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O Poder Judiciário e a análise de áreas de risco

A Lei Federal nº 12.983/14 trouxe relevantes alterações na Lei Federal nº 12.340/2010, a qual trata da prevenção de desastres em áreas de risco. Dentre as inovações há o importante dispositivo que restringe a remoção de moradores e edificações, a qual deve ser usada como último recurso, a ser implementado somente após a realização de vistoria e elaboração de laudo comprovando o risco da ocupação para a integridade física dos moradores ou de terceiros. No entanto, apesar de tal norma estar em vigor a mais de seis anos, sua aplicação tem sido bastante tímida. Em alguns casos, os próprios entes públicos, notadamente os Ministérios Públicos dos Estados e os municípios, costumam ajuizar ações pedindo a remoção pura e simples, isso quando a medida não é implementada pela via administrativa, muitas vezes sem qualquer procedimento com contraditório ou até mesmo aviso aos moradores. Em outros casos, mesmo quando na ação há pedido subsidiário, pertinente a medidas de redução de riscos, o Judiciário tem optado pelo remédio mais drástico da desocupação, atuando muitas vezes como um médico açodado, que amputa a perna do paciente ao mínimo sinal de infecção. Tais remoções acabam por gerar impactos sociais terríveis, com pessoas desalojadas que muitas vezes se veem na perversa situação de sair de uma área de risco para outra, por vezes de nível de risco ainda mais elevado, gerando um fluxo migratório que precariza ainda mais a condição de vulnerabilidade das famílias afetadas, impondo gastos e danos psíquicos a quem já não tem nada ou quase nada. Em 2019, por iniciativa do Lab-Cidade da Faculdade de Habitação e Urbanismo da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Habitação e Urbanismo da Universidade Federal do ABC, foi realizada uma reunião junto à Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado de São Paulo, que aliás tem mostrado uma postura sensível e arrojada no âmbito de sua atribuição, da qual também participaram alguns magistrados do Fórum da Fazenda Pública. Em tal evento, os representantes das entidades acadêmicas externaram toda essa problemática, notadamente quanto ao modo precipitado como as remoções vinham ocorrendo, notadamente no âmbito da Grande São Paulo e da ausência ou insuficiência de respaldo social no pós-remoção. Na sequência a questão foi colocada no âmbito da Cajufa — Centro de Apoio aos Juízes da Fazenda Pública —, tendo então sido determinada a constituição de comissão de peritos para a feitura de documento com diretrizes de análise de áreas de risco, que pudesse servir de guia na atividade jurisdicional. Apesar do estudo ser centrado em aspectos técnicos de engenharia e geologia, ele não perde a dimensão social e a base normativa, notadamente quanto às medidas alternativas de mitigação de risco, as quais, mais que nunca, em vista da crise econômica e sanitária da Covid-19, se mostram prementes. Mais que fornecer parâmetros básicos para as deliberações jurisdicionais, o estudo também abre a oportunidade para dar luz a um gravíssimo problema, mas que é de pouca visibilidade no âmbito da administração pública e do sistema de Justiça. Afinal, os gestores públicos, notadamente no âmbito das administrações municipais, seja para evitar o ônus político, seja para evitar a responsabilidade da Administração Pública, são estruturalmente estimulados para evitar tragédias nas áreas de risco, mas, inversamente, a mesma preocupação não costuma ocorrer para com a outra tragédia decorrente da remoção, ou seja, a tragédia daqueles que ficam sem moradia. Talvez a opção da simples troca de uma tragédia pela outra decorra da pulverização do nexo causal entre os danos pós-remoção e a omissão do poder público, o qual raramente é responsabilizado em tais casos. Em outras palavras, muitas vezes a tônica é de que a pessoa não pode morrer num deslizamento, mas não há problema caso ela morra na rua, seja de fome, frio, violência urbana ou Covid-19. Ainda nesse ponto, cumpre destacar que, não raro, a questão das ocupações em áreas de risco é posta de modo preconceituoso e discriminatório, estigmatizando moradores que detêm justo título ou que simplesmente passaram a exercer seu direito constitucional de moradia em locais destituídos de função social. Outro aspecto do problema concerne à questão processual. As ações não devem ser tratadas como simples "ações de desocupação", mas sim como ações de "manejo em áreas de risco", ampliando o objeto da simples remoção, para incluir outras medidas, notadamente a da mitigação dos riscos, a qual deve ser tida como preferencial. Além disso, o processo de "manejo em áreas de risco" não pode ser tratado como uma simples ação contenciosa. O risco é dinâmico e assim pode mudar dia a dia, o que determina, com o recebimento da inicial, a designação de perícia preliminar com máxima urgência, a qual deverá ser atualizada constantemente ao longo do processo, até a fase de instrução, de modo a possibilitar medidas pontuais. Não é possível imaginar, em tais casos, que se permita um fluxo normal processual, com sentença, recurso/reexame necessário, para, após meses ou anos, haver uma sentença transitada em julgado. Tais casos devem ser tratados dentro do espírito de jurisdição voluntária, em que há convergência de interesses, buscando soluções rápidas e consensuais. Trata-se de um processo artesanal, ao qual o Judiciário deve destinar cuidadosa e terna atenção, não podendo ser tratado na base do "modelão", do tipo linha de montagem. Cabem aos peritos o balizamento técnico, de engenharia e geológico, no entanto, incumbe ao Juízo proceder à amarração transdisciplinar, não perdendo a dimensão humana e social, com responsabilidade e sensibilidade. É muito triste pensar que pessoas morem em barracos, sendo mais triste ainda imaginar que muitos desses barracos foram construídos em áreas de risco. No entanto, é dever máximo do Judiciário lembrar que, muitas vezes, onde de fora se vê um barraco, para quem lá mora se trata de um lar, como a saudosa maloca de Adoniran.  *Antonio Augusto Galvão de França, é juiz de Direito e coordenador do Centro de Apoio aos Juízes do Fórum da Fazenda Pública (Cajufa).  Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico - Conjur no dia 28 de setembro de 2020. 

Além do direito trabalhista: A constitucionalidade em disputa

“Quem quer marchar para o socialismo por um caminho que não seja o da democracia política chegará inevitavelmente a conclusões absurdas e reacionárias, tanto do ponto de vista econômico quanto político.” (Lenin)[1]. A supressão de direitos e a ameaça que paira sob as democracias aguçam as perplexidades contemporâneas. O sistema econômico, calcado na ideologia da nova ordem mundial, com a fleuma da modernidade, manobra para fazer o trabalho retornar à condição de não direito. A precarização no mundo é mais grave ainda em países periféricos, condenados a servir de baias de mão de obra barata. Os freios trazidos pelo século XX, impostos pela Guerra Fria ante a intimidação da proposta socialista de um mundo coletivizado, extraíram do capitalismo uma sofisticada e importante arquitetura jurídica que o neoliberalismo hegemônico no século XXI quer afastar. A morfologia de retrocesso e o abandono do welfare state desfazem avanços civilizatórios e tratam como obstáculo a constitucionalidade moderna. De 2003 a 2016, o Brasil recusou essa prescrição, adotando ações fundamentais e conjugadas de combate à desigualdade. Fortaleceu o setor público da economia, enfrentou os desequilíbrios regionais, investiu em pesquisa e afirmou os elementos de uma política externa soberana, conquistando o respeito das nações do nosso entorno Sul Americano e do Terceiro Mundo em geral. Contudo, após quase 30 anos de vigência da Constituição, entre os quais 12 anos foram de governos progressistas, que marcaram a saída do país do mapa da fome, não foi possível conter o golpe[2] protagonizado pelo Poder Judiciário, que afastou Dilma Rousseff (PT) da presidência e Luís Inácio Lula da Silva (PT) das eleições de 2018. A artimanha foi admitida[3] por um dos mais expressivos representantes da direita brasileira, Aloísio Nunes Ferreira. Segundo o ministro das Relações Exteriores do governo de Michel Temer, “houve manipulação política dos procuradores da Lava Jato e do então Juiz Sergio Moro”[4]. E que agiam “imbuídos de um projeto político, que vai além do processo judicial”.  O ano de 2020 tem revelado as implicações internacionais da trama, com a presença do FBI[5], urdida a pretexto de investigar casos de corrupção na América Latina, obtendo dados de empresas brasileiras, tais como Odebrecht e Petrobras – notórias geradoras de empregos e concorrentes, no mercado internacional, das similares estadunidenses. A nefasta conjuntura brasileira tem flertado com o fascismo na era Bolsonaro e as ameaças de novo golpe sobre as instituições são realidade no Direito do Trabalho. Dilma Rousseff foi deposta da Presidência da República em 31 de agosto de 2016 e já no dia 23 de dezembro do mesmo ano, foi apresentado, ao Congresso Nacional, o Projeto de Lei (PL) nº 6.787/16, seguido da proposta de reformulação na Lei do Trabalho Temporário, para alterar sete artigos da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). A tramitação do PL durou dois meses e três dias (de 09/02 até 12/04 de 2017). As nove páginas iniciais, recheadas de desejos empresariais, atingiram 132 páginas. A alteração incidiu sobre mais de duzentos dispositivos da CLT, com a aprovação por 296 votos contra 177, na Câmara dos Deputados, e 50 a 26, no Senado. A sanção veio em julho de 2017 pelo vice, e substituto de Dilma, Michel Temer, cuja marca é o maior índice de reprovação na história dos Presidentes da República. Assim nasceu a Reforma Trabalhista (lei nº 13.467/17), ponto de consenso entre conservadores e neoliberais, vigente a partir de 11 de novembro de 2017, com trâmite de estranha velocidade a revelar a ausência da participação dos maiores interessados: os trabalhadores. Rito apressado e violador da Convenção 154 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, que exige a consulta prévia às organizações sindicais. A lei justificada pela pretensa capacidade de gerar empregos, na verdade, reflete a desregulação, o retorno à premissa ultrapassada da “liberdade negocial do empregado”, sem a proteção do Estado, e o bloqueio ao acesso à justiça, negadas a gratuidade e a participação sindical, mesmo na hipótese de renúncia. A crise sanitária mundial da Covid-19 desnudou os efeitos caóticos dessa desregulação trabalhista que, por si, já era responsável pela vulnerabilidade das relações laborais. O “empreendedor”, sem a rede estatal de proteção, como “gestor” da sua atividade, perdeu as condições do isolamento, essenciais para a contenção do vírus. A desigualdade social – flagrada no trato do neoliberalismo com os trabalhadores – faz da junção: modelo econômico/pandemia uma tragédia humanitária. Assim, na data em que escrevo este texto, o Brasil conta, infelizmente, 130 mil mortos. Na prática, a informalidade expressa em contratos atípicos precarizou as condições de trabalho. E sob o prisma da doutrina, retirou a especificidade da Disciplina, Direito do Trabalho, ao ignorar o seu objeto de estudo: a relação de emprego. Magda Biavaschi[6], citando Krotoschin, evoca a frase inscrita na Constituição da OIT: “o Trabalho não é mercadoria” – diretriz definitiva para traçar a autonomia do  Direito do Trabalho em face do Direito Civil. O Brasil, na mesma linha, consagra o Direito do Trabalho na sua especificidade ao incluí-lo na condição de direito social, nos termos do Capítulo II, art. 6º da Constituição, e acrescenta, no Caput do art. 7º, a vedação do retrocesso social, confirmando as orientações do Pacto São José da Costa Rica de 1969 (cuja ratificação formal da Convenção, pelo país, ocorreu em 1992). A nossa Carta faz mais: atesta a ordem econômica fundada na valorização do trabalho, art. 170; e declara a ordem social com base no primado do Trabalho, art. 193. A Reforma Trabalhista, de inspiração antirrepublicana, violou as regras constitucionais – normas de ordem pública que o Estado deve velar e proteger –, desprezando o arcabouço jurídico de inserção social, presente no Direito do Trabalho. O panorama acima indica a necessidade da preservação dos Princípios Constitucionais (art. 1.º), que não podem sofrer alterações aleatórias. O valor social do trabalho ocupa o mesmo patamar dos demais fundamentos da Magna Carta: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, livre iniciativa e pluralismo político. Portanto, não há violação aos princípios fundamentais que não arraste consigo a democracia e os pilares do Projeto de Nação. Exigir o respeito aos limites constitucionais é, apenas, o mínimo do que se deseja no enfrentamento ao neoliberalismo, sob o risco de o “Estado pós-democrático de direito”[7], percebido nas violações aos pactos sociais, ganhar vida longa. O cumprimento do regramento jurídico é fundamental e, não à toa, “Uma defesa das regras do jogo” consta do subtítulo do livro de Norberto Bobbio: “O futuro da democracia”[8]. Tal proposta implica a acomodação no Estado Liberal? Em absoluto. A adoção dos limites legais tem o propósito de garantir a efetividade das autonomias judicial e legislativa, que têm sido utilizadas como um “cheque em branco”, dos quais são exemplos: a criminalização da política e o oportunismo das maiorias transitórias do legislativo, haja vista o desmonte da CLT. O Supremo Tribunal Federal tem retardado julgamentos essenciais e, com tibieza, tecido elásticas interpretações das normas constitucionais. A conduta gera dúvida acerca do controle de constitucionalidade que queremos, tamanhos os riscos às harmonias e independência dos poderes, cuja autonomia encontra legitimação quando fundamentada na legalidade, observados os limites constitucionais. Ao término desse texto, a tecla repetida em favor dos valores republicanos deixa a sensação de que venho perdendo para a originalidade. Acredito merecer um desconto, dada a importância do que defendo, quando até o próprio Marx elogiou os avanços da formação social capitalista em relação ao atraso feudal que a antecedeu. Autoriza-me a defesa de institutos da democracia liberal em face do fascismo ideado por Bolsonaro?  *Raquel Rodrigues Braga é Juíza do Trabalho, TRT/RJ, aposentada, com MBA em Poder Judiciário pela FGV e Especialista Crítica em Direitos Humanos pela Universidade Pablo de Olavide Sevilha-ES, integrante da AJD e ABJD.  Artigo publicado originalmente no site   Justificando no dia 17 de setembro de 2020. 

Marx, a mais-valia e o mito da subordinação 4710

Os juristas têm se esforçado em demonstrar tecnicamente a ocorrência da relação de emprego entre trabalhadores e empresas proprietárias de plataformas de serviços (como Uber, iFood etc.).  Esse esforço de hermenêutica jurídica é elogiável, mas algo mais além desse modelo deve ser objeto de reflexão: a de categorias como mercadoria, trabalho assalariado e mais-valia em Karl Marx, e a revisão crítica do conceito de relação de emprego, forjado desde tempos imemoriais para definir o trabalho protegido pelo sistema jurídico.  Meios de produção digitais e plataformas digitais Na velha e boa língua de Camões, o termo plataforma sugere uma área plana, elevada em relação ao nível do solo. No tempo de Machado, designava o espaço erguido ao lado da linha férrea, nas ferroviárias e estações de metrô, destinadas ao embarque e desembarque de passageiros e mercadorias. No discurso contemporâneo, as plataformas tornaram-se ambientes informacionais com características semelhantes. São estruturas de interface de mercadorias e pessoas que, ademais de interação algorítmica, também se constituem como parte integrante dos meios de produção de mercadorias, com predominância para aquelas que se corporificam enquanto serviços. Essas infraestruturas digitais “moldam interações personalizadas entre usuários finais e complementadores, organizadas por meio de coleta sistemática, processamento algorítmico, monetização e circulação de dados” (na definição de Thomas Poell, David B Nieborg e José Van Dijck, em Plataformização). Contrato de emprego e subordinação Dizer que a subordinação é elemento da relação de emprego é falsificação ideológica do real. Ela não é elemento da relação substantiva ou ontologicamente considerada e sim mera característica externa. Via de regra, a subordinação é muito evidente e adiposa, mas em diversos casos mostra-se rarefeita ou quase cognitivamente inapreensível.  Dizer que a subordinação é elemento da relação de emprego é o mesmo que imaginar que a água é em si mesma água por ser um líquido incolor, sem cheiro ou sabor (como aprendemos na escola, e nem isso parece correto, pois as propriedades da água podem fazê-la doce ou salgada, alcalina, ácida). Na realidade, evidentemente, a água é uma substância química cujas moléculas são constituídas por dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio (H2O). Esses são os elementos da água, substantiva ou ontologicamente considerada. O que você vê são suas características externas, não o que ela materialmente é. Com contrato de emprego ocorre algo semelhante. Você vê externamente certas características típicas (pessoalidade, trabalho não eventual, onerosidade e subordinação), mas isso não é a relação de emprego materialmente considerada. Nesse sentido, a subordinação como elemento da relação de trabalho a ser tutelada pelo sistema legal civilizatório é apenas um mito. Marx, mercadoria e mais-valia  Na economia capitalista, os bens “dotados” de valor são produzidos como mercadorias cujo atributo essencial é satisfazer necessidades humanas, “do estômago ou da fantasia”, como disse Marx (O Capital). Nesse sentido, a mercadoria tem um valor de uso. Mas ela incorpora também um valor de troca, no plano das relações jurídicas: um equivalente quantitativo abstrato, materializado na relação de câmbio. Na aparência fetichizada, esse valor de troca aparece como qualidade fantasmagórica da própria mercadoria, ocultando sua relação substantiva verdadeira, que consiste no tempo de trabalho médio socialmente necessário à sua produção. Noutras palavras: bens constituídos enquanto mercadorias têm valor de troca por “encarnarem” trabalho humano socialmente necessário à sua produção. Tal como a subordinação, fetichizada no direito do trabalho, a assombração parece ser real. O valor mostra-se como qualidade ínsita à mercadoria, mas isso é apenas uma miragem. Nas relações capitalistas de produção, o assalariamento do trabalho é o mecanismo pelo qual a mais-valia é extraída. A relação de emprego consubstancia-se enquanto contrato de compra e venda de força de trabalho. As relações jurídicas então fazem o truque ideológico destinado a ocultar a expropriação da força de trabalho: o trabalhador produz a mercadoria, mas fica com o salário, que representa apenas uma parte do valor-trabalho incorporado à mercadoria. Mais-valia e subordinação algorítmica O que deveria interessar ao direito do trabalho, enquanto sistema de “proteção” jurídica, que crava uma cunha civilizatória — e dialeticamente também domesticadora — nessa relação, é a apropriação da mais-valia, por diferentes paradigmas jurídicos, e não exatamente se ocupar sobre se é possível ou não identificar a subordinação, e menos ainda toma-la enquanto elemento constitutivo do contrato objeto da tutela legal. Nas plataformas de serviços, as mais comuns, há produção de mercadorias. O serviço de transporte de pessoas ou coisas, por exemplo, é a mercadoria produzida pelos trabalhadores. Curiosamente, nessas relações, parte dos meios de produção necessários à produção da mercadoria pertence ao próprio operário (o automóvel, a bicicleta ou a moto). Mas outra parte, essencial para ativar o processo de trabalho, pertence ao capitalista: a plataforma digital. Nela atuam também outros trabalhadores, desde sua arquitetura até a gestão, e ela em si mesma é trabalho morto, que é o trabalho acumulado e objetivado para o incremento do capital. No caso, aqui, corporificado nos meios de produção tecnológicos, abstratos e impalpáveis, que incorporam o conhecimento humano historicamente produzido desde a invenção roda até a construção da plataforma digital, passando naturalmente pela maquininha criada por Alan Turing e outros cientistas, o computador. Evidentemente, a subordinação está presente na relação jurídica entre o trabalhador e o capital, dono da plataforma. Já me esforcei muito para tentar compreender sistematicamente a subordinação (coloquei isso no Poder e sujeição, um livrinho de anos atrás). Nele procurei mostrar subordinação — na realidade, o poder do capital e a sujeição do trabalho — como um fenômeno dinâmico, envolvendo (a) fontes primárias ou endógenas e (b) fontes heteronômicas ou secundárias. Não tenho como voltar a tudo isso aqui. Apenas sublinharia a conclusão desses estudos, no sentido de que a subordinação em certas condições sequer pode ser percebida, conquanto esteja sempre presente como resultado da apropriação da capacidade de trabalho do operário. O importante, não obstante, não é se ela aparece e pode ser captada ou não pela reflexão do jurista, mas se a expropriação do trabalho ocorre efetivamente. Panoptismo digital e algoritmocracia Nas plataformas digitais, o resultado final do processo de trabalho é uma mercadoria que não pertence aos trabalhadores que a produzem. O capital, proprietário das plataformas, apropria-se dela e só uma parte desse produto “volta” para o seu produtor, sob a forma de trabalho assalariado. Nas plataformas digitais, sem embargo, ocorre um exercício de prestidigitação a mais: o assalariamento é ocultado sob a aparência do pagamento do preço da mercadoria pelo próprio consumidor, o trabalhador surge como cliente da plataforma digital e a subordinação é obliterada sob a algoritmocracia. Essa forma de gestão, o algoritmo, surge como um novo paradigma de controle do trabalho capaz de (a) rastrear a atuação e avaliar permanentemente a performance do trabalhador, aferindo instantaneamente o resultado do seu trabalho, (b) implementar decisões  automatizadas, inclusive acerca da punições ao prestador de serviços ou mesmo sua exclusão se ele não se “alinha” às políticas da plataforma ou não alcança escore de avaliação positiva  e (c) mostrar-se como um espectro dotado de ubiquidade, que ronda o trabalho onisciente e continuamente, sem que o trabalhador seja capaz de compreender, interferir e defender-se do acervo de normas algorítmicas (Mareike Möhlmann  e Lior Zalmanson, Hands on the wheel: Navigating algorithmic management and Uber drivers’ autonomy). A incitação ao trabalho é feita não apenas pelo direito penal privado das plataformas digitais, capaz de impor sanções sumárias e impiedosas, inclusive com a pena capital da desativação da conta, como também por sanções premiais para atingimento de objetivos, como o tempo semanal ou diário dedicado ao trabalho. O sistema de vigilância configura uma espécie de panoptismo algorítmico, capaz de deixar Jeremy Bentham de boca aberta.  Chegamos até aqui, enfim, para concluir ser a exploração na força de trabalho pelas plataformas digitais mera reprodução hightech, cuspida e escarrada, do velho contrato de emprego assalariado de 200 anos atrás. Nela não importa identificar a subordinação jurídica para concluir pela existência de vínculo de emprego entre os trabalhadores e plataformas digitais. O mesmo deve ocorrer com outros diferentes paradigmas de exploração e apropriação da força de trabalho, que já se desenham e devem surgir com mais frequência num futuro próximo. Neles, é cada vez mais previsível a obnubilação e a opacificação das características tradicionais que o direito do trabalho elegeu como elementos da relação de emprego. Uma maior abrangência do sistema de proteção do direito do trabalho exigirá das classes trabalhadoras fugir desses velhos conceitos. Não obstante, no trabalho por meio de plataformas digitais, a sujeição etérea e abstrata evidencia-se com eloquência pela algoritmocracia e pela chibata do capataz panóptico-digital. É talvez mais intensa do que a subordinação tradicional. Por outro lado, a resposta tradicional do direito do trabalho nesses tempos de retrocesso civilizatório, conquanto importante, levará, no caso das plataformas digitais, quando muito, a uma exploração da mais-valia limitada pelo sistema, que ainda será a exploração do homem pelo homem, este agora disfarçado de algoritmo. Essa proteção não é pouca coisa, mas talvez se possa pensar o problema na perspectiva de experiências de ruptura com o capitalismo e não de sua reprodução, como a do MST, e imaginar os coletivos de trabalhadores plataformizados tomando os meios de produção das suas mercadorias, mediante a constituição de suas próprias plataformas de solidariedade, quiçá, inicialmente, sob a forma de cooperativas insurgentes (como propõe Trevor Scholz, em Cooperativismo de plataforma, e vários outros estudos). Já há uma moçada pensando nesse pulo do gato até no Brasil, mas essa é outra história, e fica para um outro artigo.  * Reginaldo Melhado é membro da Associação Juízes para a Democracia. Doutor em Teoria Geral e Filosofia do Direito pela Universidade de Barcelona (com revalidação pela USP). Professor da UEL. Juiz titular da 6ª Vara do Trabalho de Londrina.   Artigo publicado originalmente no site  Justificando no dia 10 de setembro de 2020. 

Magistratura, racismo e ações ações afirmativas

Correção de distorções é um dever ético e cívico A rede Magazine Luiza anunciou no mês passado a abertura de inscrições para seu programa de trainees com a indicação de que, desta feita, só aceitaria candidatos negros. Algo de uma justiça óbvia para quem se dedica a conhecer os números e a história da negritude tupiniquim. Mas foi o quanto bastou para, nestes tempos estranhos de extremismos e intolerância, explodir a mais surrealista polêmica em todas as agências noticiosas do país. Sob as luzes da ribalta, uma vez mais, o debate sobre o racismo estrutural e as necessárias políticas públicas e corporativas de inclusão social. Não há qualquer dúvida razoável, sustentável em qualquer espaço (acadêmico, político ou judicial), quanto ao fato de que o Brasil é um dos países mais desiguais e injustos do planeta. Também é indene de dúvidas o fato de que, nos quase 200 anos de Brasil, tais iniquidades vitimaram especialmente a população negra e "parda" (com o perdão da expressão, há décadas consagrada nas estatísticas do IBGE). Basta lembrar que a escravidão no Brasil foi abolida em 1888, muito menos pela "indulgência" de uma princesa a que pessoalmente teria poucas condições de confrontar o establishment e muito mais por uma confluência de fatores bem menos românticos: as pressões diplomáticas da Inglaterra, os ruidosos movimentos abolicionistas e as crescentes reações da população oprimida. A abolição, porém, foi antes uma capitulação do que uma redenção. Foi necessária outra metade de século para que a legislação começasse a infletir, ao menos simbolicamente, o recorte cultural racista da sociedade brasileira: a Lei Afonso Arinos, de 1951, convolou o preconceito de raça em contravenção penal (ou seja, um "crime anão", na célebre fórmula de Nelson Hungria). Outro meio século se passou para que finalmente, em 1989, a Lei Alberto de Oliveira Lei Caó tipificasse o racismo como crime (lei nº 7.716, artigos 3º a 20). Cem anos depois da "abolição", negar o atendimento em uma loja ou impedir o acesso a transportes públicos por discriminação ou preconceito de raça passou a ser crime, punido com dois a cinco anos de prisão (artigos 5º e 12). Essa "presteza" legislativa sugere uma sociedade que repulsava o preconceito racial? Negar que os negros foram historicamente discriminados ou compará-los acriticamente a outros grupos não alijados estruturalmente é nada menos que uma bofetada no mundo da vida. A magistratura nacional bem sabe disso. Não por outra razão, em 2015, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) reservou 20% das vagas em concursos públicos para juízes a candidatos negros. Não por outro motivo, em 2017, o STF declarou constitucional a lei 12.990/2014, que reservou aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal. Não por outra causa, enfim, a magistratura do Trabalho aprovou, em plenária de 2004, tese segundo a qual "deve constituir luta da magistratura o combate a todas as formas de discriminação nas relações de trabalho, (...) discutindo e apoiando políticas públicas votadas para a (re)inserção desses trabalhadores ao mundo do trabalho", notadamente em favor de negros, mulheres e idosos. E criar um programa de trainees restrito a negros é praticar "racismo reverso" contra os brancos? Poderíamos responder a isto com outra pergunta: o quão comum terá sido, nos últimos cem anos, negar-se a um branco, por ser branco, o acesso a comércios ou transportes públicos? O racismo estrutural deita raízes nas profundezas da cultura escravista nacional. É um fenômeno social de aspersão coletiva, a que não se podem comparar atos pessoais e isolados de intolerância, ainda se existentes. E a correção histórica dessas distorções é um dever ético e cívico do poder público, das empresas e dos concidadãos. Mas sem sofismas, por favor. Não se abrem guarda-chuvas por segundos de orvalho.   Guilherme Feliciano* é Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté (SP), é professor da Faculdade de Direito da USP e ex-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) no biênio 2017-19 Germano Siqueira** Juiz titular da 3ª Vara do Trabalho de Fortaleza, é ex-presidente da Anamatra no biênio 2015-17

O dia em que a corrupção acabou

Naquele dia ensolarado de outubro, médico e paciente se encontraram para uma consulta de rotina. Após as reclamações habituais sobre o calor infernal, conversa agora obrigatória para esses dias estranhos de primavera, um novo e curioso diálogo se desenrola entre a dupla: Médico - Você sabia que a corrupção acabou no Brasil? Paciente – Naaõ!! É verdade? Médico – Sim. Você não soube? Paciente – Não. Conte-me tudo! M – Pois é. Acabou . P – Assim? M – Assim. P – Como você soube? M – O Presidente disse. Está nos jornais. P – Jura ???? M – Sim !!!! P- Nossa , que fantástico! Mas não há mais mesmo? M – O que ? P – A corrupção. M – Não. Pois já não lhe disse que o homem falou que acabou? P – É . Disse. Muito bom isso. M – Muito bom??? Isso é sensacional! Não foi para isso que vestimos verde e amarelo e enchemos as ruas em 2015? P – É que achei um pouco estranho. De um dia para o outro? Aconteceu alguma coisa? M – Não. Mas se ele disse que acabou é porque acabou, não é? Exatamente hoje, no dia 07/10/2020. Data histórica! P – E eu que nem sabia que essas coisas acabavam assim... Mas se você tá dizendo... M- Eu, não! O Presidente!!! P – Ahh... é. Igual à Covid, né? M - Como assim? P – A Covid não acabou? M – Não. P - Não ? Como não ?? Tá todo mundo se aglomerando nas praias, nos bares, nos parques, nos shoppings, nas festas... M – Realmente as pessoas estão fazendo isso. Mas não quer dizer que acabou. Eu sou médico, recebo pacientes infectados diariamente. E o número de mortos ainda é enorme. P - Ahhh. Que estranho.... Bom, mas então é só esperarmos o dia que o Presidente declarar que a pandemia acabou . E acho que ele deve marcar uma data logo, logo. E quando decretar, acabou! M – Meu caro, você está enganado. Uma pandemia não acaba assim, do dia pra noite. Não depende só da palavra do Presidente. Depende de muitas outras coisas: da ciência, das estatísticas, da infraestrutura, dos hospitais, etc. P - E com a corrupção é diferente? Visivelmente irritado, o médico rapidamente desconversa, entrega a receita e as prescrições para o paciente, alinhavando o fim da consulta. P – Obrigado, doutor. Quanto é a consulta? M - Com recibo é 500 reais. Sem recibo é 300 reais. P – Prefiro sem recibo. Mais barato, não é? M – Claro. Sem dúvida. Recuso-me a pagar Imposto de Renda para esse monte de corruptos que sempre estiveram nos governos. P – Mas a corrupção não tinha acabado hoje? M – É mesmo. E agora? P - Agora você poderá cobrar 300 reais com recibo. E assim você saberá que o dinheiro recolhido para o IR irá diretamente para a construção de escolas, hospitais e outros serviços importantes para a sociedade. M – Huuumm. Por enquanto vamos deixar do jeito que está, oK? Na próxima consulta a gente vê. P – Por quê? Você não disse que a corrupção acabou hoje? Se a corrupção acabou hoje não há mais como como você justificar a cobrança diferenciada. M – M...mmmas a consulta tinha sido agendada para o dia 05. P - Sim , mas o Sr. mesmo a desmarcou. Disse que tinha um compromisso urgente para o dia 05 M – Não. O pedido de adiamento foi seu. P - Não foi. Mas não importa. Hoje é dia 07 e não há mais corrupção. M – Quem disse ? P – O Sr. M – Eu, não. O Presidente. P – Isso. M - E o Sr. acreditou?????  * Juiza do Trabalho aposentada

333º subsolo: o fundo do poço*

“...então, diga, velho corvo mal-humorado, que da noite escura e sombria vaga, que nome levas, por estas bandas ou trevas? – disse o corvo: nunca mais.” (Edgar Allan Poe, O corvo, 1845)   Caro leitor, é possível imaginar a decepção de um estudante subalterno do Direito que, ao abrir a primeira página do periódico local, depara-se com a seguinte pérola:   Acabou, porra! (Jair Bolsonaro, 28.5.2020) Havia dois motivos, ao menos, para a frase chula de Sua Excelência. O primeiro, de ordem material, dizia respeito à investigação criminali contra o denominado “gabinete do ódio” – suposta organização criminosa veiculadora de “fake news” contra desafetos do presidente e de sua família. O segundo, de ordem formal, haja vista a discutível iniciativa da investigação ter partido do próprio STF o que, em tese, estaria em desconformidade com o princípio acusatório, cuja essência é a nítida separação entre a acusação e o julgador.  Ao observador atento, porém, aquele palavrão presidencial revelava uma anomalia do sistema judicial que, na verdade, é anterior (muito) ao citado inquérito das “fake news” do STF. Talvez remonte às eleições presidenciais de 2018, onde as “fake news” foram decisivas ii para o resultado final e claramente favorável ao ora ‘indignado’ presidente; ou ao próprio golpe de 2016, com a omissão do STF, legitimador do processo de impeachment sem a comprovação do cometimento de qualquer crime de responsabilidade pela então presidenta eleita; ou também às inumeráveis e discutíveis decisões da 13ª Vara Federal de Curitiba, onde atuava o “heroico” ex-juiz Sérgio Moro, entre outras perplexidades, quanto à competência territorial de diversas ações em tramitação; ou o uso excessivo do recurso administrativo da Correição Parcial, em Tribunais Superiores, para modificar decisões judiciais das instâncias ordinárias; ou a ainda mais excessiva instauração de pedidos de providência, pelo CNJ, para apurações das mais variadas manifestações de magistrados, nos mais variados meios, das mais variadas formas, como se estivéssemos, todos e a todo tempo, em verdadeiro universo controlado pelos olhos onipresentes de um ser superior e rancoroso. Chegaria o dia em que todo o conjunto de decisões discricionárias transformar-se-ia em precedente: ‘óbvio’ que não seria na forma prevista na legislação processual, após a uniformização da jurisprudência, em decorrência de reiteradas decisões no mesmo sentido iii e em consonância com o ordenamento jurídico, cuja Constituição Federal é o ápice, na ‘pureza kelseniana’. Seria na homologação de um acordo teratológico e, quis o destino, numa Vara do Trabalho da capital de um estado com o nome mais terrivelmente evangélico de todo o país: o Espírito Santo. O acordo, a despeito da evidente ilegalidade (aliás, a própria norma em abstrato iv teve a constitucionalidade questionada na ADI 5.766, em julgamento) da proposta, que deveria ser rechaçada de ofício pelo magistrado, atribuía ao devedor uma obrigação semelhante a uma das penas restritivas de direito v previstas no Código Penal. Mas havia uma perversidade ainda maior, pois a entidade a receber o serviço do devedor sequer era pública. Muitos já escreveram vivii sobre os absurdos e ilegalidades das consequências dessa “transação” civil. E a constatação mais ‘óbvia’ possível de ordem antropológica: nunca antes neste país, durante o período democrático iniciado em 1988, algum cidadão pagou sua dívida civil mediante qualquer instituto de trabalho forçado. O primeiro tinha de ser um trabalhador, sob a chancela da Justiça do Trabalho. Por que um trabalhador? O que se exuma de nossa formação social e jurídica, doravante? Faz quase duas décadas que a reforma do judiciário, por meio da Emenda Constitucional 45, de dezembro de 2004, entre outras mudanças significativas, criou o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que, entre outras funções, tem a competência (poder-dever) para, segundo o art. 103-B, § 4º, VI: Elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade de Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário. Isso provocou uma sensível modificação na gestão administrativa dos Tribunais, todavia, com acentuada preocupação quantitativa, sem o necessário acompanhamento de outros determinantes fundamentais para a justa composição da lide (F. Carnelutti). A eficiência, a celeridade, a segurança jurídica, a transparência, a independência judicial e tantos outros atributos da jurisdição são quimera se desacompanhadas do necessário e inafastável respeito aos direitos e garantias fundamentais, fundamentos, objetivos e princípios do Estado Democrático do Direito, quando da efetiva concretização da decisão judicial.viii Há evidente escassez de doutrinadores do direito constitucional e do direito do trabalho a influenciar a reflexão crítica sobre a norma jurídica, em sua aplicação pragmática. Não há direito ideologicamente neutro, porquanto resultado da ordem econômica violenta da sociedade capitalista (E. Pachukanis). Mas como e quando as motivações ideológicas da sentença e das decisões judiciais ultrapassaram todos os limites constitucionais, da legislação ordinária e do bom senso? Não tenho dúvidas de apontar que, a partir de manifestações sensacionalistas e pirotécnicas, muitas vezes influenciando direta e dolosamente o processo político-eleitoral, o Poder Judiciário distanciou-se de seu papel de garantidor da ordem jurídica vigente, a qual, notadamente no texto constitucional, possui profunda sensibilidade social e densidade política (Aristóteles). E o pior: a usurpação do papel político, provocada por candidatos a “heróis” mancomunados a parte expressiva dos meios de comunicação, foi permitida e até incentivada pelos “pares”, numa falaciosa e pretensiosa busca pela moralidade e probidade da coisa pública. No dia 25 de junho de 2020, dia da malfadada homologaçãoix, em que um trabalhador trocou a sua dignidade por um “prato de lentilhas”, chegamos ao último andar do subsolo da (in)Justiça. A discutível condenação no pagamento dos honorários advocatícios estava suspensa, circunstância que deveria permanecer inalterada duplamente: ou até o STF julgar, em definitivo, a ADI 5766; e/ou, ex-vi lege, se, nos dois anos seguintes à condenação, houvesse sensível mudança econômica do trabalhador, que possibilitasse o pagamento da dívida, sem lhe dificultar a sobrevivência. Não havia motivo algum para a teratológica transação, Senhor! É ‘óbvio’, assim, que não desceremos mais na escala da perversidade e da indiferença. Podemos e devemos melhorar. No fundo do poço, porém, ninguém enxerga nada, pois não há luz, somente trevas. i https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/28/acabou-porra-diz-bolsonaro-sobre-ordem-do-stf-para-operacao-policial-contra-aliados.ghtml ii https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/18/actualidad/1539847547_146583.html iii Arts. 926 a 928 do CPC. iv Art. 791-A, § 4º, da CLT. v Art. 43, IV – prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas. vi https://www.jorgesoutomaior.com/blog/a-escravidao-que-nos-habita vii https://osdivergentes.com.br/outras-palavras/relacoes-trabalhistas-logica-e-barbarie/ ix Reclamação Trabalhista de nº. 0001007-68.2018.5.17.0011, da 11ª Vara do Trabalho de Vitória/ES, em 25 de junho de 2020  *Juiz do Trabalho Substituto

Minority Report: a barbárie contra a razão chega ao Judiciário*

Fotografia: Sintect MG É surpreendente a decisão adotada na greve dos Correios de 2020, que concede uma espécie de “cheque em branco” para que o empregador dispense empregados pela mera participação em greve considerada não abusiva. No filme de ficção científica, “Minority Report – a nova lei”, 2002, do diretor Steven Spielberg, a trama gira em torno de um sistema que, no ano de 2054, permite que crimes sejam previstos e, assim, coibidos com a apreensão antecipada do agente. Em fevereiro de 2014, 40 anos antes do imaginado em ficção, foi necessário denunciar a forma arbitrária e completamente fora de qualquer parâmetro jurídico, com a qual foram criminalizadas as manifestações contra a realização da Copa do mundo no Brasil e, em especial, no Estado de São Paulo. De forma específica, no dia 22 de fevereiro de 2014, mais de mil pessoas realizavam, no centro da cidade de São Paulo, uma manifestação “pacífica e ordeira”, como requeria o figurino midiático. Conforme mencionado em texto publicado tratando do fato: “Como os manifestantes não cometeram qualquer tipo de ofensa patrimonial e não havendo argumentos para rechaçar as palavras de ordem expressas, o jeito foi conter a manifestação com violência, mesmo sem estopim para tanto. Os relatos de quem estava presente foi o de que os policiais, após horas de passeata, sem justificativa específica, fizeram um cerco e imobilizaram parte dos manifestantes, cerca de 260 pessoas, que ficaram, então, na rua, em cárcere privado, com sua liberdade subtraída, sem que tivessem cometido qualquer tipo de ilícito. Na ação três repórteres que filmavam a cena foram agredidos, não por coincidência, mas para que não houvesse registro. Além dos jornalistas, que estavam a trabalho, foram detidos dentre outros militantes organizados do movimento estudantil, diretores do DCE da Unicamp, militantes de partido (1o de Maio/PSOL) e um professor da USP (ciências moleculares). Mas, o pior ainda estava por vir, pois sob a desculpa da necessidade de identificar os potenciais baderneiros, “black blocs”, foi iniciada uma seleção de pessoas pela aparência e pela cor da pele, que resultou na libertação dos que eram brancos e aparentemente estudantes, mantendo-se aprisionados os que “pareciam” “black blocs”, quais sejam, os que estavam de roupa preta e os pretos e pobres, segundo o critério adotado…”1 Assim, sob a justificativa de evitar que delitos fossem cometidos, cidadãs e cidadãos, seletivamente escolhidos, foram criminalizados e aprisionados, sem qualquer suporte legal. No dia seguinte, a única notícia que se via nos jornais era a de que a operação foi um sucesso, exceto quanto aos ataques aos jornalistas. Àquele tempo já se apontava o quanto a aceitação dessas fugas dos parâmetros da racionalidade jurídico-formal constituía a porta aberta para todo tipo de arbitrariedade ou mesmo da barbárie. De lá pra cá, sem que fosse rompida essa ordem de ideias, na qual se assume que é possível eliminar garantias constitucionais para se chegar a determinados fins, nem um pouco republicanos, aliás, muitos retrocessos cada vez mais intensos foram sendo promovidos, notadamente no âmbito do patrimônio jurídico e humano da classe trabalhadora. Mas a preocupação aumenta consideravelmente quando o órgão jurisdicional trabalhista encarregado de dar a palavra final nas questões que envolvem o conflito entre capital e trabalho, cuja visão humanista das relações de trabalho justifica sua existência, profere decisão em que, apesar de declarar legítimo o movimento de greve, determina o imediato retorno às atividades, “sob pena de pagamento de multa de R$ 100.000,00 por dia de continuidade do movimento paredista” além de “autorização para dispensa por justa causa do empregado que prosseguir em greve no dia seguinte à data do julgamento do presente feito”2. Ultrapassam-se todos os limites jurídicos possíveis para, com nítida intenção punitiva de trabalhadores e trabalhadoras, proferir um julgamento condenatório antes mesmo da ocorrência do fato. Inaugura-se, portanto, uma nova fase nessa lógica de dissociação do conteúdo de decisões judiciais em relação ao que determina o ordenamento jurídico e mesmo à tradição, à razão histórica pela qual existe a Justiça do Trabalho. E mais, também uma dissociação do debate público realizado durante a sessão, a qual foi amplamente divulgada dada a extrema importância social do seu objeto, qual seja o exercício de greve por parte de trabalhadores(as) de uma das mais importantes empresas públicas do país. É muito relevante sublinhar o fato de que a “autorização” para punir não foi referida durante os debates nem constou dos votos discutidos na sessão realizada e transmitida em tempo real. Importante também referir que se o compromisso com a efetividade dos preceitos contidos na Constituição Federal de 1988 tivesse sido levado a sério, a própria persistência da justa causa, como fundamento de cessação unilateral dos vínculos trabalhistas, deveria estar em debate. Aliás, precisaríamos construir e efetivar modos de garantir a manutenção do trabalho, especialmente para quem tem a “ousadia” de fazer greve, em um país de mais de 13 milhões de pessoas desempregadas. Deveríamos estar tratando da greve como um direito fundamental, que precisa, portanto, ser garantido e não agredido. Em lugar disso, o que vimos ocorrer foi a criação de uma hipótese não prevista em lei para ampliar a justa causa, com o gravame de já vir acompanhada com a chancela do Judiciário para utilização arbitrária do empregador, valendo também lembrar que tal permissivo sequer estava sendo submetido ao crivo do Poder Judiciário trabalhista. No processo não se discutiam as consequências do retorno ou não ao trabalho. O fato concreto é que se chegou ao ponto de uma decisão judicial conferir ao empregador o poder de possuir a seu favor uma decisão judicial transitada em julgado, precedente ao ato, para usar contra a trabalhadora ou trabalhador que falte ao trabalho, um dia que seja, após o dia 25 de setembro de 2020, sendo que, em nenhuma das hipóteses fixadas no art. 482 da CLT se encontra tal espécie de motivação para a justa causa. Ao contrário, mesmo para quem entenda seja possível aplicar justa causa após a Constituição de 1988, há um certo consenso acerca da exigência da avaliação do histórico e das circunstâncias do caso concreto, para que tal penalidade – pois é disso que se trata, uma penalidade que não guarda parâmetro com as consequências previstas para a chamada justa causa do empregador – seja aplicada. O que é certo, é que não se trata de algo que possa ser usado como ameaça, especialmente para tentar intimidar e evitar a prática do direito fundamental de greve ou do mero direito de não trabalhar, vez que há muito foi abolido o trabalho forçado, conforme contido na Convenção 105 da OIT (1957), nem de algo que possa ser fixado de modo genérico, como uma espécie de “carta branca” para que o empregador promova até mesmo uma dispensa coletiva que, na realidade concreta da classe trabalhadora ligada aos Correios, se caracterizaria, caso exercida, como evidente conduta antissindical, mesmo com a “autorização” judicial para tanto, vez que direitos fundamentais não perdem eficácia diante de ordens ilegais. A decisão, portanto, vai de encontro ao que estabelece a Convenção 151 da OIT, ratificada pelo Brasil, quando diz que “os trabalhadores da Administração Pública devem usufruir de uma proteção adequada contra todos os atos de discriminação que acarretem violação da liberdade sindical em matéria de trabalho” (Artigo 4: 1). Note-se que o artigo 4 da Convenção 151 da OIT especifica como atividades antissindicais “b) Demitir um trabalhador da Administração Pública ou prejudicá-lo por quaisquer outros meios, devido à sua filiação a uma organização de trabalhadores da Administração Pública ou à sua participação nas atividades normais dessa organização”. Do mesmo modo, a Convenção 98 da OIT, ratificada pelo Brasil, em 1952, estabelece que “os trabalhadores deverão gozar de proteção adequada contra quaisquer atos atentatórios à liberdade sindical em matéria de emprego” (Art. 1º). E define práticas que devem ser consideradas violadoras da liberdade sindical, tais como dispensar um trabalhador ou prejudicá-lo, por qualquer modo, em virtude de sua filiação a um sindicato ou de sua participação em atividades sindicais, fora das horas de trabalho ou com o consentimento do empregador, durante as mesmas horas (Art. 2º, I e II). É de referir, ainda, a Convenção nº 87 da OIT, que embora até hoje não tenha sido ratificada, é desde 1998 considerada convenção fundamental e, como tal, de observância obrigatória por parte dos Estados-membro, independentemente de ratificação. Em seu artigo 3º, ponto 1, essa convenção estabelece que “as organizações de trabalhadores e de empregadores têm o direito de redigir seus estatutos e regulamentos administrativos, o de eleger livremente seus representantes, o de organizar sua administração e suas atividades e o de formular seu programa de ação”. Esses dispositivos que fixam parâmetros internacionais para a intervenção estatal no fato social que é a greve tornam o raciocínio de autorizar antecipadamente a punição de quem permanecer mobilizado não apenas contrário à ordem constitucional vigente, mas a todo parâmetro internacional de normatividade jurídico-trabalhista. A autorização em questão representou, igualmente, um julgamento extra petita, cujo comando, nesse aspecto, sequer pode ser confundido com o exercício de poder normativo. Aliás, o parâmetro jurídico adotado pelo próprio TST é o da limitação do pressuposto de “cláusula pré-existente”, fato que inclusive resultou a compreensão majoritária de que as cláusulas econômicas historicamente conquistadas pela categoria das trabalhadoras e trabalhadores dos Correios não deveriam ser mantidas, em atitude – também inédita diga-se de passagem – de supressão de 70 das 79 cláusulas que estavam vigentes. No âmbito do que compreendemos como poder normativo não se encontra a possibilidade de fixar hipóteses não previstas em lei para a punição unilateral da classe trabalhadora, como consequência do exercício de um direito fundamental. Nunca houve deliberação nesse sentido, por parte dos agentes da negociação coletiva, até porque não teriam autoridade para estipular uma cláusula fora de todos os padrões jurídicos conhecidos. Se um acordo ou convenção coletiva com tal teor sobreviesse, parece mesmo tranquilo supor que seria declarado ilegal por decisão jurídica minimamente comprometida com o ordenamento jurídico vigente. Vale acrescentar que a referida decisão prevê a hipótese de justa causa, genérica e não prevista no ordenamento jurídico, para quem tenha permanecido em greve no dia imediatamente posterior ao da decisão (proferida dia 21/9), ainda que o próprio acórdão tenha sido publicizado apenas no dia 25/09/2020, às 14:09:26. Ou seja, quando da publicação do acórdão, um número gigantesco de trabalhadoras e trabalhadores, que estavam mobilizados em Brasília e que talvez estivessem se deslocando para as suas bases no dia seguinte ao da decisão, já estavam sob a ilegal condição de passíveis de dispensa por justa causa, sem que o soubessem e sem, portanto, que tivessem sequer como impedir a implementação do fato gerador da penalidade. A decisão coloca o TST em posição de contrariedade até mesmo com posição firmada pelo STF, na Súmula 316, segundo a qual “a simples adesão à greve não configura falta grave”. O verbete superou a jurisprudência anterior, segundo a qual a participação em greve abusiva consistiria em falta grave3. O entendimento doutrinário4, bem como a jurisprudência atual dos Tribunais Regionais do Trabalho vinha sendo firme no sentido de que, ainda que a greve fosse declarada abusiva, descaberia cogitar de aplicação de justa causa decorrente da mera participação do trabalhador5–6–7. Por isso mesmo, é surpreendente a decisão adotada na greve dos Correios de 2020, que concede uma espécie de “cheque em branco” para que o empregador dispense empregados pela mera participação em greve considerada não abusiva. Determinar a aplicação de penalidade para o caso em que se mantenha o exercício de um direito fundamental que, segundo a literalidade da Constituição, será exercido de acordo com a oportunidade definida pela classe trabalhadora, não representa a observância do artigo 14 da Lei 7.783. Esse dispositivo expressamente refere (em seu parágrafo único) a possibilidade de manutenção da greve, mesmo quando há decisão judicial a respeito, nos casos em que, por exemplo, sobrevenha fato novo ou acontecimento imprevisto que modifique substancialmente a relação de trabalho. Eis, na própria decisão exarada, o tal fato novo, pois a previsão, de punição a priori para quem se manteve em greve em período no qual sequer o acórdão estava publicizado, caso utilizada pela empregadora, constituirá evidente modificação da relação de trabalho, que atingirá aliás toda a categoria. Convém, ainda, mencionar que é uma verdadeira aporia a afirmação de que a manutenção da greve, em alguma hipótese, possa representar “greve não mais contra a empresa, mas contra a própria Justiça”. A Justiça enquanto valor fundamental, e a Justiça do Trabalho como instituição, possuem a finalidade de garantir a realização dos direitos, em especial daqueles eleitos como fundamentais. Não de obstaculizá-los. Na medida em que a greve constitui direito fundamental, ainda que ela venha a ser reputada abusiva, o que não foi o caso nessa hipótese específica, não será jamais um ato de agressão à justiça, senão um legítimo exercício do direito que decorre exatamente desse valor fundante. Ao contrário, uma afirmação desse jaez acaba outorgando à classe trabalhadora diretamente envolvida, e talvez mesmo à sociedade em geral, mais elementos para a resistência organizada, pois se trata da declaração de possibilidade de punição prévia e genérica pelo simples exercício de um direito, algo, portanto, que subverte e põe em xeque a própria razão de existência da ordem jurídica. Certo é que se a greve persistir após a declaração de abusividade pelo Poder Judiciário, ainda assim incide o raciocínio da Súmula 316 do STF, não se podendo concluir pela justa causa, sequer com enquadramento em hipótese disciplinada em lei, como é o caso do abandono de emprego, que exige prova de desinteresse total pela persistência da relação de emprego. Quem faz greve, bem ao contrário, quer a persistência do vínculo, tanto que luta pela melhoria das condições de trabalho. Fato é que na linha do rebaixamento de direitos que vem marcando a história recente do país, não apenas sucessivas decisões judiciais corroboraram a vigência de leis agressivas aos direitos trabalhistas constitucionalmente consagrados, como também, agora, durante a pandemia, quando o trabalho e as trabalhadoras e trabalhadores são reconhecidos como essenciais, atingiu-se o ponto do vale-tudo para amedrontar. É como se, retornando a 2013, a Polícia Militar possuísse uma decisão judicial condenatória já transitada em julgado, com conduta tipificada mas sem sujeito específico, para usar aleatoriamente durante uma manifestação, inclusive em relação a condutas anteriores à manifestação. Aliando-se os dois procedimentos, daqui a pouco vai se chegar ao momento em que autoridades policiais e empresas estarão dotadas do poder de acusar, condenar e punir alguém a partir de sua consideração subjetiva de que esta pessoa pensou em praticar um determinado ato ou que, pelas suas características físicas ou psíquicas, tem propensão a fazê-lo. Absurda a hipótese? Talvez… Mas cabe reparar que a porta do absurdo já está aberta desde 2013 e só se escancara a cada dia no país da exploração sem limites e ofensiva da força de trabalho, do negacionismo, do escárnio institucional, do desprezo ao conhecimento, do morticínio da classe trabalhadora, da submissão ao deus mercado, da bala e do fogo! Brasil, 02 de outubro de 2020.   Notas * São autores: Alberto Emiliano de Oliveira Neto e Alessandra Camarano Martins, Carlos Eduardo Oliveira Dias, Daniela Müller, Danilo Uler Corregliano, Elinay Almeida Ferreira, Felipe Bernardes, Gabriela Caramuru, Gabriela Lacerda, Germano Silveira de Siqueira, Giovana Labigalini Martins, Giovanna Maria Magalhães Souto Maior, Grijalbo Fernandes Coutinho; Gustavo Seferian; Hugo Melo Filho, Igor Cardoso Garcia, João Hilário Valentim, João Pedro Ferraz dos Passos, Jorge Luiz Souto Maior, José Carlos Callegari, José Carlos de Carvalho Baboin, José Guilherme Carvalho Zagallo, Lara Porto Renó, Laura Rodrigues Benda, Luana Duarte Raposo, Luís Carlos Moro, Luís Fernando Silva, Marcelo Chalréo, Márcio Túlio Viana, Marcus Barberino, Mauro de Azevedo Menezes, Nilton Correia, Noa Piatã, Nubia Guedes, Patrícia Maeda, Paulo de Carvalho Yamamoto, Pedro Daniel Blanco Alves, Rafael Marques, Rodrigo Carelli, Tainã Góis, Valdete Souto Severo e Xerxes Gusmão. 1 SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. História do Direito do Trabalho no Brasil. Curso de Direito do Trabalho, Vol I, Parte I. LTr, 2017, p. 438, 2 Acórdão proferido no processo 1001203-57.2020.5.00.0000, publicado em 25/09/2020 às 14:09:26, a Seção de Dissídios Coletivos do TST, 3 Como exemplo dessa tendência superada: “A greve ilegal é falta grave. A lei nº 9070 não contraria a Constituição” (RE 42916, Relator(a): CÂNDIDO MOTTA, Primeira Turma, julgado em 10/09/1959). 4 Segundo Süssekind, “o fato de a greve ser declarada abusiva não significa, por si só, que os seus participantes tenham cometido ilícito trabalhista, principalmente quando restar comprovado que a participação da empregada se deu pacificamente” (SÜSSEKIND, Arnaldo, op.cit., p. 465). 5 “RESCISÃO CONTRATUAL – JUSTA CAUSA APLICADA – PARTICIPAÇÃO EM GREVE DECLARADA ILEGAL – NULIDADE DA JUSTA CAUSA. A participação do empregado em movimento paredista, ainda que considerado abusivo pela autoridade competente, não pode acarretar a aplicação da sanção máxima da justa causa” (TRT-24 00247031320145240001, Relator: NICANOR DE ARAUJO LIMA, 1ª TURMA, Data de Publicação: 29/06/2015). 6 “RECURSO ORDINÁRIO DA RECLAMADA – JUSTA CAUSA – GREVE ABUSIVA – A princípio, a mera participação em greve, mesmo considerada ilegal, não autoriza, por si só, a dispensa por justa causa. Há de ser demonstrada a conduta reprovável e os atos lesivos ao patrimônio da empresa ou a terceiros, passíveis de enquadramento nas hipóteses previstas no art. 482, b, e, h (…)”. (Processo: RO – 0001170-09.2012.5.06.0191 Redator: Sergio Torres Teixeira, Data de julgamento: 21/05/2014, Primeira Turma, Data de publicação: 01/06/2014). 7 “ADESÃO A MOVIMENTO PAREDISTA. APLICAÇÃO DA JUSTA CAUSA. IMPOSSIBILIDADE. A adesão à greve, por si só, não constitui falta grave, consoante a Súmula 316 do STF, não podendo, portanto, ser considerada motivo suficiente para a dação de justa causa. E diga-se que se a greve é um direito, não pode caracterizar falta grave a mera participação, daí porque o verbete tem aplicação nos casos de greves declaradas abusivas e ilegais, mesmo porque o art. 9o da Constituição da República assegura não só o direito de greve como também estabelece que compete aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender” (TRT-3 – RO: 00544201014803003 0000544-74.2010.5.03.0148, Relator: Convocado Maurilio Brasil, Quinta Turma, Data de Publicação: 6/11/2010, 12/11/2010).   As(os) autoras(es) são advogadas(os) trabalhistas, magistradas(os) do trabalho, mestres e doutoras(es) em Direito do Trabalho, procuradores do trabalho e professoras(es) de Direito do Trabalho.  Artigo publicado originalmente no site Democracia e Mundo do Trabalho no dia 04 de outubro de 2020. 

A greve dos Correios de 2020 e a necessidade de superação de uma jurisprudência trabalhista incoerente

Na ADI 3423 (e outras julgadas em conjunto)[1], o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade dos §§2º e 3º do art. 114 da Constituição, na redação da EC 45/2004. A Corte utilizou como argumentos centrais aptos a sustentar a constitucionalidade da exigência do comum acordo para o dissídio coletivo de natureza econômica: (i) inexistência de violação ao acesso à justiça, pois se trata de criação de novo direito, e não de aplicação de direito pré-existente; (ii) a necessidade de reduzir a intervenção estatal nas relações coletivas de trabalho.          Nesse contexto, não se pode deixar de apontar a grave incoerência da jurisprudência dos tribunais trabalhistas, inclusive do Tribunal Superior do Trabalho, com o que decidido pelo Supremo Tribunal Federal.          O STF enaltece a liberdade dos entes coletivos e preconiza a supressão ou redução da intervenção estatal nos conflitos coletivos de trabalho, destacando que tal postura supostamente seria a mais democrática. Nesse diapasão, a única conclusão possível é a de que o Estado não pode igualmente intervir, em princípio, nos dissídios coletivos decorrentes de greve, pelo menos não com a intensidade que vem sendo adotada pelos tribunais trabalhistas.          Tome-se como exemplo a greve dos Correios realizada no ano de 2020. A decisão do Tribunal Superior do Trabalho, julgando o dissídio coletivo de greve[2], pode ser assim sintetizada:          - (i) atuação da Justiça do Trabalho nos dissídios coletivos de natureza econômica passou a ter contornos de arbitragem, em decorrência da necessidade do comum acordo entre os envolvidos;          - (ii) nos casos de dissídios coletivos de greve, o Judiciário Trabalhista poderia atuar mesmo sem comum acordo, “a bem da sociedade”. Por não ter sido, nessa hipótese, eleita pelas partes, o poder normativo da Justiça do Trabalho ficaria “restrito aos limites constitucionais e legais, preservando as normas convencionais pré-existentes, o que significa aquelas decorrentes do último instrumento normativo oriundo de negociação coletiva. Nessa hipótese, não é possível impor normas que venham a onerar economicamente a empresa, mas apenas cláusulas sociais que melhorem as condições de trabalho na empresa”;          - (iii) a Lei 13.467/2017, assim como a jurisprudência do STF, impedem a ultratividade de normas coletivas;          - (iv) no caso concreto,  houve recusa patronal em negociar e a proposta formulada pela empresa foi “superlativamente redutiva de vantagens”;          - (v) por se tratar de greve de longa duração, admitiu-se a compensação de apenas 50% dos dias parados, com desconto de apenas 50% dos dias restantes;          - (vi) o Tribunal deferiu apenas as cláusulas econômicas aceitas pela empresa, e estabeleceu mais algumas cláusulas sociais que não implicavam ônus financeiro para o empregador. Foi deferido, também, reajuste salarial em percentual ligeiramente inferior ao INPC do período;          - (vii) composto o dissídio coletivo pela sentença normativa, o TST determinou a imediata cessação de greve e o retorno imediato dos trabalhadores ao serviço, sob pena de multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais) aos sindicatos promotores da greve, “uma vez que eventual paralisação posterior ao julgamento do feito já não se dirige mais contra a Empresa, mas contra a própria Justiça do Trabalho”;          - (viii) por fim, o acórdão autorizou a dispensa por justa causa do empregado que prosseguisse em greve no dia seguinte à data do julgamento.          Com o devido respeito à instituição Tribunal Superior do Trabalho, e aos seus integrantes, deve ser demonstrado com clareza que o julgado – que representa a jurisprudência trabalhista prevalecente sobre o tema – institui sistema absolutamente incoerente no trato das relações coletivas de trabalho, violando a diretriz jurisprudencial fixada pelo STF.          Veja-se que julgar as reivindicações econômicas da categoria sem o comum acordo das partes já constitui, por si só, violação ao art. 114, §2º, da CF, cuja higidez constitucional foi referendada pela Suprema Corte na ADI 3423. Não é possível que o Tribunal Trabalhista decida o conflito econômico, se não houver o comum acordo, que é exigido pela Constituição para o processamento do dissídio econômico, vale dizer, para que se possa ter uma decisão a respeito das reivindicações econômicas da categoria. Entender diferentemente faria com que o requisito constitucional do comum acordo fosse facilmente burlado: bastaria, para tanto, deflagrar greve e, em seguida, ajuizar dissídio coletivo de greve, fazendo com que o Tribunal decidisse as reivindicações econômicas da categoria. No entanto, decidir as reivindicações da categoria constitui objeto específico do dissídio de natureza econômica[3].          De duas, uma: ou se parte para um sistema de efetiva liberdade dos entes coletivos (sindicatos e empresas) para negociar coletivamente e assumir as consequências da greve; ou se admite o intervencionismo do Estado nos conflitos coletivos.          O que não se pode é estabelecer um intervencionismo seletivo e pela metade, apenas com o fim de coibir os movimentos grevistas a pretexto de resguardar um suposto “bem maior da sociedade”. Veja-se a manifesta incongruência: de um lado, diz-se que o Estado não pode intervir nos conflitos coletivos de trabalho pela via do dissídio coletivo, porque isso supostamente seria antidemocrático e paternalista; de outro, quando os trabalhadores resolvem assumir o risco do movimento grevista, com todo o desgaste daí decorrente – inclusive o corte de salários, placitado pela jurisprudência ­–, a Justiça do Trabalho intervém de forma incisiva, para determinar o imediato fim da greve, estabelecer pesada multa e autorizar a medida extrema da dispensa por justa causa pela mera continuidade da greve!          Além da incoerência, a decisão, objetivamente analisada, pratica uma espécie de cinismo judicial, porque diz uma coisa e faz outra. Afirma-se que o Judiciário não pode intervir, não pode asfixiar a autonomia privada coletiva, mas, ao mesmo tempo, profere-se decisão que impede o exercício do direito de greve, inviabilizando-o completamente em função das graves sanções cominadas.          Perceba-se que os trabalhadores ficam absolutamente impossibilitados de agir para a melhoria de sua condição social. Não podem recorrer ao Poder Judiciário, porque para que se exerça o poder normativo há necessidade do comum acordo, ou seja, da concordância do empregador, a qual sabidamente quase nunca ocorre; e também não podem fazer greve, sob pena de serem multados e dispensados por justa causa. Dá-se aos trabalhadores, portanto, apenas o “direito” de se submeterem às condições unilateralmente impostas pela empresa.          Quando os trabalhadores tentam fazer greve, e correm todos os riscos e agruras a ela inerentes, o Judiciário muda de postura e resolve julgar as reinvindicações econômicas, mas só defere os benefícios com os quais o empregador concordou. Perceba-se que o TST não apenas “lavou as mãos”, como Pilatos, mas agiu ativa e efetivamente para impedir que uma das partes (o sindicato profissional) pudesse continuar batalhando pela melhoria das condições sociais dos trabalhadores.          Há forte incongruência, ainda, com a Súmula 316 do STF, segundo a qual “a simples adesão à greve não configura falta grave”. O verbete superou a jurisprudência anterior, segundo a qual a participação em greve abusiva consistiria em falta grave[4]. O entendimento doutrinário[5], bem como a jurisprudência atual dos Tribunais Regionais do Trabalho vinha sendo firme no sentido de que, ainda que a greve fosse declarada abusiva, descaberia cogitar de aplicação de justa causa decorrente da mera participação do trabalhador[6]-[7]-[8]. Por isso mesmo, é surpreendente a decisão adotada na greve dos Correios de 2020.          Se a greve persistir após a declaração de abusividade pelo Judiciário, ainda assim incide o raciocínio da Súmula 316 do STF, não se podendo concluir pela justa causa, por exemplo por suposto abandono de emprego. Isso porque o abandono de emprego pressupõe um elemento subjetivo, consistente na “intenção do empregado de não mais retornar ao trabalho até então exercido”[9], o que certamente não está presente por ocasião de movimento coletivo de paralisação da prestação de serviços.          Dessa forma, é imperativo que seja revista a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, a qual atualmente admite que os tribunais trabalhistas apreciem as reivindicações econômicas da categoria no caso de deflagração de greve[10]. Igualmente, deve-se prestigiar o entendimento de que é não é possível que o tribunal determine aos grevistas o retorno ao serviço e que “autorize” a efetivação de dispensas por justa causa no caso de descumprimento da determinação. Essa é a única maneira de preservar a coerência com a diretriz firmada pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 3423. [1] “Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Art. 1º, da Emenda Constitucional nº 45/2004, na parte em que deu nova redação ao art. 114, §§ 2º e 3º, da Constituição Federal. 3. Necessidade de “mutuo acordo” para ajuizamento do Dissídio Coletivo. 4. Legitimidade do MPT para ajuizar Dissídio Coletivo em caso de greve em atividade essencial. 5. Ofensa aos artigos 5º, XXXV, LV e LXXVIII, e 60, § 4º, IV, da Constituição Federal. Inocorrência. 6. Condição da ação estabelecida pela Constituição. Estímulo às formas alternativas de resolução de conflito. 7. Limitação do poder normativo da justiça do trabalho. Violação aos artigos 7º, XXVI, e 8º, III, e ao princípio da razoabilidade. Inexistência. 8. Recomendação do Comitê de Liberdade Sindical da Organização Internacional do Trabalho. Indevida intervenção do Estado nas relações coletivas do trabalho. Dissídio Coletivo não impositivo. Reforma do Poder Judiciário (EC 45) que visa dar celeridade processual e privilegiar a autocomposição. 9. Importância dos acordos coletivos como instrumento de negociação dos conflitos. Mútuo consentimento. Precedentes. 10. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente” (ADI 3392, 3423, 3431, 3432 e 3520, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 29/05/2020). [2]  PROCESSO Nº TST-DCG-1001203-57.2020.5.00.0000, Seção de Dissídios Coletivos, Rel. Min. Ives Gandra Martins Filho, julgado em 21.09.2020. [3] BERNARDES, Felipe. Manual de Processo do Trabalho.  2ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2019, p. 697. [4] Como exemplo dessa tendência superada: “A greve ilegal é falta grave. A lei nº 9070 não contraria a Constituição” (RE 42916, Relator(a): CÂNDIDO MOTTA, Primeira Turma, julgado em 10/09/1959). [5] Segundo Süssekind, “o fato de a greve ser declarada abusiva não significa, por si só, que os seus participantes tenham cometido ilícito trabalhista, principalmente quando restar comprovado que a participação da empregada se deu pacificamente” (SÜSSEKIND, Arnaldo, op.cit., p. 465). [6] “RESCISÃO CONTRATUAL - JUSTA CAUSA APLICADA - PARTICIPAÇÃO EM GREVE DECLARADA ILEGAL - NULIDADE DA JUSTA CAUSA. A participação do empregado em movimento paredista, ainda que considerado abusivo pela autoridade competente, não pode acarretar a aplicação da sanção máxima da justa causa” (TRT-24 00247031320145240001, Relator: NICANOR DE ARAUJO LIMA, 1ª TURMA, Data de Publicação: 29/06/2015). [7] “RECURSO ORDINÁRIO DA RECLAMADA - JUSTA CAUSA - GREVE ABUSIVA - A princípio, a mera participação em greve, mesmo considerada ilegal, não autoriza, por si só, a dispensa por justa causa. Há de ser demonstrada a conduta reprovável e os atos lesivos ao patrimônio da empresa ou a terceiros, passíveis de enquadramento nas hipóteses previstas no art. 482, b, e, h (...)”. (Processo: RO - 0001170-09.2012.5.06.0191 Redator: Sergio Torres Teixeira, Data de julgamento: 21/05/2014, Primeira Turma, Data de publicação: 01/06/2014). [8] “ADESÃO A MOVIMENTO PAREDISTA. APLICAÇÃO DA JUSTA CAUSA. IMPOSSIBILIDADE. A adesão à greve, por si só, não constitui falta grave, consoante a Súmula 316 do STF, não podendo, portanto, ser considerada motivo suficiente para a dação de justa causa. E diga-se que se a greve é um direito, não pode caracterizar falta grave a mera participação, daí porque o verbete tem aplicação nos casos de greves declaradas abusivas e ilegais, mesmo porque o art. 9o da Constituição da República assegura não só o direito de greve como também estabelece que compete aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender” (TRT-3 - RO: 00544201014803003 0000544-74.2010.5.03.0148, Relator: Convocado Maurilio Brasil, Quinta Turma, Data de Publicação:  6/11/2010, 12/11/2010). [9] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa, op.cit., p. 641. [10] "I - RECURSO ORDINÁRIO. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.467/2017. DISSÍDIO COLETIVO DE NATUREZA ECONÔMICA. NOVA REDAÇÃO DO § 2º DO ARTIGO 114 DA CONSTITUIÇÃO ATUAL APÓS A PROMULGAÇÃO DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/2004. COMUM ACORDO. A Seção Especializada em Dissídios Coletivos deste Tribunal Superior do Trabalho firmou jurisprudência no sentido de que a nova redação do § 2º do artigo 114 da Constituição Federal estabeleceu o pressuposto processual intransponível do mútuo consenso das partes para o ajuizamento do dissídio coletivo de natureza econômica. A EC nº 45/2004, incorporando críticas a esse processo especial coletivo, por traduzir excessiva intervenção estatal em matéria própria à criação de normas, o que seria inadequado ao efetivo Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição (de modo a preservar com os sindicatos, pela via da negociação coletiva, a geração de novos institutos e regras trabalhistas, e não com o Judiciário), fixou o pressuposto processual restritivo do § 2º do art. 114, em sua nova redação. Nesse novo quadro jurídico, apenas havendo "mútuo acordo" ou em casos de greve, é que o dissídio de natureza econômica pode ser tramitado na Justiça do Trabalho. No caso concreto, as entidades sindicais da categoria econômica arguiram, em contestação, a referida preliminar, impedindo a incidência do poder normativo sobre as relações de trabalho existentes entre as Partes. Recurso ordinário desprovido" (ROT-1672-42.2018.5.09.0000, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Relator Ministro Mauricio Godinho Delgado, DEJT 01/10/2020).    *Juiz do Trabalho - TRT da 1ª Região, autor e professor Artigo publicado originalmente no site Instituto Trabalho em Debate no dia 02 de outubro de 2020. 

Relações trabalhistas, lógica e barbárie

Cena: O rinoceronte   Dois episódios ocorridos nesta semana - ambos envolvendo relações trabalhistas – fizeram-me lembrar do personagem “Lógico” da peça teatral “O Rinoceronte”, de Eugene Ionesco. Ionesco é um dramaturgo de origem romena, criador do denominado “Teatro do Absurdo”, modalidade teatral que procurava abordar temas presentes fazendo uso do exagero, da caricatura, da criação de ideias absurdas para que o espectador caísse em si e percebesse a realidade circundante com olhos mais atentos. A peça de Ionesco nos conta a história de um lugarejo que foi acometido por uma espécie de epidemia, a rinocerontite. O primeiro rinoceronte teria aparecido de repente, para espanto de todos. Alguns inclusive negaram a sua existência, o desprezaram. O negacionismo de sempre. Mas pouco a pouco, um a um, os habitantes locais findaram por ser contaminados e transformados – eles mesmos - em rinocerontes, com pele rugosa e chifres. Um dos personagens da famosa peça não possui nome próprio. É chamado ou identificado apenas como o “Lógico”, porque vivia fazendo uso de silogismos, ainda que de forma incorreta ou atécnica, para chegar a conclusões estapafúrdias. Eis um exemplo da lógica do personagem: Todos os gatos são mortais. Sócrates é mortal. Logo, Sócrates é um gato. Os acontecimentos que envolveram uma grande empresa nacional e a polêmica que recaiu sobre a sua política afirmativa referente à criação de um curso trainee unicamente para afrodescendentes fizeram-me revolver à logica do “Lógico”. Vejamos: A Constituição Federal considera as manifestações de racismo um crime inafiançável . A política afirmativa da empresa é uma manifestação de racismo. Logo, a política afirmativa da empresa constitui um crime inafiançável. Não é sensacional? Bela maneira para se condenar as políticas afirmativas do Brasil, não? Bora criminalizar o sistema de cotas nas universidades, as reservas de vagas em concurso, o programa trainee instituído pela famosa empresa brasileira? É o silogismo enviesado e particular do personagem “Lógico” avançando pelas mentes brasileiras. Mas o mecanismo de “O Rinoceronte” não parou por aí. Na mesma semana ouvi falar de uma decisão judicial que teria homologado um acordo em que um trabalhador, por ter perdido uma ação trabalhista, teria concordado em realizar prestação de serviços públicos em sua comunidade, como alternativa ou “pena” pelo não pagamento dos honorários advocatícios da parte contrária. Retomemos aqui o argumento do “Lógico “ para considerarmos dois pontos que decorrem da premissa que deu origem à pena alternativa. O primeiro aspecto a ser perpassado pela lógica do personagem de Ionesco seria um desdobramento natural da condenação precedente: a imperiosa necessidade de gradação das penas, a depender da gravidade da situação. Vamos ao exemplo do empregado que alegou ter prestado 5 horas extras diárias a seu empregador mas que só provou uma hora. A perda da falangeta poderia ser a pena a ser aplicada. Se não tivesse comprovado nenhuma hora, a perda do dedo inteiro seria mais adequada e proporcional. Já aquele que alegou a existência de desvio de função e não conseguiu comprovar o ilícito responderia com 50 chibatadas. Insalubridade não comprovada no ambiente de trabalho - 100 chibatadas Falta grave - é melhor nem pensar... O segundo ponto a ser considerado é que o raciocínio inverso também seria “logicamente” possível . Sendo assim, os juízes trabalhistas também estariam autorizados a estabelecer “penas” aos inúmeros empresários devedores de títulos trabalhistas, por meio de prestação de serviços comunitários. Levando-se em consideração a quantidade de descumprimento das obrigações trabalhistas neste país e o número de execuções que se arrastam por anos a fio, seria um festival nunca antes visto em termos de prestação de serviços comunitários no Brasil. O Rinoceronte está ai, trazendo uma nova e contagiosa epidemia. Foi chegando devagar e se instalando. Mas tenho uma noticia boa. Bérenguer, o personagem principal do livro, é o único a resistir à metamorfose “rinocerôntica’. Sempre há uma esperança. Ainda que pequena.  * Juíza do Trabalho aposentada Artigo publicado originalmente no site Os divergentes no dia 02 de outubro de 2020. 

O Poder Judiciário e a Análise de Áreas de Risco – Diretrizes da Cajufa - 2020

A Lei Federal nº 12.983/14 trouxe relevantes alterações na Lei Federal nº 12.340/2010, a qual trata da prevenção de desastres em áreas de risco. Dentre as inovações há o importante dispositivo que restringe a remoção de moradores e edificações, a qual deve ser usada como último recurso, a ser implementado somente após a realização de vistoria e elaboração de laudo comprovando o risco da ocupação para a integridade física dos moradores ou de terceiros. No entanto, apesar de tal norma estar em vigor a mais de seis anos, sua aplicação tem sido bastante tímida. Em alguns casos, os próprios entes públicos, notadamente os Ministérios Públicos dos Estados e os Municípios, costumam ajuizar ações pedindo a remoção pura e simples, isso quando a medida não é implementada pela via administrativa, muitas vezes sem qualquer procedimento com contraditório ou até mesmo aviso aos moradores. Em outros casos, mesmo quando na ação há pedido subsidiário, pertinente a medidas de redução de riscos, o Judiciário tem optado pelo remédio mais drástico da desocupação, atuando muitas vezes como um médico açodado, que amputa a perna do paciente ao mínimo sinal de infecção. Tais remoções acabam por gerar impactos sociais terríveis, com pessoas desalojadas que muitas vezes se veem na perversa situação de sair de uma área de risco para outra, por vezes de nível de risco ainda mais elevado, gerando um fluxo migratório que precariza ainda mais a condição de vulnerabilidade das famílias afetadas, impondo gastos e danos psíquicos a quem já não tem nada ou quase nada.  Em 2019, por iniciativa do Lab-Cidade da Faculdade de Habitação e Urbanismo da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Habitação e Urbanismo da Universidade Federal do ABC, foi realizada uma reunião junto à Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado de São Paulo, que aliás tem mostrado uma postura sensível e arrojada no âmbito de sua atribuição, da qual também participaram alguns magistrados do Fórum da Fazenda Pública. Em tal evento, os representantes das entidades acadêmicas externaram toda essa problemática, notadamente quanto ao modo precipitado como as remoções vinham ocorrendo, notadamente no âmbito da Grande de São Paulo e da ausência ou insuficiência de respaldo social no pós-remoção. Na sequência a questão foi colocada no âmbito da Cajufa – Centro de Apoio aos Juízes da Fazenda Pública, tendo então sido determinada a constituição de comissão de peritos para a feitura de documento com diretrizes de análise de áreas de risco, que pudesse servir de guia na atividade jurisdicional. Apesar do estudo ser centrado em aspectos técnicos de engenharia e geologia, ele não perde a dimensão social e a base normativa, notadamente quanto às medidas alternativas de mitigação de risco, as quais, mais que nunca, em vista da crise econômica e sanitária da Covid-19, se mostram prementes. Mais que fornecer parâmetros básicos para as deliberações jurisdicionais, o estudo também abre a oportunidade para dar luz a um gravíssimo problema, mas que é de pouca visibilidade no âmbito da administração pública e do sistema de justiça. Afinal, os gestores públicos, notadamente no âmbito das administrações municipais, seja para evitar o ônus político, seja para evitar a responsabilidade da Administração Pública, são estruturalmente estimulados para evitar tragédias nas áreas de risco, mas, inversamente, a mesma preocupação não costuma ocorrer para com a outra tragédia decorrente da remoção, ou seja, a tragédia daqueles que ficam sem moradia. Talvez a opção da simples troca de uma tragédia pela outra decorra da pulverização do nexo causal entre os danos pós-remoção e a omissão do Poder Público, o qual raramente é responsabilizado em tais casos. Em outras palavras, muitas vezes a tônica é de que a pessoa não pode morrer num deslizamento, mas não há problema caso ela morra na rua, seja de fome, frio, violência urbana ou Covid-19. Ainda nesse ponto, cumpre destacar que, não raro, a questão das ocupações em áreas de risco é posta de modo preconceituoso e discriminatório, estigmatizando moradores que detém justo título ou que simplesmente passaram a exercer seu direito constitucional de moradia em locais destituídos de função social. Outro aspecto do problema concerne à questão processual. As ações não devem ser tratadas como simples “ações de desocupação”, mas sim como ações de “manejo em áreas de risco”, ampliando o objeto da simples remoção, para incluir outras medidas, notadamente a da mitigação dos riscos, a qual devem ser tida como preferencial. Além disso, o processo de “manejo em áreas de risco” não pode ser tratado como uma simples ação contenciosa. O risco é dinâmico e assim pode mudar dia a dia, o que determina, com o recebimento da inicial, a designação de perícia preliminar com máxima urgência, a qual deverá ser atualizada constantemente ao longo do processo, até a fase de instrução, de modo a possibilitar medidas pontuais. Não é possível imaginar, em tais casos, que se permita um fluxo normal processual, com sentença, recurso/reexame necessário, para após, meses ou anos, haver uma sentença transitada em julgado. Tais casos devem ser tratados dentro do espírito de jurisdição voluntária, em que há convergência de interesses, buscando soluções rápidas e consensuais. Trata-se de um processo artesanal, ao qual o Judiciário deve destinar cuidadosa e terna atenção, não podendo ser tratado na base do “modelão”, do tipo linha de montagem. Cabem aos peritos o balizamento técnico, de engenharia e geológico, no entanto, incumbe ao juízo proceder à amarração transdisciplinar, não perdendo a dimensão humana e social, com responsabilidade e sensibilidade. É muito triste pensar que pessoas morem em barracos, sendo mais triste ainda imaginar que muitos desses barracos foram construídos em áreas de risco. No entanto, é dever máximo do Judiciário lembrar que, muitas vezes, onde de fora se vê um barraco, para quem lá mora se trata de um lar, como a saudosa maloca de Adoniran. * Juiz de Direito e coordenador do Centro de Apoio aos Juízes do Fórum da Fazenda Pública (Cajufa).  Artigo publicado originalmente no site Conjur no dia 28 de setembro de 2020. 

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