "Fica terminantemente proibida a exposição de corpos femininos nus, em macas, exames de toque na genitália feminina ou coisas correlatas". No âmbito jurisdicional, temos inúmeras decisões que reconhecem a transgressão à normativa constitucional e legal e consideram a prova como ilícita. Nesse sentido, a título de exemplo, na Apelação nº 1500264-28.2016.8.26.0536/TJSP, de 2018, da qual fui relatora, foi decidido que em razão da revista vexatória houve violação da normativa estabelecida pelo Brasil, e nessa medida a prova é ilícita, no ato originariamente realizado e seus subsequentes e, nesta medida, se impôs a absolvição. A construção dos direitos humanos é dolorosamente lenta. Faz longos anos que organizações sociais denunciam e cobram mudanças. Indicam a necessidade de usar a tecnologia para detectar metais e drogas, no controle de entrada das penitenciárias, fazendo o uso de expedientes eletrônicos, com raquetes, scanners e portais, e que a revista pessoal seja feita nos presos, após as visitas, e não nos visitantes. Vieram à lembrança os diálogos travados pela rede Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas, dos quais participei. Em outubro de 2003, no o II Encontro "A mulher no sistema carcerário", indicou-se o uso de meios mecânicos para realização da revista, em cumprimento da Resolução 1 de 21/3/2000 do CNPCP, ainda que prevendo a revista. Era um primeiro passo de regulamentação, que foi superiormente aprimorada com a resolução nº 5, de 28/08/2014, do mesmo conselho. Também foram encaminhadas, pela Pastoral Carcerária da CNBB, em data já distante, informações ao Ministério Público-SP sobre revistas vexatórias procedidas em crianças. Várias organizações — Cejil e a rede Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas — realizaram audiência temática e apresentaram relatório sobre encarceramento de mulheres, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), com denúncia sobre essa prática recorrente em todo o país. Porém, não temos uma norma nacional ainda. Há o projeto de lei aprovado no Senado Federal (PLS 480/2013) que proíbe a revista vexatória, e que agora tramita na Câmara dos Deputados. Na sua justificação há referência ao relatório acima mencionado. No 156º Período Ordinário de Sessões da CIDH, em 2015, foi realizada a audiência regional "Direitos Humanos e revistas corporais de visitantes de pessoas privadas de liberdade nas Américas", mencionada no acórdão acima. No relatório apresentado constou: "O caráter intrusivo alude ao fato de que a revista dos visitantes impõe-se diretamente sobre seus corpos ao exigir o pleno desnudamento e a inspeção de partes íntimas, sem qualquer respeito à privacidade. Além disso, a revista vexatória é um recurso rotineiro, empregado indistintamente e a despeito da existência de fato anterior que justifique seu cabimento ao caso concreto". Já não há dúvida, que para além de abusiva, a prática não é capaz de garantir a segurança dos presídios. No voto do ministro Fachin há menção a dados da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, de 2012. Foram 3.407.926 visitas e 493 apreensões, que podem ser detectadas por modos não indignos. Informativo da Rede Justiça Criminal, de julho de 2015, apresenta dados de algumas penitenciárias de São Paulo. De um universo de cerca de 276 mil visitantes, nenhuma arma foi apreendida, foram 45 casos de drogas e 43 de celulares (eventualmente com a mesma pessoa). Mais lembranças. Como procuradora do Estado de São Paulo, em 1988, vi o processo administrativo de um funcionário de uma penitenciária acusado de fazer ingressar cerca de oito quilos de maconha dentro de um botijão de gás. É uma hipocrisia afirmar que as drogas ingressam no sistema através das visitas. É certo que a legislação interna apresenta algum aprimoramento. Temos a Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, que determinou que os estabelecimentos penitenciários devem ter aparelho detector de metais. Em vários Estados há vedação expressa para a prática da revista vexatória e regulamentação, seja pela atuação do Legislativo, com edições de leis estaduais (Rio e São Paulo) ou por decreto legislativo (Maranhão) ou, ainda, com edição de portarias, na órbita do executivo (Amazonas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Mato Grosso, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Sergipe, Tocantins e Rondônia), mas tudo ainda é insuficiente. É preciso que todos nós façamos um exercício de alteridade, colocando-nos no lugar dos visitantes. É preciso lembrar que os corpos violados são de mulheres, mães, idosas e crianças. É necessário imaginar a violência sexual contra essas mulheres quando uma revista vexatória é realizada por agentes de Estado. É preciso lembrar que o corpo humano é o solo sagrado de cada ser. Foi um longo período até chegarmos a esse julgamento. Neste momento, cabe ao Supremo Tribunal Federal atuar de modo a tirar os princípios e fundamentos constitucionais do papel e fazer deles realidade, superando a profunda negação de direitos que se faz presente para as mulheres que permanecem nas filas dos presídios brasileiros. Que o ritual abjeto não seja referendado pelo STF, sob pena de o Judiciário lançar sua assinatura na cultura que diz que tudo é permitido ao corpo de mulheres e que não há limites, nem para o Estado.  Kenarik Boujikian* é desembargadora aposentada do TJ-SP e especialista em Direitos Humanos.  Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 11 de novembro de 2020.  

Mulheres que enfrentaram o machismo*

O Blog pediu a um grupo de leitores a indicação de magistradas, advogadas, procuradoras, promotoras e defensoras públicas que tiveram papel marcante ao enfrentar o machismo no Judiciário. A proposta teve origem no episódio em que Mariana Ferrer, vítima de estupro, foi humilhada por um advogado numa audiência em Santa Catarina diante de um juiz e um procurador aparentemente omissos. O resultado foi a formação de uma lista de 50 nomes. São mulheres que alcançaram postos de comando, ou sofreram e testemunharam discriminações de gênero. A seleção inclui autoras de obras sobre violência contra a mulher e jovens profissionais que podem relatar o que está mudando nessas instituições. [veja a relação no final deste post] O machismo é definido como o comportamento que tende a negar à mulher a extensão de prerrogativas ou direitos do homem. É um fenômeno que afeta as mulheres em qualquer atividade. É mais grave no Judiciário pelo poder conferido a seus membros. “A audiência de Santa Catarina mostra o Judiciário e o sistema de Justiça cruel com as mulheres”, escreveu nas redes sociais a desembargadora aposentada Kenarik Boujikian, do TJ-SP. “Nada do que vimos nesta audiência lembra o papel do Judiciário na perspectiva da construção de um país que tenha a dignidade humana como fundamento”, disse. Em 2010, Kenarik condenou a 278 anos de prisão o ex-médico Roger Abdelmassih, acusado de estuprar em sua clínica de reprodução 56 mulheres que sonhavam com a maternidade. [A pena foi reduzida depois para 181 anos de prisão, por 48 estupros de 37 de suas pacientes]. Elas sofreram ao ser violentadas, ficaram expostas quando denunciaram os crimes e frustradas ao verem o “serial rapist” fugir da Justiça depois da condenação. O ministro do STF Gilmar Mendes concedeu liminar para o ex-médico recorrer em liberdade. O advogado Márcio Thomaz Bastos sustentara, entre outras alegações, que o fato de 56 crimes sexuais terem sido narrados como estupro “incendiou a opinião pública”. “O mundo penal ainda é dos homens”, Kenarik definiu em 2016. A frase ainda é atual. Em várias ocasiões, ela sustentou ter sido alvo de machismo no tribunal paulista. Em agosto de 2017, o Conselho Nacional de Justiça anulou, por 10 votos a 1, a pena de censura que o Órgão Especial do TJ-SP aplicara a Kenarik, acusada de ter violado o princípio da colegialidade e libertado réus que estavam presos por mais tempo do que a pena fixada. A polêmica sobre as discriminações no Judiciário ganhou maior evidência com a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2004. Em 2005, um estudo de duas ONGs concluiu que a participação da mulher na Justiça é tanto menor quanto maior é a instância julgadora. Na primeira sessão como presidente do Supremo Tribunal Federal, em setembro de 2016, a ministra Cármen Lúcia declarou: “Há sim discriminação contra a mulher, mesmo em casos nossos de juízas, que conseguimos chegar à posição de igualdade”. Em junho de 2017, o TJ-SP decidiu criar o “Comitê de Gênero”, com o objetivo de “propor e fomentar ações institucionais de sensibilização e capacitação de magistrados acerca da temática de gênero”. Entrevistas secretas É possível que algumas mulheres tenham desistido de ser magistradas, mesmo ultrapassando a fase inicial dos exames no TJ-SP, o maior tribunal estadual do país. Em 2007, o juiz Marcelo Semer, de São Paulo, tratou neste espaço das entrevistas secretas nos concursos de ingresso à magistratura. “Costumeiramente, questões constrangedoras são abordadas, desde sutis indagações acerca da sexualidade de candidatos, até temas que possibilitem o controle ideológico dos pretendentes às vagas de juiz”, afirmou Semer. Entre as perguntas feitas por desembargadores foi mencionada a seguinte: “Mas a senhora está grávida. Não acha que já começaria a carreira como um estorvo para o Poder Judiciário”? Não faz muito tempo, a desembargadora Maria Lúcia Pizzotti, que denunciou contratos suspeitos no Tribunal de Justiça de São Paulo, foi tratada como um estorvo para o Judiciário. Ela teve a palavra cerceada no Órgão Especial da corte. Quando questionou valores do orçamento, foi interrompida várias vezes. Rindo, desembargadores simulavam confundir o nome da colega com o da ministra Cármen Lúcia, então presidente do STF. Maria Lúcia diz que sua carreira foi marcada por discriminações. Quando tomou posse como juíza, em 1988, um corregedor-geral explicou por que era contra mulheres na magistratura: “Mulheres servem para cuidar da família, procriar e pilotar o fogão”. A juíza e escritora Andréa Pachá, do TJ do Rio de Janeiro, diz que “o machismo, quando falamos de um espaço de poder, é mais sutil e só é percebido por aqueles que têm vontade de enxergar. Daí porque a negação insistente não só de homens, mas também de mulheres, de que exista desigualdade na profissão”. Ainda Pachá: “Uma juíza firme e exigente ser adjetivada como mal-amada não é vista como vítima de machismo. As piadas sexistas são aceitas e desqualificadas como ofensas porque, afinal, brincadeiras não são manifestação de machismo”. Pachá diz que “a afirmação de que não há machismo na Justiça vem da mesma ideia de que uma mentira repetida muitas vezes vira verdade”. Em artigo publicado neste Blog, em novembro de 2015, a escritora afirmou: “Fundamental é que sejam expostas as entranhas da chaga que contamina a dignidade e silencia as muitas mulheres que chegam ao Judiciário e que não encontram as portas abertas para que a igualdade não seja apenas um texto formal e constitucional dos nossos direitos”. Em abril de 2018, a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), maior entidade de classe da magistratura, teve que tratar publicamente do machismo no Judiciário, tema que os tribunais evitam discutir. Um grupo de mais de 30 juízas, de vários estados, pediu desfiliação da entidade. Seguiram as juízas Geilza Diniz, Rejane Jungbluth Suxberg e Carla Patrícia Lopes, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), inconformadas com a ausência de magistradas entre os conferencistas do 23º Congresso Brasileiro de Magistrados. Dos 28 palestrantes do evento, havia apenas duas mulheres, e elas não eram magistradas: a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e a senadora Ana Amélia (PP-RS). A juíza-escritora Andréa Pachá também pediu para deixar a entidade. Ela foi vice-presidente da AMB e já assumiu interinamente a presidência da associação. “Vejo com profunda tristeza a falta de sensibilidade para a importância da pauta da igualdade”, disse Pachá. Território dos homens A arquitetura das instalações do Judiciário sugere que aqueles espaços foram originalmente destinados a machos. O primeiro banheiro feminino no Salão Branco do Supremo Tribunal Federal só foi construído na gestão da ministra Ellen Gracie, em 2000. É o que revelam os jornalistas Felipe Recondo e Luiz Weber, no livro “Os Onze – O STF, Seus Bastidores e Suas Crises”. “Ainda hoje, no intervalo das sessões, os ministros desprezam a indicação de gênero na porta e o utilizam também”, afirmam os autores. Ou seja, o machismo permanece naquele espaço que deveria ser privativo das mulheres. Essa discriminação não ocorria apenas no Judiciário. A advogada Taís Borja Gasparian lembra que a antiga sede da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) não tinha banheiro feminino no andar da sala do Conselho Diretor. “Eu tinha que pegar um elevador ou descer um lance de escada pra ir ao banheiro”, diz. Anos atrás, o TJ-SP também não tinha banheiro para mulheres no andar dos julgamentos. “Não é exatamente machismo mas é”, comenta a advogada. Em 2002, Taís Gasparian foi chefe de gabinete do então ministro da Justiça, Paulo de Tarso Ramos Ribeiro. Ela tinha que usar o banheiro do titular da Pasta. “Não ter banheiro feminino era de fato muito desagradável. Eu me sentia fora do ambiente. As mulheres se sentiam excluídas. O local não era para elas”, diz. A macheza também se manifesta nas sabatinas do Senado Federal, em meio a bajulações. Primeira mulher a presidir o STF, a ministra Ellen Gracie ouviu do senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR), durante a sabatina: “Como ginecologista, aprendi a lidar com as mulheres, a entender muito profundamente a sensibilidade feminina”. Sem levantar a voz, a presidente Ellen Gracie conduziu com serenidade o recebimento da denúncia do mensalão, enquanto os ministros mais exaltados trocavam insultos. Primeira mulher nomeada para o Superior Tribunal de Justiça, Eliana Calmon admitiu, quando foi sabatinada, que os senadores Edison Lobão, Jader Barbalho e Antonio Carlos Magalhães foram padrinhos de sua indicação. “Se não tivesse [esses padrinhos] não estaria aqui”, respondeu. Quando foi corregedora nacional de Justiça, Eliana Calmon sofreu forte campanha, instigada por magistrados paulistas, por dizer que havia “bandidos de toga” no Judiciário. Não foi ouvida quando disse que a corrupção atingia uma minoria inexpressiva da magistratura. Ela foi alvo de queixa-crime oferecida por três associações de magistrados sob a alegação de quebrar sigilos ao investigar patrimônio suspeito de 62 juízes. A PGR arquivou a representação. Apesar desse histórico, Eliana Calmon disse nunca ter sofrido discriminação no ambiente de trabalho pelo fato de ser mulher. “Essa restrição não vem só dos homens. Vem também das próprias mulheres, que deixam de se candidatar aos cargos de comando”, afirmou Eliana. Ana Lúcia Amaral, procuradora regional da República aposentada, vai além. “Ao longo da carreira, observei que muitas mulheres são mais machistas que homens. Afinal, machistas são criados por mulheres”, ironiza. “Penso que o machismo se mostra no número de mulheres nas carreiras jurídicas. Parece que a magistratura nos Estados continua mais fechada”, diz. Mulheres “poderosas” Ao lado das procuradoras Janice Ascari, Luíza Frischeisen e Isabel Groba, Ana Lúcia participou, em 2003, da Operação Anaconda, que desmantelou na Justiça Federal em São Paulo uma quadrilha que negociava decisões judiciais, envolvendo magistrados, advogados, policiais federais e até um subprocurador-geral da República. As procuradoras Maria Luísa Carvalho, Isabel e Janice atuaram no caso do Fórum Trabalhista de São Paulo, que levou à prisão do juiz Nicolau dos Santos Neto, do ex-senador Luiz Estevão de Oliveira e de dois empresários cúmplices. O escândalo do superfaturamento na construção da nova sede do TRT-SP veio à tona em 1998. Elas acompanharam o caso até a decisão em última instância, desmontando chicanas de advogados. “Alguém comentou que ‘acusação de juiz só com mulheres’”, diz Ana Lúcia. Na época da Operação Anaconda, o TRF-3 era presidido pela juíza federal Anna Maria Pimentel. A relatora do caso foi a juíza federal Therezinha Cazerta. As duas tiveram papel relevante na tramitação dos inquéritos e da ação penal. (*) Há manifestações de machismo nas sessões do STF e no CNJ. No julgamento de um habeas corpus em favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski interromperam e questionaram o voto da ministra Rosa Weber. “Jamais fariam isso com outro ministro”, comentou Maria Berenice Dias, a primeira juíza e desembargadora do TJ-RS. Ela é advogada especializada em direito homoafetivo. Em agosto de 2016, a então corregedora nacional de Justiça, Nancy Andrighi, encerrou o mandato sem que Lewandowski, então presidente do CNJ, tivesse levado a julgamento cerca de 40 processos que ela tinha deixado prontos para decisão do colegiado. Nancy Andrighi “abandonou o plenário sem se despedir nem receber a homenagem prevista”, informou o Painel da Folha. Há dúvidas se Lewandowski faria isso com um corregedor. Ministério Público desigual Em junho de 2018, o CNMP concluiu pesquisa que demonstrou a desigualdade de gênero e a baixa representatividade feminina nos postos de decisão do Ministério Público. “O Ministério Público brasileiro, no geral, é ainda uma instituição machista e desigual”, comentou no Facebook o procurador regional da República Welington Cabral Saraiva. Segundo a pesquisa, o MP é composto por 7.897 membros do sexo masculino e 5.114 do sexo feminino. Desde a Constituição de 1988, 52 mulheres e 240 homens haviam ocupado cargos de procurador-geral, o que representava cerca de 18% de lideranças femininas versus 82% de lideranças masculinas. O desequilíbrio é constatado no próprio CNMP: em onze anos de existência, 86 homens exerceram mandatos no conselho, contra 11 mandatos de mulheres. Nesse período, só uma mulher chefiou a Corregedoria Nacional do Ministério Público. A procuradora de Justiça Valderez Abbud, do MP-SP, atuou no tribunal do júri de São Paulo no julgamento de três crimes graves cometidos por um juiz e dois membros do MP contra as vidas de suas mulheres: os promotores Igor Ferreira da Silva e João Luiz Portolan Minnicelli Trochmann e o juiz Marco Antonio Tavares. Igor foi defendido por Márcio Thomaz Bastos no primeiro caso de homicídio julgado pelo Órgão Especial do TJ-SP. Acusado pela morte de Patrícia Aggio Longo e por aborto, foi condenado, por 25 votos a zero, a 16 anos e 8 meses de prisão. Da Procuradoria do Estado de São Paulo foi indicado para a lista o nome da procuradora Flávia Piovesan, ex-secretária-especial de Direitos Humanos [governo Michel Temer]. Sobre a questão do machismo, em 2016 Flávia Piovesan afirmou que o Brasil tem legislação adequada, mas carrega uma cultura atrasada, pautada no sexismo, que leva à “perversidade de fazer da vítima a culpada”. A atuação do Ministério Público nos estados varia de acordo com o grau de independência em relação ao Executivo estadual. Para uma melhor compreensão do que ocorre hoje no Ministério Público (federal e estadual), a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen sugere conhecer a experiência dos jovens procuradores e promotores. Ela recomenda ouvir as promotoras que trabalham com violência doméstica. Elas podem revelar pontos de machismo no sistema de justiça. E avaliar em que medida a Lei Maria da Penha criou um ambiente propício para o combate ao machismo. “As percepções, desafios e atitudes diferem”, diz Frischeisen. Eis alguns nomes sugeridos pela subprocuradora-geral: Nathalia Mariel, Hayssa Medeiros e Julia Rossi (PR-AM). Valéria Scarance (MP-SP) e Jaceguara Dantas da Silva (MP-MS), e Mônica Nicida (PGR). Os leitores fizeram especial homenagem in memoriam a três mulheres: Esther de Figueiredo Ferraz – Ministra da Educação no governo João Figueiredo, foi a primeira mulher a ocupar a Pasta. Enfrentou as resistências por pertencer a um governo da ditadura, mas contou com apoio de vários grupos feministas. Na década de 40, ingressou no ensino superior, rompendo os preconceitos que condenavam as mulheres nas universidades. Foi a primeira reitora da Universidade Mackenzie. Exerceu a advocacia criminal e de família. Em 1951, participou da elaboração de um plano de combate à prostituição e ao lenocínio. Integrou comissão que criou institutos penais agrícolas no estado de São Paulo. Ada Pellegrini Grinover – Nascida na Itália, foi uma das maiores juristas e processualistas do país. Defendeu a primeira tese oficial de doutorado na Faculdade de Direito da USP. Foi procuradora do Estado de São Paulo. Participou da elaboração do Código Civil, da reforma do Código de Processo Penal e do Código de Defesa do Consumidor. Foi coautora da Lei de Interceptações Telefônicas, da Lei de Ação Civil Pública e da Lei do Mandado de Segurança. Alexandra Lebelson Szafir – Bacharel em Direito pela USP, era sócia do escritório Toron, Torihara e Szafir Advogados e membro do IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Atuou voluntariamente para o IDDD e o Instituto Pro Bono em causas voltadas ao terceiro setor. Um parecer jurídico de sua autoria evitou a transferência de internos da Febem para uma unidade prisional de adultos. Morreu em 2016, aos 50 anos. Lutava contra a esclerose lateral amiotrófica (ELA) diagnosticada em 2005. (*) Com acréscimo de informações em 11/11. * Mulheres que enfrentaram o machismo Ada Pallegrini Grinover – in memoriam (professora e jurista) Alexandra Lebelson Szafir – in memoriam (advogada) Ana Lúcia Amaral (procuradora regional da República aposentada) Andréa Pachá (juíza do TJ-RJ) Angélica de Almeida (desembargadora TJ-SP) Beatriz Stella Azevedo Affonso (advogada) Carla Patrícia Lopes (juíza do TJDFT) Cármen Lúcia (ministra do STF) Claudia Aoun Tannuri (defensora pública) Consuelo Yoshida (juíza federal do TRF-3) Eliana Calmon (advogada, ministra aposentada do STJ) Ellen Gracie (advogada, ministra aposentada do STF) Esther Figueiredo Ferraz – in memoriam (advogada, ex-ministra da Educação) Eunice Prudente (advogada, professora) Flávia Piovesan – (procuradora do Estado) Geilza Diniz (juíza de direito do TJDFT) Hayssa Medeiros (procuradora da República) Isabel Groba Vieira (procuradora da República) Ivana Farina (conselheira do CNJ, procuradora de Justiça MP-GO) Ivete Ferreira (advogada e primeira diretora da Faculdade de Direito da USP) Jaceguara Dantas da Silva (promotora de Justiça, MP-MS) Janice Ascari (procuradora regional da República) Julia Rossi de Carvalho Sponchiado (procuradora da República no AM) Kenarik Boujikian (desembargadora aposentada do TJ-SP) Laurita Vaz (ministra do STJ) Ligia Bisogni (desembargadora do TJ-SP) Liliana Buff de Souza e Silva (advogada, procuradora de Justiça aposentada) Luiza Cristina Fonseca Frischeisen (subprocuradora-geral da República) Luzia Galvão (primeira desembargadora do TJ-SP) Maria Apparecida de Toledo (diretora de cartório) Maria Berenice Dias (advogada, desembargadora aposentada do TJ-RS) Maria Lucia Pizzotti (desembargadora do TJ-SP) Maria Luísa Carvalho (procuradora regional da República) Maria Tereza Sadek (cientista política) Maria Thereza de Assis Moura (corregedora nacional de Justiça) Marisa dos Santos (juíza federal do TRF-3) Nair Lemos (primeira professora titular de direito da USP) Nancy Andrighi (ministra do STJ, ex-corregedora nacional de Justiça) Nathalia Mariel (procuradora da República) Raquel Dodge (ex-procuradora geral da República) Rejane Jungbluth Suxberg (juíza do TJDFT) Rosa Maria Andrade Nery (jurista, desembargadora aposentada) Rosa Maria Cardoso da Cunha (jurista) Rosana Chiavassa (advogada) Silvia Pimentel (professora da Faculdade de Direito da PUC-SP) Taís Borja Gasparian (advogada) Tatiane Moreira Lima (juíza do TJ-SP) Tereza Exner (procuradora de Justiça do MP-SP) Therezinha Cazerta (ex-presidente do TRF-3) Valéria Scarance (promotora de Justiça do MP-SP)  Artigo publicado originalmente no site Folha de São Paulo no dia 10 de novembro de 2020.  

O mito da ressocialização e a eterna luta por ela*

Faz um par de semanas, numa palestra online a uma faculdade de direito, uma acadêmica me perguntou se eu acreditava em ressocialização. Fui implacável na resposta. Afirmei, com todas as letras, que não, não acreditava. — Doutor, no final do ano eu vou estar no direito, já poderei ganhar a liberdade, mas nunca estudei, não aprendi um trabalho, não sei fazer nada, não sei como vou me sustentar na rua, não sei o que vai ser de mim! Eu estava na prisão para tratar de assuntos administrativos e não pretendia entrar nos pavilhões, mas no meio do caminho resolvi assim fazer, pois, alguém me sussurrara que seria importante minha presença. Após constatar os problemas que se repetiam e se agravavam, vi um rapaz que queria dizer algo, porém se calava. Pálido e magro, cabelo raspado no que devia ser “máquina número 2”, trajando puídas bermuda e camiseta amarelas, não devia ter mais de 20 anos. Ele perdeu o receio e respondeu. A resposta está acima, no início deste texto. Faz um par de semanas, numa palestra online a uma faculdade de direito, uma acadêmica me perguntou se eu acreditava em ressocialização. Fui implacável na resposta. Afirmei, com todas as letras, que não, não acreditava. Entre as funções da pena, no estado democrático de direito, está a oficialmente declarada prevenção. A sanção seria justificada para ressocializar e reeducar o “delinquente”, intimidar os que não teriam como se ressocializar e finalmente neutralizar os “incorrigíveis”. Na realidade concreta, porém, a pena abandonou — ou nunca teve — sua função ressocializadora, mantendo apenas as funções intimidadora e neutralizante, como projeto político de controle dos indesejáveis. Não se ressocializa quem nunca foi socializado, quem nunca teve oportunidades para crescer e viver como cidadão, sujeito de direitos e deveres, com inclusão social e econômica. O perfil dos presos no país, quase 900.000 homens e mulheres, para a metade das vagas, cujo racismo estrutural faz com que sejam em sua maioria negros e pobres — isso sempre precisa ser dito — é composto na quase integralidade por quem não concluiu o ensino fundamental ou médio. Muitos não desenvolveram habilidades para o trabalho e chegaram à maioridade, desprovidos da presença das instituições. Essas pessoas, ao longo de suas histórias, acabaram empurradas para a margem, para a miséria, para a violência. Suas existências foram posicionadas num lugar de não ser, de inessencial, de objeto. Quando elas saíram da invisibilidade e se lançaram sobre os incluídos, então se confrontaram com o estado, um estado que se apresentou exclusivamente com seu braço penal, controlador, punitivo, que logo as trancafiou em calabouços e tatuou em suas testas o estigma eterno dos condenados. Na prisão, entre ordens e disciplinas, as normas que objetivam algum resgate humano e de dignidade são ignoradas. Não há oferta de educação, de cultura, de formação. Quanto ao trabalho, nas poucas ocasiões em que algum é propiciado, trata-se de um ofício que serve, para além de qualificar, especialmente para reproduzir exploração durante e depois do retorno à liberdade. Pode-se falar, portanto, em ressocialização no sistema penitenciário brasileiro? É certo que não! Entretanto, já escrevia o poeta: “Os homens, com o auxílio das convenções, têm resolvido tudo com facilidade e pelo lado mais fácil da facilidade; mas é claro que precisamos ater-nos ao difícil” (Rainer Maria Rilke). O difícil nisso tudo é que o mundo real não é uma palestra, uma tese acadêmica ou uma estatística. Quando eu vou à prisão, quando encontro os apenados, e deles ouço súplicas pelo cumprimento da lei e de ajuda da Justiça, não posso lhes dizer que o sistema é assim mesmo, uma máquina de moer gente, que minha luta é pela superação da cultura do encarceramento, por alternativas penais, num estado de bem-estar social, onde desde a primeira infância as oportunidades existam e a dignidade da pessoa seja inegociável, irrenunciável e respeitada. Quem está preso, sem um colchão para dormir ou um sabonete para tomar banho, sem um remédio para aplacar uma dor de dente, precisa de respostas e ações imediatas, não de um juiz que diz não acreditar na prisão ou na ressocialização e que deseja um mundo sem prisões. Por isso, exigir do estado que cumpra a lei de execução penal, que garanta um mínimo existencial para os encarcerados, reduzindo os danos do aprisionamento, é um dever inafastável ao juiz da execução penal. — Você é novo e sempre é tempo de aprender — disse ao jovem — A vida é difícil, ainda mais para quem é egresso da prisão, mas é possível sair desse ciclo. Vou pedir que a direção veja se há alguma vaga para você na penitenciária, lá tem salas de aula e tem trabalho. Não há lugar para todos, muitos aqui estão na mesma situação que você, mas isso não é desculpa, está na lei, é seu direito estudar e trabalhar. A ressocialização é um mito, mas como Sísifo, a quem, não é de hoje, sempre recorro, estou destinado a lutar por ela.  *João Marcos Buch, juiz de direito e membro da Associação Juízes para Democracia - AJD.  Artigo publicado originalmente no site Jornal GGN no dia 09 de novembro de 2020. 

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