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Yes, nós temos sociedade e Direito

Jorge Luiz Souto Maior Juiz do trabalho, professor da Faculdade de Direito da USP. Yes! Nós temos bananas Bananas pra dar e vender Banana menina, tem vitamina Banana engorda E faz crescer Vai para a França o café Pois é! Para o Japão o algodão Pois não! Pro mundo inteiro Homem ou mulher Bananas para quem quiser Mate para o Paraguai Não vai Ouro do bolso da gente Não sai Somos da crise Se ela vier Bananas para quem quiser (João de Barro – Braguinha – e Alberto Ribeiro - 1938) Muito se tem dito sobre a crise econômica e suas possíveis repercussões na realidade social brasileira. Essa história ainda está em curso e como somos, de um modo ou de outro, partícipes dela, torna-se muito difícil ter total compreensão do que se passa. Como se costuma dizer, não é fácil ver toda a cena quando a integramos como atores. De todo modo, essa é uma tarefa que se deve realizar, pois a vida não é uma inexorabilidade. Várias são as lições da crise. Uma leitura otimista pode até extrair vários efeitos benéficos do que se tem verificado até aqui. Mas, nesta altura uma abordagem crítica mais contundente faz-se necessária, por conta da constatação de que muitos têm se valido da crise como mero argumento para continuar jogando o jogo da vantagem a qualquer custo, desvinculados de qualquer projeto de sociedade. Para não inviabilizar a crença em tal projeto, é essencial que a sociedade brasileira, junto com seus poderes instituídos, firme, enfim, uma posição clara a respeito da crise. Para tanto, primeiramente, devemos lembrar que a crise é nossa velha conhecida, como revela a música em epígrafe. No Brasil, ela esteve presente em quase todos os momentos de nossa história. Em termos de relações de trabalho, o argumento da “crise econômica”, como forma de justificar uma reiterada reivindicação de redução das garantias jurídicas de natureza social (direitos trabalhistas e previdenciários), acompanha o debate trabalhista desde sempre. Se alguém disser que “agora, no entanto, é prá valer”, deve assumir que antes era tudo uma grande mentira... E se assim for dito, que força moral se terá para fazer acreditar no argumento da crise atual? Não se pode olvidar, também, que mesmo quando o Brasil vivenciou, de 1964 a 1973, aquilo que se convencionou chamar de “milagre brasileiro”, por obra da política econômica do regime militar (que não foge muito do modelo atual, apesar do bolsa-família), o tal “milagre econômico foi obtido à custa do empobrecimento da maioria da população, vez que uma de suas características era a concentração de renda. Assim, em 1970, os 50% mais pobres da população ficavam com apenas 13,1% da renda total, e os mais ricos (1% da população) embolsavam 17,8%” ¹. Exatamente por isto, a propósito do milagre brasileiro, Chico Buarque, em 1975, reclamou: “Cadê o meu?/Cadê o meu, ó meu?/Dizem que você se defendeu/É o milagre brasileiro/Quanto mais trabalho/Menos vejo dinheiro/É o verdadeiro boom/Tu tá no bem bom/Mas eu vivo sem nenhum/Cadê o meu?/Cadê o meu, ó meu?/Eu não falo por despeito/Mas, também, se eu fosse eu/Quebrava o teu/Cobrava o meu/Direito.” (Milagre Brasileiro, assinada com o pseudônimo de Julinho da Adelaide). Bem verdade que no começo da presente crise pouco se falou na relevância da diminuição do valor do trabalho, pois notório o fato de que o custo da produção não está na origem do problema. Este, com se reconhece, teve início no modo de financiamento de imóveis nos EUA, que, na seqüência, conduziu à quebra de Bancos, atingindo, num terceiro momento, o mercado produtivo, na medida em que muitas empresas, descapitalizadas, dependiam de empréstimos para desenvolver sua atividade produtiva. No entanto, sem que nada disso estivesse efetivamente ocorrendo no Brasil, em outubro de 2008, o Presidente da Vale do Rio Doce veio a público e reivindicou, desprovido de qualquer fundamento preciso, uma flexibilização das leis trabalhistas do país, como forma de combater os efeitos da crise financeira. Deflagrou-se, a partir daí, um movimento, claramente organizado, sem uma necessária vinculação a reais situações de crise, pelo qual várias grandes empresas, sobretudo multinacionais, começaram a anunciar dispensas coletivas de trabalhadores, para fins de criar um clima de pânico e, em seguida, pressionar sindicatos a cederem quanto à diminuição de direitos trabalhistas e buscar junto ao governo a concessão de benefícios fiscais. Na Grande mídia iniciou-se uma propaganda em torno dos instrumentos jurídicos a serviço das empresas para resolverem seus problemas econômicos: suspensão do contrato de trabalho; redução salarial por negociação coletiva; e dispensas coletivas e muitos foram, em concreto, os efeitos produzidos nesta direção (acordos coletivos com redução de direitos ou dispensas coletivas). Essa corrida passando por cima dos direitos trabalhistas é totalmente injustificável por pelo menos três motivos. Primeiro, porque não estando o custo do trabalho na origem da crise nada autoriza dizer que a sua redução possa ser fator determinante para que a crise seja suplantada. Segundo, porque já se pode verificar o quanto se apresentou precipitada e oportunista tal atitude. Com efeito, em fevereiro de 2009, registrou-se um aumento do nível de emprego formal, sobretudo nos setores de serviços; construção civil; agricultura e administração pública². A própria Companhia Vale do Rio Doce, que iniciou esse movimento irresponsável, se viu obrigada a informar que no quarto trimestre de 2008, quando anunciou dispensas coletivas de trabalhadores, obteve um lucro líquido de R$10,449 bilhões, o que representa um aumento de 136,8% em relação ao mesmo período do ano anterior, quando a empresa obteve um lucro líquido de R$ 4,411 bilhões. A Bovespa acumula alta de 11% no mês de março de 2009³. A venda de automóveis, segundo se argumenta, em razão da redução do IPI, sofreu um aumento de 11%4. As vendas do comércio varejista subiram 1,4% em janeiro com relação a dezembro do ano passado, segundo noticiou o IBGE. Nos últimos 12 meses até janeiro de 2009, as vendas do varejo nacional acumulam alta de 8,7%. A EMBRAER, que dispensou 4.200 empregados, está sob investigação do Ministério do Trabalho, acusada de ter fornecido bônus de R$50 milhões a 12 diretores e de ter efetuado a contratação de 200 empregados terceirizados (fatos negados pela EMBRAER como verdadeiros). Em terceiro lugar, mesmo que a crise fosse o que se apresentava – e ainda há dúvidas quanto ao que possa efetivamente ser – é grave, de todo modo, a ausência de uma compreensão histórica. Ora, os argumentos de dificuldade econômica das empresas; a alegação de que elas seriam obrigadas a fechar se fossem obrigadas a dar aumento de salário ou estabelecer melhores condições aos trabalhadores, sobretudo no que tange a limitação da jornada, salário mínimo e férias; que é melhor um trabalho qualquer a nenhum; que é mais saudável para as crianças de 05 a 10 anos se dedicarem à disciplina do trabalho subordinado durante 8 ou mais horas por dia do que ficarem nas ruas desocupadas; que é preciso primeiro propiciar o sucesso econômico das empresas de forma sólida para somente depois pensar em uma possível e progressiva distribuição da riqueza produzida; que a livre iniciativa não pode ser obstada pela interferência do Estado; foram uma constante no período de formação da Revolução Industrial e se reproduziram por mais de cem anos até que em 1914, sem qualquer possibilidade concreta de elaboração de um novo arranjo social, o mundo capitalista entrou em colapso. Foi assim que ao final da 1ª. guerra mundial, em 1919, com a criação da OIT, reconheceu-se, expressamente, que “uma paz universal e durável só pode ser fundada sobre a base da justiça social” e que em “havendo condições de trabalho que impliquem para um grande número de pessoas a injustiça, a miséria e privações, isso gera um tal descontentamento que a paz e harmonia universal são postas em perigo, sendo urgente melhorar as condições de trabalho, por exemplo, no que concerne à fixação de uma duração máxima da jornada e da semana de trabalho, ao recrutamento de mão-de-obra, à luta contra o desemprego, a garantia de um salário que assegure condições de existência razoáveis, à proteção dos trabalhadores contra as doenças em geral e profissionais e os acidentes do trabalho, à proteção das crianças, dos adolescentes e das mulheres, às aposentadorias por idade e por invalidez, à defesa dos interesses dos trabalhadores no exterior; à afirmação do princípio ‘trabalho igual, salário igual’, à afirmação do princípio da liberdade sindical...” (Preâmbulo da Constituição da OIT) A instituição da OIT foi mesmo um marco na história da humanidade, pois que conduziu os trabalhadores ao centro de poder. Com efeito, enquanto em muitos países ainda não havia sequer o sufrágio universal, os trabalhadores foram integrados à assembléia deliberativa da OIT em pé de igualdade com Estados e representantes dos empregadores. Os direitos dos trabalhadores (os direitos sociais em geral) ganharam, assim, relevo como instrumento de reorganização do todo social, passando a se integrar às Constituições de diversos países. O argumento da dificuldade econômica das empresas, portanto, precede à formação dos Direitos Sociais. Esses argumentos que estiveram presentes na formação do capitalismo, quando a situação de crise social e econômica era uma evidência incontestável, não foram válidos para impedir o surgimento dos direitos trabalhistas, o que serve para demonstrar que o Direito do Trabalho tem razão de ser exatamente em épocas de crise, servindo como modelo de reorganização social. Em outras palavras, as crises econômicas e sociais mais do que servirem como justificativa para a retração dos direitos sociais são, em verdade, o fundamento da sua própria existência. É fato que a forma oportunista como algumas empresas se colocaram diante da crise, agindo de modo a desconsiderar o interesse de toda a comunidade, acuando sindicatos a fim de auferir a redução de direitos trabalhistas e pressionando o Estado para recebimento de incentivos fiscais, acabou por provocar uma reação de certo modo inesperada (mas, não indesejada) do Judiciário frente às atitudes unilaterais de empresas de reincidirem unilateralmente contratos de trabalho. Instigado a intervir de forma responsável em um sério problema de ordem conjuntural (o desemprego), o Judiciário, sabendo que sua posição estabeleceria um paradigma de conduta social, teve a consciência de efetivar o preceito constitucional de que a economia rege-se com base no postulado da justiça social e o fez por intermédio da aplicação dos princípios da boa-fé, do abuso de direito, da função social da propriedade, da responsabilidade social, e da preservação da dignidade humana, sem desconsiderar o princípio da livre-iniciativa. O Judiciário trabalhista brasileiro, em duas relevantes decisões, uma do TRT da 2ª. Região, Relatora Des. Ivani Contini Bramante, e outra do TRT da 15ª. Região, Relator Des. José Antônio Pancotti, abriu a porta para a avaliação do mérito das dispensas de trabalhadores. Desse modo, não é mais a mera vontade unilateral das empresas que Vale para o efeito de conduzir pessoas ao desemprego, pois, afinal, o desemprego é um problema social (e pessoal) extremamente relevante e precisa ser precedido da necessária avaliação dos poderes instituídos. Mesmo considerando que as decisões em questão pudessem ter avançado ainda mais, vez que a declaração da abusividade conduziria ao necessário revigoramento dos vínculos de emprego, com conseqüente reintegração e pagamento de salários vencidos e vincendos, com expedição de ordem judicial para cumprimento imediato, não se pode deixar de atribuí-las o grande mérito de terem conduzido o problema das dispensas coletivas a outro patamar de discussão jurídica, o que, por óbvio, se alastra, pela mesma razão e pelos mesmos fundamentos, para o aspecto pertinente aos limites das negociações que reduzam direitos dos trabalhadores. Neste último aspecto, aliás, tem-se recobrado a noção de que os instrumentos coletivos de natureza normativa (acordos coletivos, convenções coletivas e sentenças normativas) têm por objetivo único melhorar as condições sociais e econômicas do trabalhador, não se prestando, pois, à diminuição das garantias já auferidas. Esse considerável avanço jurídico, que pode, como dito, ser visto como um efeito benéfico da crise, não é suficiente, no entanto, para evitar uma leitura mais alarmante da situação presente, pois se, por um lado, a postura irresponsável de alguns segmentos empresariais, de pensar apenas na defesa de seus interesses individuais, acabou produzindo uma reação positiva do Judiciário (que não foi tão avançada como podia ter sido e que até já se encontra sob o risco de um recuo, conforme se extrai da recente manifestação do Presidente do TST, Min. Milton Moura França, junto ao Valor Econômico, sugerindo que a negociação coletiva pode ser utilizada para reduzir direitos trabalhistas legalmente previstos), gera, por outro lado, um tremor considerável na idéia de se apresentar como viável o projeto de uma sociedade capitalista desenvolvida a partir de um pacto de solidariedade, sobretudo por conta das incoerências, que se mostram às claras, na presente crise. Ora, muitas empresas “modernas” falam de sua responsabilidade social, do seu dever de cuidar do meio-ambiente, de ajudar pobres e necessitados, mas quando se vêem diante de uma possível redução de seus lucros, não têm tido o menor escrúpulo em defender abertamente o seu direito de conduzir trabalhadores ao desemprego, sem lhes apresentar uma comprovada motivação. E, avaliada essa situação sob um prisma histórico, é impossível não se indignar com a constatação de que o capital durante anos a fio resistiu a qualquer tipo de negociação com os trabalhadores, impondo-lhes péssimas condições de trabalho, que só deixaram de existir, em concreto, depois de duas guerras mundiais, e, agora, para diminuir seus custos, avançando sobre as conquistas dos trabalhadores, defendem o diálogo e a concretização de negociações. Ainda historicamente falando, não é menos repugnante perceber como a classe burguesa dominante idolatra sua Revolução, a Francesa, e abomina qualquer outro tipo de Revolução, mesmo na configuração de movimentos sociais reivindicatórios, apresentando como argumento a defesa da democracia, esquecendo-se, no entanto, que de democrática a Revolução Francesa nada teve e que somente se chegou à democracia graças aos movimentos operários e ao medo de uma Revolução socialista (o que não significa pôr-se, aqui, em defesa de qualquer forma de regime ditatorial, mesmo que em nome da justiça social). Numa perspectiva internacional, cumpre denunciar a postura de algumas empresas multinacionais que pregam para os países “periféricos” um código de conduta, baseado na precarização das condições de trabalho, para favorecer a manutenção dos ganhos que servem para o financiamento dos custos sociais em seus países de origem, o que, por certo, acaba sendo fator decisivo para eliminar qualquer espírito de solidariedade proletária em nível internacional. Os pensadores europeus, que se intitulam formadores da ciência sócio-econômico, abominam qualquer tipo de alteração social mais contundente, pois, afinal, nenhum interesse há nisso para os países europeus, pelo menos por enquanto. Sua rede de proteção social vai bem obrigado. Então, com a exploração do trabalho nos países periféricos tudo se arranja... É hora mesmo de tirar as máscaras, de se apresentarem os fatos como eles são, pois, do contrário, continuaremos sendo ludibriados por debates propositalmente pautados fora da discussão necessária: o capitalismo tem jeito? Ninguém parece disposto a discutir isso. Os teóricos, mesmo com a evidência da crise em âmbito mundial, reinventam o capitalismo. Há dias atrás, em um Seminário realizado na Faculdade de Direito da USP, o professor alemão, Wolfgang Däubler, reconheceu, abertamente, que a livre-concorrência entre as empresas, que é, como se sabe, o postulado fundamental do capitalismo, produziu enormes males à humanidade, tendo sido, ademais, o que nos conduziu à presente crise (que se projeta na Alemanha como a mais grave de todos os tempos). No entanto, sem qualquer estipulação de pena pelos males causados (mais ou menos como o mero pedido de desculpas da Igreja católica pelos horrores da Inquisição), simplesmente defendeu uma reinvenção do capitalismo, preconizando a admissão do monopólio (ou do oligopólio)... Esse tipo de argumento e as posturas oportunistas adotadas pelas empresas multinacionais, que ditam as regras do capitalismo em um mundo globalizado e não se vinculam aos interesses dos projetos de sociedade por ventura existentes nos países onde apenas vislumbram uma exploração da mão-de-obra, fazem com que seja abalada a proposta de formatação de uma sociedade capitalista baseada em um autêntico pacto de solidariedade, ainda mais quando se percebe a integração de sindicatos de trabalhadores cumprindo o papel de favorecer as empresas mesmo no jogo político frente ao Estado, assumindo a lógica de que é melhor um emprego qualquer do que sair em defesa concreta da melhoria constante da condição de vida dos trabalhadores. Vide, neste sentido, a notícia, publicada no Jornal Folha de São Paulo, edição de 24/03/09, p. B-7, segundo a qual o sindicato de trabalhadores aceitou formalizar, com a empresa Pirelli, um acordo coletivo com redução de salários e jornada por dois meses, em troca de garantia de emprego até julho (quatro meses), e ainda se comprometeu a ir à Brasília “pedir para o governo estender ao setor da borracha o acordo que prevê a redução do IPI cobrado na venda de veículos”. Falando de forma clara e aberta: se a crise é do modelo capitalista não se pode deixá-lo fora da discussão. No entanto, hipoteticamente falando, na avaliação de um atropelamento, estamos culpando o sujeito que estava atravessando a rua na faixa, deixando de lado o motorista que trafegava bem acima do limite de velocidade permitida para o local. O capitalismo baseia-se na concorrência. Um capitalismo desregrado faz com que a concorrência não encontre limites. Não há espaço nessa lógica para conflitos éticos. A obtenção de lucro impulsiona a ação na busca de um lucro ainda maior. Os investimentos especulativos, por trazerem lucros fáceis, então, são, naturalmente, insaciáveis. Em um mundo marcado pelo avanço tecnológico, as repercussões especulativas e mesmo os lucros pela produção concretizam-se muito rapidamente. Não há tempo para reflexão e até mesmo para elaborar projetos a longo prazo. Assim, restam potencializados os riscos e a sociedade tende ao colapso, sobretudo pela perda de valores éticos e morais, afinal, não é só de sucesso econômico que se move a humanidade, embora seja conveniente deixar registrado que só a satisfação espiritual não basta, pois sem justiça social não há sociedade alguma. Estas parecem ser as reflexões necessárias para o presente momento. Não é mais possível que fiquemos apenas tentando salvar os ganhos dos trabalhadores diante das investidas de alguns segmentos empresariais. O debate deve extrapolar o conflito localizado entre trabalhadores e empresa determinados e atingir o espectro mais amplo do arranjo sócio-econômico. Neste prisma, se as objeções quanto à necessária incidência dos preceitos do Direito Social forem intransponíveis, apresentando-se como autênticos empecilhos ao desenvolvimento econômico, por gerarem um custo que obsta a necessária inserção na concorrência internacional, a questão não se resolve simplesmente acatando a redução das garantias sociais, vez que estas estão integradas a um projeto de sociedade. Diante de uma constatação dessa ordem, haver-se-á, então, primeiro, que reconhecer a inutilidade do Direito Social para a concretização da tarefa a que se propôs realizar, qual seja, a de humanizar o capitalismo e de permitir que se produza justiça social dentro desse modelo de sociedade, e, segundo assumir a inevitabilidade do caráter autodestrutivo do capitalismo, inviabilizando-o como projeto de sociedade, vez que a desregulação pura e simples do mercado já deu mostras de ser incapaz de desenvolver a sociedade em bases sustentáveis – tendo-se como prova, conforme a realidade já vivenciada em outros países, a presente crise econômica. Em termos concretos, duas são as alternativas que se apresentam para o momento e que devem ser tomadas com urgência: a) ou fazer valer de forma eficaz, irredutível e inderrogável os direitos sociais, preservando a dignidade humana e ao mesmo tempo mantendo a esperança da efetivação de um capitalismo socialmente responsável, o que exige, além de não se preconizar que os trabalhadores paguem a conta em tempos de crise, a implementação de uma efetiva “ética nos negócios”, baseada no respeito à dignidade da pessoa humana, na democratização da empresa (permitindo co-gestão por parte dos trabalhadores, além de participação popular e institucional), em uma distribuição real de lucros e na formulação de projetos a longo prazo, também não acatar a lógica da terceirização (que transforma pessoas em coisas de comércio); não transformar homens em Pessoas Jurídicas para se servir de seus serviços pessoais de forma não-eventual; não se valer de cooperativas de trabalho ou contratos de estágio (além de outras formas) com o objetivo de fraudar a aplicação da legislação trabalhista; não impulsionar um sistema cruel de rotatividade da mão-de-obra; não assediar moralmente os trabalhadores, sobretudo mediante a ameaça do desemprego; não utilizar mecanismos de subcontratação, transferindo para empresas descapitalizadas parte de sua produção, pois que isso abala a efetividade dos direitos dos trabalhadores; não institucionalizar um sistema de banco de horas com o único propósito de prorrogar a obrigação quanto ao efetivo pagas horas extras com o adicional constitucionalmente previsto; e não deixar de cumprir obrigações legalmente previstas, tais como, anotar a CTPS do trabalhador, não exigir horas extras de forma habitual, não pagar as horas extras prestadas, não cuidar do meio ambiente do trabalho etc, com a intenção de, depois, forjar acordos, com quitação de todos os direitos, perante a Justiça do Trabalho... Como se vê, nesta primeira alternativa, de viabilidade do capitalismo, a solução dos problemas da crise não se resume à cômoda aceitação da intervenção do Estado na lógica de mercado. É preciso que o sentido ético se insira na ordem produtiva. Por exemplo, de nada servem as iniciativas de incentivo à produção ou à construção civil, se os produtos e obras se realizarem por intermédio de mecanismos de supressão dos direitos dos trabalhadores, pois que isso além de significar um desrespeito à ordem jurídica representa, também, uma forma de agressão ao ser humano, quebrando, assim, toda possibilidade de pacto social. Para implementação desse projeto, já inscrito na Constituição brasileira, exercem papel decisivo a parcela consciente do empresariado nacional, além do Estado e do mercado consumidor a partir de uma atitude à base de sanções e prêmios. b) ou iniciar a elaboração de um projeto de outro modelo de sociedade a partir dos postulados socialistas de divisão igualitária dos bens de produção e da riqueza auferida. Afinal, se dentro da lógica capitalista não for viável concretizar os preceitos supra, que estão inseridos no contexto dos direitos humanos inderrogáveis, previstos em Declarações e Tratados internacionais, assim como em nossa própria Constituição, impondo-se a hegemonia do raciocínio que caminha na direção da redução das garantias sociais, com aprofundamento das desigualdades e retrocesso no nível da condição humana, por que continuar seguindo esse modelo? Não desconsiderando a importância de avançar o debate para além do capital, e sem ser piegas, mas me deixando levar pelo embalo da comoção gerada pelo filme, “Palavra Encantada”, destaco, por ora, a emergência de um compromisso entre sociedade civil e seus poderes instituídos, pelo qual se deixe claro a todos que menosprezam os postulados jurídicos e éticos fincados na Constituição Federal que a nação brasileira não está disposta a entregar sua riqueza, hoje representada por seus muitos braços, que somente se apresentarão gratuitamente para, no máximo, ofertar uma banana! São Paulo, 24 de março de 2009. ¹. Rubens Vaz da Costa, apud, José Jobson de A. Arruda & Nelson Piletti, Toda a História: história geral e história do Brasil, Ed. Ática, 2002, p. 436. ². Cf. http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u536582.shtml. ³. Cf. reportagem da Folha de São Paulo, p. B-3, de 24/03/09. 4. Cf. noticia a rádio CBN: http://cbn.globoradio.globo.com/editorias/economia/2009/03/13/COM-ALTA-DE-11-VENDA-DE-VEICULOS-PUXA-EXPANSAO-DO-COMERCIO-EM-JANEIRO.htm.

Faltando com a História

Márcia Novaes Guedes¹“A engenheira Elza Maria Lianza, de 25 anos, presa no Rio, narrou em seu depoimento, em 1977: [...] que a interrogada foi submetida a choques elétricos em vários lugares do corpo, inclusive nos braços, nas pernas e na vagina; que o marido da interrogada teve oportunidade de presenciar essas cenas relacionadas com choque elétrico e os torturadores amplificavam os gritos da interrogada, para que os mesmos fossem ouvidos pelo seu marido”. Esse depoimento e muitos outros está no livro BRASIL NUNCA MAIS __ UM RELATO PARA A HISTÓRIA [editora Vozes, 5ª edição], livro que conta os horrores da ditadura brasileira de 1964-1985.“De joelhos, em praça pública, pedindo perdão ao povo brasileiro”! Essa foi a sentença do jurista Fabio Konder Comparato, lançada, numa carta indignada, ao editorialista e ao diretor do Jornal Folha de São Paulo. A ira de Comparato é justa. Na edição de 17/02/09, a Folha definiu a ditadura brasileira de DITABRANDA. De acordo com os donos do jornal, o regime instaurado com o golpe de estado de 1º de abril de 1964, que rompeu com a ordem constitucional, expulsou o Presidente da República, eleito democraticamente, torturou, matou e exilou inúmeros brasileiros e brasileiras, se comparada a outros regimes, não foi dura, mas branda. Diante das cartas, indignadas, de Comparato e da socióloga e professora da USP Maria Victoria de Mesquita Benevides, a Folha baixou o nível e xingou os dois. A defesa de ambos veio num manifesto com mais de 3 mil assinaturas, que circulou na internet em pleno carnaval, e a Folha se desculpou. Para a professora Maria Victoria de Mesquita Benevides, “o que explica essa inacreditável estupidez da Folha de São Paulo é um insidioso revisionismo histórico conduzido por certos políticos acadêmicos e jornalistas” [Carta Capital, 04/03]. O episódio protagonizado pela Folha não é inédito, tem precedentes históricos e consequências funestas. O maior pesadelo que torturava os prisioneiros dos campos de concentração e extermínio nazistas era __ se sobrevivessem __ descrever para os homens livres sua triste história e não serem acreditados. Viver para contar, essa foi a razão que alimentou Primo Levi a lutar pela sobrevivência em Auschwitz. Primo Levi era um jovem químico com um futuro brilhante, mas em 13 de dezembro de 1943, aos 24 anos de idade, foi capturado pelos fascistas e, como era italiano descendente de judeus, foi levado para o campo de concentração de Fossoli, perto de Modena, província de Bolonha. Em Fossoli, ele conviveu, por alguns meses, com centenas de outros prisioneiros, homens, mulheres e crianças. Num determinado dia, todos foram informados de que iriam partir no dia seguinte. Por informações dos refugiados poloneses e croatas, eles sabiam que “partir” significava Auschwitz, o maior campo de extermínio dos nazistas. Em Se Questo è Un Uomo [Se isto é um homem] __ obra recusada por diversas editoras e publicada 13 anos depois da Guerra __ Primo Levi descreve a pavorosa noite da véspera da partida. Particularmente, considero essa passagem a mais sincera homenagem a nós mulheres, por isso transcrevo-a na íntegra:“E veio a noite, e foi uma noite tal, que se sabe que olhos humanos não deveriam assistir e sobreviver. Todos sentiram isso: nenhum dos guardas, quer italianos, quer alemães, teve ânimo de vir ver que coisa fazem os homens quando sabem que vão morrer. “Cada um se despediu da vida do modo que melhor lhe competia. Alguns rezaram, outros beberam além da conta, outros se inebriaram de nefasta e última paixão. Mas as mães vigiaram e prepararam com doçura e cuidado o alimento para a viagem, lavaram as crianças, fizeram as bagagens; ao raiar do dia, os varais estavam cheios de roupas infantis estendidas ao vento para enxugar; e não esqueceram as fraldas, e os brinquedos, e os travesseiros, e centenas de pequenas coisas que elas bem sabem, e das quais as crianças sempre necessitam em qualquer caso. Não fariam também vocês a mesma coisa? Se fossem mortas amanhã com suas crianças, vocês não lhes dariam hoje o que comer?”Animado pela idéia de não permitir que aquele crime contra a humanidade, praticado no corpo de judeus e ciganos, se repetisse, Primo Levi publicou muitas outras obras e realizou dezenas de conferências em toda a Europa. E, em 1986, publica seu último livro: I Somersi e i Salvati [Afogados e Salvos]. Este livro surge, precisamente, quando ele sente que forças se erguem para cancelar a história e reabilitar politicamente o nazismo. Em Junho de 1986 se trava o confronto entre o historiador Ernest Nolte e o filósofo Jürgen Habermas. O debate se desenvolve em torno das teses do primeiro. Segundo Nolte, o genocídio nazista teria sido uma resposta ao terror comunista; a conquista do Leste Europeu entre 1944-1945 teria sido uma escolha patriótica do exército alemão e não uma estratégia para sustentar o prosseguimento, em modo ainda mais radical, do extermínio; e Auschwitz teria sido apenas uma mera inovação tecnológica. Primo Levi não viveu para ver o extermínio do povo palestino pelos judeus. E, diante das evidências de que o mundo caminhava para fazer tudo de novo, preferiu por fim a própria vida. Contemporaneamente, um bispo mereceu a mais veemente reprovação pública mundial e foi expulso da Argentina por ter negado o genocídio dos judeus. Israel, porém, prossegue incólume, exterminando crianças, mulheres e adolescentes palestinos. Em sua carta para a Folha de São Paulo, Fabio Konder Comparato deixa a lição que todo cidadão não deve esquecer: “Quando se trata de violação a direitos humanos, a medida é uma só: a dignidade de cada um e de todos, sem comparar importâncias e estatísticas”. Ao se referir a Auschwitz, Hannah Arendt lembra a mesma coisa, não importam os números. “Lá aconteceu qualquer coisa com a qual não podemos nos reconciliar. Nenhum de nós pode.” Para equacionar o dilema entre a angústia da morte e o desejo da imortalidade é que os humanos desenvolveram o culto da memória e inventaram a história. Mas, diante de fatos que nunca poderiam ter acontecido, surge o paradoxo da memória. Lembrando Hegel, Hannah Arendt ensina que, a obrigação do intelecto é compreender o acontecido. Quando compreendemos nos reconciliamos com a realidade. Então, o objetivo da compreensão é o de se colocar em paz com o mundo. Se a mente é incapaz de pacificar e reconciliar, se torna prisioneira da própria guerra __ conclui Arendt. Assim, a reconciliação se dá por meio da apuração rigorosa dos fatos, único modo de compreender qual foi o papel que cada um desempenhou. O Beatle John Lenon costumava dizer: “Não confie em ninguém com mais de 30 anos!” Hoje, é precisamente o contrário. A moçada com menos de 30 anos deve cuidar para não ficar “boiando em espumas” e depois se lamentar dessa nossa história pendular, que oscila entre ditadura plena e democracia relativa. 05 de março de 2009. ¹A autora é Juíza do Trabalho, autora do livro Terror Psicológico no Trabalho [LTr, 3ª edição], Doutora pela Universidade de Roma e membro do IBDT e da AJD.

Sonhos não Envelhecem

Márcia Novaes Guedes* Hoje [17/12] a Juíza Marielza Brandão Franco vai receber a Comenda Maria Quitéria. Trata-se de uma homenagem realizada pela Câmara de Vereadores da cidade do Salvador numa solenidade especial às 19 horas no Plenário Cosme de Farias. Conheci Marielza na Faculdade de Direito da UCSal. Dava meus primeiros passos bambos na árdua tarefa de compreender a hermética ciência do Direito e ela já dirigia o Diretório Acadêmico dos Estudantes. Tímida e magricela, jeans e camiseta [não tinha "tempo" para shopping], aos 20 anos dialogava com professores, diretor e reitor da Faculdade. Elaborava discursos, combinava debates, palestras e conferências com intelectuais. Com voz suave deslizava pelos corredores da Escola do Engenho Velho da Federação convocando todos a espantar a preguiça mental e alargar os horizontes culturais. Destemida, liderava passeatas em defesa da Universidade, do ensino público do crédito escolar, da redemocratização do país e contra o FMI e sua amarga receita de arrocho salarial. Naquela época, o país era comandado por um General que dizia preferir o cheiro de cavalo ao cheiro de gente e resolvia tudo afirmando: "eu prendo e arrebento". Na triste Bahia, um alcaide fazia cumprir zelosamente as ordens dos generais e não deixava os estudantes manifestarem em paz seu protesto nas ruas e praças em defesa da democracia e dos direitos humanos. Correrias e gás lacrimogêneo faziam parte do nosso cotidiano estudantil, mas pouco importava. Mesmo lhe fazendo oposição, estava segura de que no Diretório Acadêmico de Direito havia uma liderança na qual se podia confiar. Hoje, a Juíza Marielza Brandão preside uma das Varas da Justiça Estadual de Salvador e vai receber uma justa homenagem do povo da Bahia, a comenda Maria Quitéria. Talvez tenha gente torcendo o nariz. Natural. Na caminhada de todos e todas que, mesmo sem conhecer, seguem a lição de Antonio Gramsci, intelectual italiano que gastou sua vida [boa parte no cárcere] para nos deixar um dos melhores legados contra o fascismo, nem sempre agrada. Ensina Gramsci que, "o primeiro dever de uma pessoa que queira viver o seu tempo, de modo consciente, é aquele de recompor, de dar uma dimensão universal à visão fragmentada e ocasional que a experiência cotidiana lhe propõe". Gente dessa estirpe assume posição, toma partido, rema contra a corrente [des]constrói realidades mantidas no interesse de pequenos grupos apegados a interesses individualistas. Maria Quitéria foi uma camponesa de Cachoeira do Paraguaçu que, disfarçada de homem, se alistou nas tropas que combateram os portugueses na guerra da Independência da Bahia [1822]. Homenagear a Juíza Marielza Brandão Franco com a comenda Maria Quitéria é uma demonstração pública de que ela segue com a consciência "gramsciana" enriquecida dos louros, invisíveis aos olhos de alguns, destinados apenas aos que imantando experiências realizam o bom combate, e provam com a vida profissional que sonhos não envelhecem. * Doutora em DT pela Universidade de Roma [Tor Vergata], Juíza do Trabalho, associada da AJD.

Quem tem Medo da Democracia nos Tribunais

Marcelo Semer Nesta semana realizaram-se as eleições para os cargos de direção do Tribunal de Justiça de São Paulo, o maior do país. As eleições foram tão emocionantes quanto uma assembléia geral do PC chinês. Isto porque, dos cerca de 2.500 juízes, menos de 15% tinha direito a voto. E destes 360 afortunados, apenas 3, os desembargadores mais antigos, podiam ser eleitos. E como eram justamente três os cargos em disputa (presidente, vice e corregedor geral), tratou-se de uma dança das cadeiras sem riscos. Quando a música parou, todos os candidatos haviam assegurado um cargo de direção na Corte paulista pelo fato de serem antigos. Este culto à gerontocracia ocorreu por causa de uma recentíssima decisão do Supremo Tribunal Federal. Os desembargadores mais antigos recorreram ao Procurador Geral da República e este, por sua vez, recorreu ao STF, para fazer valer na íntegra, em seu aspecto mais literal e draconiano, norma da Lei Orgânica da Magistratura, entulho autoritário dos anos 70, que disciplina (podando, como era o espírito da época) as eleições em tribunais. Segundo a regra considerada válida, só podem disputar eleições nos tribunais os desembargadores mais antigos entre os mais antigos, na proporção de um para cada cargo em disputa. Como eram três cargos, só os três mais antigos puderam disputar. Oito meses depois da posse, nova eleição será feita para a sucessão do vice-presidente porque, sendo mesmo um dos mais antigos, já estará aposentado compulsoriamente antes da metade da gestão. No novo pleito, dada a lógica matemática da proposição, apenas um desembargador poderá ser candidato, o que exponencia o contra-senso. Pode-se imaginar que esta é mais uma daquelas decisões que os juízes tomam sem ter a exata noção das conseqüências, porque, não raro, vivem fora do mundo real. Seguem a lei em automatismo e provocam resultados não previstos ou desejados. Infelizmente não é. O STF tinha plena consciência dos resultados, tanto que o voto condutor da decisão, do ministro Cezar Peluso, demonstrou claramente a aversão às eleições. Segundo ele, o procedimento aberto estaria alimentando paixões políticas, incompatíveis com as nobres funções dos juízes. E, pela porta do pluralismo, sentenciou, “estaria aberto o caminho para o sectarismo”. É preciso dizer que a decisão do STF desconsiderou totalmente a Reforma do Judiciário, de 2004. A Emenda 45 alterou a composição dos órgãos especiais dos tribunais, de onde saem os candidatos aos cargos de direção. Minimizou a regra da antiguidade, ao prever que apenas metade dos membros deste órgão, uma espécie de Senado judicial, seriam empossados pelo critério etário. A outra metade viria pela eleição. Ao reduzir o impacto da antiguidade, a Reforma abriu a porta para eleições da direção envolvendo todos os desembargadores. A nova interpretação do STF ignorou um dos poucos avanços da Reforma do Judiciário e tratou as eleições como elas eram tratadas na década de 70. A idéia de que seja possível administrar sem política não é apenas retrógrada e conservadora, pressupondo que exista uma tecnocracia da antiguidade, mas é também destituída de qualquer fundamento razoável. Para gerir um orçamento de mais de quatro bilhões de reais, como será o de 2008, quais as prioridades da nova gestão? Apostar na construção de novos e suntuosos prédios ou em instalações de mais varas, para ampliar o serviço? Comprar modernos veículos de representação aos juízes ou apressar a informatização? Destinar verbas para mais assessores aos desembargadores ou mais funcionários para os cartórios de primeira instância? Criar varas nas periferias, onde reside a população mais carente de recursos e de justiça ou instalar juizados em aeroportos? A democracia produz racionalidade porque impõe projetos e torna claras as opções políticas. Se a democracia é imprescindível para a administração dos bens e projetos públicos do Executivo e Legislativo, porque não o seria para o Judiciário? Só teme tanto a democracia quem nela não acredita. E se não acreditamos na democracia, faz sentido que seja o Judiciário o poder a conduzi-la? Estão os juízes aptos para exercitar o gerenciamento do processo eleitoral, se na casa dos ferreiros os espetos são de paus, porque os juízes não são aptos a decidir livremente? A expansão da democracia moderna, dizia Bobbio, está no fato de mais instituições a praticarem dentro da sociedade. Em um Estado que se afirma Democrático de Direito, não há sentido a existência de lugares em que o exercício de democracia esteja proibido. Tanto mais em uma instituição pública, como o Judiciário. Opondo-se durante longo tempo à democratização interna, as cúpulas dos tribunais argumentavam que o corporativismo tomaria conta do Judiciário se houvessem eleições diretas. O que se tem visto é que a defesa dos interesses de classe está ainda mais imbricada entre os donos do poder, como se notou pela resistência dos mais antigos ao fim do nepotismo e o movimento dos desembargadores pela preservação de salários acima do teto. É ingenuidade imaginar que será possível modernizar o Judiciário, torná-lo eficiente e justo, igual e efetivo, independente e emancipador, sem que se possa democratizá-lo. É certo que a democracia interna está longe de ser suficiente para transformar o Judiciário, afinal, o Poder deve pertencer ao povo e não apenas ao conjunto de seus juízes. Mas a democratização se articula com outras exigências indispensáveis para uma necessária e profunda reconstrução da Justiça, como a valorização da independência do juiz e o controle social do serviço. Temos visto que uma coisa não vem sem a outra. Justiça democrática é aquela apta a garantir a igualdade efetiva entre as partes, que não exclua os já excluídos porque não fazem jus a pisar em seus tapetes vermelhos, de chinelos; que consiga enxergar a tarefa primordial do juiz em garantir direitos fundamentais e jamais promover a discriminação. A complexidade moderna exige um juiz atento ao caráter político da decisão e às suas repercussões sociais. Um juiz com formação interdisciplinar, que supere a vetusta idéia do direito como ciência pura, que exista não em função da pessoa humana, mas apesar dela. Um juiz-cidadão, que participe criticamente da sociedade, ponto de partida para compreendê-la e ser por ela compreendido. Um juiz que não abdique do papel de garantidor de direitos em troca de benefícios corporativos, impondo, quando necessário, a implementação de políticas públicas para assegurar que direitos escritos não se transformem em tigres de papel. E juízes que saibam gerir os recursos pensando no caráter de serviço público da Justiça e não como mera reprodutora de tradições e regalias. Medo da democracia têm os mesmos que têm medo da igualdade e, por isso, preservam redes de proteção ao poder, como imunidades parlamentares e foros privilegiados. Enfim, ao querer ver os juízes longe das paixões políticas, receando o pluralismo que é marca indistinta da democracia, o STF demonstrou que não quer um Judiciário que se afaste das tradições, que saia dos trilhos já previamente afixados, que se modernize ou se democratize. Deve manter-se onde sempre esteve, autocentrado, gerido pela gerontocracia, e de costas para o povo. Como uma legítima tropa das elites. Marcelo Semer, membro e ex-presidente do Conselho Executivo da AJD [esta matéria foi publicada originalmente na Terra Magazine, dia 07/12]

Desempenho está aquém das Expectativas

Marcelo SemerO corporativismo foi um dos impulsionadores da resistência dos setores mais tradicionais do Judiciário à idéia de controle externo. Recentes deliberações do Conselho Nacional de Justiça, no entanto, permitem questionar se o corporativismo também não se imiscuiu no próprio órgão de controle. Nas últimas semanas, soube-se que o CNJ pretendeu instituir jetons para seus membros, possibilitando furar o teto fixado na Constituição Federal. Encaminhou projeto para criação de uma centena de cargos, vários deles de livre provimento, preenchidos por indicação, e não concurso. Cedeu a pressões e permitiu a retomada das férias coletivas, contrariando determinação expressa da Constituição. É verdade que o Conselho Nacional de Justiça ainda palmilha para encontrar lugar no horizonte institucional. Também é certo que tomou decisões corajosas, como a resolução contra o nepotismo, prática patrimonialista e anti-republicana. Mas seu desempenho ainda está aquém das expectativas. O conselho tem supervalorizado uma função legisladora, preocupando-se mais em editar minuciosas resoluções do que em efetivar cumprimento das determinações, como ocorreu com a exigência de critérios para a promoção de juízes ou a limitação do teto salarial. Deu pouca relevância à democracia interna no Judiciário e mesmo ao primado da independência do magistrado. Indeferiu requerimento para preservação do princípio do juiz natural, mantendo a livre designação de juízes pelas presidências dos tribunais, o que ofende o predicado da inamovibilidade. Teve conduta hesitante na questão da eleição para os órgãos especiais dos tribunais. Impediu a votação, no primeiro momento, e depois acabou por restringir os cargos em disputa. Por fim, esvaziou a atuação democrática no interior dos tribunais plenos, obstando a modernização da administração. A Justiça é serviço público e deve responder ao princípio da transparência, permitindo ao cidadão o controle de seu funcionamento. Por isso, a idéia de controle externo não pode ser desprezada. Mas sem o apego a princípios básicos - como o prestígio à independência do juiz e à moralidade administrativa sem espírito de corpo, além do respeito à democracia interna - o CNJ dificilmente se desincumbirá a contento de seus objetivos. *Marcelo Semer, juiz de Direito em São Paulo, é presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia [ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL "O ESTADO DE S. PAULO", NA EDIÇÃO DE 07/12/06]

Vencendo as Resistências

Marcelo Semer Desde 1989 , a Constituição do Estado de São Paulo já previa que metade dos integrantes do Órgão Especial do Tribunal de Justiça fosse provida por eleição. O TJ-SP ignorou a norma, mantendo o preenchimento dos cargos exclusivamente por antiguidade, sob alegação de que a regra não estava prevista na Constituição Federal. Mandado de segurança destinado a fazer cumprir esse direito se arrastou por mais de uma década no Superior Tribunal de Justiça sem julgamento. Em janeiro último, promulgou-se a emenda constitucional nº 45, pela qual a dita eleição foi finalmente incorporada à Carta Federal. Os tribunais de todo o país, no entanto, continuam a ignorá-la, argumentando agora que a própria Constituição não é suficiente e, por isso, deve-se aguardar regulamentação por lei. Esse é apenas um exemplo do quanto os tribunais têm sido refratários a mudanças. E está longe de ser um caso isolado. Mesmo depois que a Constituição Cidadã dispôs que a administração devia ser regida pelo princípio da publicidade e que as decisões dos órgãos judiciais tinham de ser motivadas, as cortes do país continuaram a realizar anacrônicas sessões secretas, nas quais proferiam decisões sem fundamentação, ainda que versassem sobre o veto a algum magistrado ou a promoção de outro antes do tempo. Essa centralização do poder e a opacidade de seu exercício tornaram o Judiciário vulnerável a críticas, principalmente no que concerne à utilização de recursos para a construção de prédios e outros fins que não os da agilização e modernização da prestação jurisdicional. Exatamente porque não passa pelo crivo do voto popular, impõe-se ao Judiciário uma gestão transparente, de tal modo que permita ao cidadão o controle de seu funcionamento. O enclausuramento estimulou a demanda social por um órgão externo de controle. É bem verdade que, durante os trabalhos da reforma do Judiciário, muitos defenderam o controle por seus vícios e, com isso, procuraram intimidar os juízes com a ameaça de um órgão externo cada vez que tomavam ciência de uma decisão que lhes desagradavam. Mas também é certo que a resistência ao órgão externo tem se dirigido justamente contra suas virtudes, como agora se observa com a reação que alguns presidentes de tribunais e todos os corregedores-gerais tiveram ao (CNJ) Conselho Nacional de Justiça, mais especificamente à resolução que vedou o nepotismo (conforme noticia esta Folha na edição de 13/11). O argumento da crítica é a preservação da independência ou do autogoverno do Poder Judiciário. Mas o que os próprios tribunais têm feito durante esses anos todos para garantir a independência do juiz? No âmbito externo, muito pouco, como se sabe. Tribunais estaduais têm visto propostas orçamentárias serem cortadas nos palácios de governo antes mesmo de chegarem ao Legislativo, sem qualquer reação pública, suplicando no curso do ano por verbas de suplementação para o pagamento de suas despesas. No que diz respeito à independência interna, a situação é ainda mais precária. Sem critérios objetivos, tribunais utilizam o merecimento como estímulo à submissão. E a manutenção de centenas de cargos de juízes de livre designação faz com que magistrados de longo tempo de carreira possam ser retirados da condução de processos em que estejam atuando por simples atos administrativos, em desrespeito ao princípio do juiz natural e à garantia da inamovibilidade. Ainda há muito a discutir acerca dos limites de atuação e competência do Conselho Nacional de Justiça, além de democratizar também neste órgão o processo de escolha de seus integrantes. Mas o CNJ é hoje uma realidade, e é fato que deslocou o centro de poder na administração da Justiça. Faz jus à conclusão a que muitos já haviam chegado, de que o Poder Judiciário jamais se renovaria por dentro. A edição da resolução nº 7 é um bom exemplo disso. O CNJ partiu da interpretação que os tribunais poderiam ter tomado, considerando a nomeação de parentes em cargos de comissão uma afronta aos princípios da moralidade administrativa e da impessoalidade, previstos no artigo 37 da Constituição Federal desde 1988. O fim do nepotismo no Judiciário é, por isso mesmo, uma decisão acertada, destinada a impedir a utilização de cargos públicos em benefício pessoal. E representará o começo do fim do nepotismo na administração pública. Porque, ainda que Executivo e Legislativo não se sintam estimulados a aplicar analogamente a regra, o que aliás se espera, é bem possível que a nomeação de parentes venha a ser submetida a provimento judicial. Basta que o Ministério Público, cujo conselho nacional também adotou a regra antinepotismo, ajuíze ações civis com o mesmo fundamento que norteou a decisão do CNJ. Marcelo Semer, 39, é juiz de direito em São Paulo e presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia. (publicado no Jornal Folha de S. Paulo, em 21/11/05) Leia o comentário a este artigo na edição de 03/12, da Folha de S. Paulo. LETRAS JURÍDICAS Uma pauta na eleição do TJ-SP WALTER CENEVIVA COLUNISTA DA FOLHA O juiz paulista Marcelo Semer, em artigo na terceira página desta Folha (21/11/05), fez crítica ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) por não cumprir norma da Constituição estadual que lhe impõe a eleição (e não o exclusivo critério de idade) dos componentes dos 25 membros de seu Órgão Especial. Mandado de segurança destinado a fazer cumprir essa norma se arrastou por mais de dez anos no STJ, sem julgamento. Sobrevindo a EC 45/ 04, a resistência à eleição democrática prossegue. Mas não é só. Semer alinha outros descumprimentos da lei: a) as decisões dos órgãos judiciais devem ser dadas ao conhecimento de todos. Continuam não fundamentadas e mantidas em segredo; b) recursos financeiros são aplicados na construção de prédios e outros fins. Não nos da agilização na prestação de seu serviço essencial aos jurisdicionados; c) a transparência da administração continua negada, tornando inviável o controle de seus serviços; d) as irregularidades produzem reações de desconfiança, estimulando a ação dos que desejam transformar o controle externo em maneira de atemorizar a magistratura. Há tribunais resistentes à vedação do nepotismo, resolvida pelo Conselho Nacional de Justiça. Nesta semana foi noticiada a posição das entidades nacionais de magistrados e de advogados (AMB e OAB) contra privilégios a parentes, no Judiciário. Há tribunais recusando aplicar a resolução, sob a desculpa de defenderem a independência e o autogoverno do Poder Judiciário. O articulista aponta no sentido oposto: o TJ-SP tem feito muito pouco para assegurar a independência interna e externa. Exemplifica com a aceitação de cortes pelo Executivo de suas propostas orçamentárias, que o levam a suplicar (não menos que suplicar), em cada exercício, verbas suplementares. Na independência interna a precariedade é maior. O sistema do merecimento para promoções é usado para impor a submissão dos magistrados. A crítica de Semer, muito ponderada, ainda que enérgica e pormenorizada, deveria merecer de parte da direção do tribunal paulista o estabelecimento de diálogo aberto com a magistratura, pelos meios de comunicação social, a respeito dos problemas discutidos. Tanto quanto seja de meu conhecimento, o diálogo não existiu. Se adotado, constituirá parte de uma pauta que aproveitará a eleição do novo presidente do Tribunal de Justiça na próxima semana, a começar com os mais de 400 mil processos aguardando julgamento, sem solução previsível a curto prazo. Espera-se do eleito e de seus companheiros a definição precisa, clara, objetiva, dos fins a serem visados, das soluções propostas e do tempo de sua aplicação. A tarefa é difícil. A Justiça paulista não se preparou, com suficiente antecipação para os problemas que adviriam com a reforma do Judiciário. Os tribunais de alçada, incorporados ao Tribunal de Justiça, fizeram deste a maior corte judicial do Brasil. O número de seus juízes logo ultrapassará 400. Os alçadas extintos ainda funcionam separadamente, com sistemas eletrônicos diversificados (cuja intercomunicação é complicada), seguem rotinas administrativas variadas. Agravam o que já era grave. A principal qualidade esperada no futuro eleito, entre os quatro candidatos a presidente (Mohamed Amaro, Rui Pereira Camilo, José Mario Antonio Cardinale e Celso Luiz Limongi) será a coragem no agir. Será o destemor no decidir. A história e os muitos anos de experiência dos candidatos dão esperança de qualidade. Se o eleito corresponder a ela, o povo será beneficiado.

Em Nome da Dignidade Humana

Kenarik B. FelippeO PAPEL do magistrado em relação ao tema da união heterossexual, assim como em todos os demais, é o de ser o garantidor dos direitos humanos. Constatamos que a legislação infraconstitucional e, principalmente, o pensamento transmitido nas universidades têm como ponto irradiador a propriedade, o que deu vazão para que o reconhecimento das relações pessoais ocorra nos estritos termos de uma sociedade de fato, na qual o sentido é exclusivamente a divisão do patrimônio. Sob este ângulo, são inexistentes para aqueles que não têm bens. Há um mundo de excluídos entre os excluídos homossexuais. Contudo, os povos deram primazia, por tratados internacionais, ratificados pelo Brasil, ao valor da dignidade humana, acolhido como paradigma e referencial ético. É nesse nível que a relação homoafetiva deve ser analisada, para qualquer efeito e finalidade. Importante registrar que direitos humanos "não nascem todos de uma só vez e nem todos de uma vez por todas". É um processo em construção, no qual o Judiciário tem papel fundamental, que realiza pelas decisões de primeira instância, construindo a jurisprudência e dando vida ao direito em seu processo de transformação, acompanhando o giro do mundo. Antes falávamos de heterossexuais; agora, de relações homoafetivas. O núcleo da relação e da vida é outro, e essa compreensão os operadores do direito precisam alcançar. O Judiciário engatinha, mas há passos significativos. O STJ, em ementa que teve como relator o ministro Quaglia Barbosa, que tratava de direito previdenciário, fez constar: "Não houve, pois, de parte do constituinte, exclusão dos relacionamentos homoafetivos, com vista à produção de efeitos no campo previdenciário, configurando-se mera lacuna, que deve ser preenchida a partir de outras fontes do direito". Outra ementa, que teve como relator o ministro Humberto G. de Barros, indicou que "a relação homoafetiva gera direitos e, analogicamente à união estável, permite a inclusão do companheiro dependente em plano de assistência médica". O TSE, recentemente, considerou que o relacionamento homossexual estável gera a inelegibilidade prevista no artigo 14, parágrafo 7º, da CF. Temos inúmeras decisões relativas à guarda de filho e herança decorrente de relações homoafetivas. Em legislações estrangeiras, há previsão expressa de matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, como na Dinamarca, França, Portugal, Suécia e Alemanha, entre outros. Em alguns países, há autorização de registro de casais de um mesmo sexo e contratos especiais, como na Colômbia e Espanha e em algumas Províncias da Argentina e do Canadá. No Brasil, temos proposições legislativas de caráter restrito que não chegaram a termo e estão nos meandros do Congresso. Entretanto, obrigatório ressaltar recente norma brasileira, a Lei Maria da Penha, que trata da violência doméstica e introduz novo parâmetro de aplicação do direito na matéria, ao estabelecer no artigo 5º que as relações pessoais "independem de orientação sexual". A relação homoafetiva é um fato; hipocrisia fechar os olhos para sua existência e cruel não garantir dignidade para essas pessoas. Ainda que o nosso ordenamento jurídico infraconstitucional não discipline os direitos advindos das relações homoafetivas, a dignidade da pessoa humana é fundamento da República, que acolheu os princípios da igualdade e da liberdade. Assim, cristalino que a união estável não pode ser entendida como exclusivamente heterossexual. Cabe ao magistrado atuar no vácuo normativo. Fábio Konder Comparato lembra que "a finalidade última do ato de julgar consiste em fazer justiça, não em aplicar cegamente as normas do direito positivo. Ora, a justiça, como advertiu a sabedoria clássica, consiste em dar a cada um o que é seu. O que pertence essencialmente a cada indivíduo, pela sua própria natureza, é a dignidade de pessoa humana, supremo valor ético. Uma decisão judicial que negue, no caso concreto, a dignidade humana é imoral e, portanto, juridicamente insustentável". Os magistrados têm a obrigação de dar eficácia à idéia de que os seres humanos devem ter uma vida digna como atributo indissociável de suas existências, e só atingiremos essa meta se, na lacuna legislativa, deixarmos de tratar as pessoas envolvidas em relações homoafetivas como sujeitos de segunda classe ou não sujeitos. KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE, 47, juíza de direito em São Paulo, é presidente da Federação de Associações de Juízes para a Democracia da América Latina e Caribe e secretária do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia. [Artigo publicado na seção Tendências e Debates, do jornal Folha de S. Paulo, edição de 04/11/06]

Uma Decisão Republicana

Marcelo Semer Foi preciso a criação de um órgão de controle externo para que o nepotismo no Judiciário sofresse o seu mais duro golpe. Com a resolução editada em outubro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou a exoneração dos funcionários em cargos de comissão e funções de confiança que sejam parentes de magistrados e servidores com cargos de direção integrantes dos tribunais a que estejam vinculados. A utilização da função pública para a consecução de interesses ou benefícios privados assenta o caráter anti-republicano das nomeações de parentes de juízes. Pesquisa realizada pela Fundação Joaquim Nabuco e pela Associação Juízes para a Democracia, em Pernambuco, revelou, às vésperas da decisão do CNJ, que, entre os funcionários do Tribunal de Justiça daquele Estado que exerciam cargos de confiança e não eram servidores efetivos, 40% dos nomeados eram parentes de desembargadores. Embora não se tenha um levantamento parecido em outros Estados, é de imaginar, até pela recorrência do tema no noticiário nacional há décadas, que o quadro não seja incomum. Suspeitando que apenas uma orientação não seria capaz de ser acolhida pelos Judiciários Brasil afora, o CNJ determinou desde logo a exoneração de todos os parentes, fixando prazo de 90 dias. Em vários tribunais já se antevêem argumentos contrários ao cumprimento da ordem. Os fundamentos da irresignação são vários: a exoneração não está definida em lei; a resolução não poderia ser retroativa e atingir os atuais ocupantes dos cargos; a demissão ao mesmo tempo de tantos funcionários poderia causar um atraso sem precedentes no Judiciário. Ora, a decisão se funda na interpretação que de há muito os tribunais deveriam ter dado ao artigo 37 da Constituição federal, em especial à rigidez dos princípios da moralidade e impessoalidade. O ingresso de parentes pela via do comissionamento, muitas vezes em exercício com o próprio magistrado familiar, é uma afronta à impessoalidade e um dano irreparável à moralidade administrativa. Muito maior que o eventual retardo na fase de transição para a nomeação de outros servidores sem laços familiares, ou, de preferência, aprovados em concursos públicos. O prazo para a exoneração não é exíguo, se contarmos que a Constituição federal foi promulgada em 1988. Dandose a nomeação, ademais, a título precário, não há direito à estabilidade nos cargos. A decisão do CNJ de pôr fim ao nepotismo não é arbitrária nem descabida. Está inserida entre as competências que lhe foram conferidas pela Emenda 45, entre as quais a de zelar pelo cumprimento do artigo 37 da Constituição federal nos tribunais, inclusive para desconstituir atos administrativos que o violem. É verdade que o nepotismo não se abriga exclusivamente no Judiciário. Ele está presente no Executivo e, despudoradamente, no Legislativo. Um ex-presidente da Câmara dos Deputados se jactava de sua capacidade de arrumar emprego para parentes, todos supostamente capazes e competentes, mas não concursados. O deputado, forçado a renunciar pela publicidade de outras mazelas ainda mais graves, está, no entanto, longe de ser uma exceção entre os pares que o haviam elegido. Tendo a decisão do CNJ se originado da interpretação dos princípios que regem a administração pública, firmados pela Constituição federal, é de esperar que os outros Poderes a tomem como paradigma para expurgar o nepotismo também em seus domínios, de modo que a moralidade não seja preservada na administração pública apenas pela metade. Ou que, não o fazendo, o Judiciário decida pela ilegalidade de tais nomeações. Do CNJ se aguarda que prossiga na tarefa de fazer a administração judiciária cumprir a Constituição e os comandos da Lei Orgânica da Magistratura, sem ceder a corporativismos ou ao pragmatismo das cúpulas. Em suas mãos repousa agora uma representação para fazer cumprir o princípio do ´juiz natural´, tão desrespeitado em diversos Estados da Federação. Há no País juízes exercendo cargos de livre designação, podendo ser afastados ou removidos sem nenhum motivo, ainda que durante o julgamento de um processo, mesmo que a Constituição garanta a inamovibilidade. E existem membros da cúpula dos tribunais concentrando indevidos poderes para decisões de urgência. O princípio do ´juiz natural´ visa a preservar, fundamentalmente, a imparcialidade do julgamento. A necessidade de distribuir por sorteio os processos a juízes previamente definidos se justifica para evitar escolha de julgadores pelas partes ou de processos pelo próprio juiz, como se noticia ter ocorrido no TRT paulista. A distribuição imediata de processos, consignada na Emenda 45, impede que um único juiz seja escolhido para decidir todas as matérias liminares em tribunais, mesmo que seja ele o presidente ou o vice-presidente da Corte. Recentemente, foi noticiado que uma medida liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) foi decidida à noite por seu presidente, antes que o processo pudesse ser distribuído ao relator sorteado, seu juiz natural. O fato poderia ter assumido maiores proporções porque, à vista de insinuação de supostos interesses político-partidários, o comportamento do primeiro mandatário do Judiciário nacional tem sido severamente questionado, como se evidencia em editorial deste mesmo jornal do último dia 21/10. Tal como o nepotismo e a promoção por indicações políticas, a prática de livre designação de juízes e a concentração de poder nas mãos de um membro da cúpula também afrontam atributos que o Judiciário tem de mais caros: a independência do magistrado e a imparcialidade de suas decisões. Marcelo Semer, juiz de Direito em São Paulo, é presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia. (publicado no Jornal O Estado de S. Paulo, 03/11/05)

O Protesto das Togas

Márcia Novaes Guedes* A semana terminou com os Juízes do Trabalho na Praça pública, se mobilizando pela efetivação dos direitos trabalhistas. Em Salvador, os Juízes se colocaram em frente ao Elevador Lacerda, cartão postal da cidade, na Praça Tomé de Souza, para distribuir uma cartilha que detalha os direitos básicos dos trabalhadores, isto é, o contrato mínimo: Carteira do Trabalho e Previdência Social, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, jornada de trabalho de 44 horas semanais, segurança e saúde, repouso e alimentação entre as jornadas, férias e gratificação de Natal e, quando dispensado, aviso prévio e seguro desemprego. As mobilizações fazem parte da Campanha Nacional lançada pela Anamatra(Associação dos Magistrados do Trabalho) que escolheu o dia 05 de outubro (Dia da Cidadania) para a luta contra a flexibilização dos direitos dos trabalhadores brasileiros. E também denunciar diversas outras violações das relações de trabalho como a terceirização e o cooperativismo fraudulentos, a contravenção penal pelo descumprimento das normas de segurança, higiene e saúde do trabalhador e o assédio moral. A Campanha tem como objetivo, também, reforçar e acelerar as discussões em favor das mudanças na legislação tendo como móvel a efetividade dos direitos trabalhistas, considerados essência dos Direitos Fundamentais da Pessoa Humana. Para outras informações, a Anamatra disponibilizou um site exclusivo para a Campanha: www.anamatra.org.br/efetivação. Apesar de afogados em leis, a maioria dos trabalhadores brasileiros vive precariamente na informalidade. Um dos pontos altos da Campanha é o respeito à CLT - Consolidação das Leis do Trabalho, uma senhora lei de quase 70 anos, cujo artigo 29 determina que o empregador anote a data de admissão, a remuneração e as condições especiais de trabalho, se houver. Além de registrar, carimbar e assinar o documento no prazo de 48 horas. Sem CTPS assinada, o trabalhador é menos cidadão. Não pode comprar a crédito, abrir conta nem fazer empréstimo bancário. Nem sequer sonhar com a aquisição da casa própria, pois sem registro na CTPS não há recolhimento de FGTS. Se adoecer ou, se for mulher e engravidar, vai depender da caridade pública, pois o sistema previdenciário é tripartite - quer dizer, funciona com a contribuição do Governo, dos patrões e dos trabalhadores, de quem o empregador está obrigado a descontar e recolher mensalmente ao INSS. O desrespeito a essa norma básica das relações de trabalho no Brasil é incentivada pela indiferença da sociedade, que dá de ombros para a banalização do mal no trabalho. A falta de registro em CTPS, com a finalidade de fraudar os direitos do empregado e a Previdência Social, é considerada crime, previsto no artigo 297, § 4º do Código Penal. O resultado dessa medida, porém, é pífio, pois os patrões continuam contratando ao arrepio da lei, sob a desculpa de que não podem arcar com os encargos sociais. E entre Juízes e Promotores de Justiça corre acirrada discussão acerca da competência da Justiça do Trabalho para impor tal condenação. Afora a atuação corajosa de uns poucos juízes, que, tomando os direitos fundamentais como base de suas decisões, condenam empregadores em danos morais e não admitem instruir alegação de justa causa levantada pelo empregador quando este não cumpriu as obrigações do contrato (CLT, art. 483, d), a ilicitude não encontra cobro diante da insuficiente fiscalização do ministério do Trabalho. O brasileiro é cordial e, certas vezes, indiferente à injustiça social. Participamos das festividades, aniversários e casamentos sem nos preocupar se os "serviçais" têm seus direitos básicos respeitados. Entramos e saímos de lojas, mercados e shoppings sem reparar que o comércio contrata salário mínimo e comissões, mas, na prática, continua valendo a regra "se produzir come, se não produzir, não come". O desprezo pelos pobres, em algun, vai além: temos medo deles. Numa festa de aniversário ouvi de uma médica a seguinte explicação: "os pobres são confundidos com bandidos, porque nessa classe o número deles é maior". Sonegar salários e outros direitos sociais não é considerado furto. E apesar da redação da Lei 9.983, de 14/07/2000, que introduziu o § 4º ao artigo 297 do Código Penal, para o jurista Damásio de Jesus não constitui delito a singela conduta do empregador deixar de registrar o empregado. Domésticas e babás trabalham 12 horas seguidas, muitas vezes sem receber o salário mínimo, cuidando da casa e dos filhos da classe média, enquanto os filhos delas crescem sem a companhia dos pais e do Estado. O desprezo que as classes abastadas e remediadas nutrem pelos trabalhadores sugere temas ao teatro do absurdo. Minha fisioterapeuta contou-me que, ao ser apresentada a uma distinta dama da sociedade local, dentre as lições de boas maneiras e etiquetas, ouviu a seguinte pérola: "não deveria permitir que a babá de seu filho se vestisse de modo a causar confusão nas pessoas, a babá não poderia ser confundida com sua irmã". Afinal, ela (a babá) deveria saber qual é o seu lugar na escala social! Esse inominável preconceito social encontra reforço na imprensa dominante. Recentemente, a colunista de um dos mais lidos jornais do País - cuja circulação média, de segunda a sexta-feira, é de exatos 299.473 exemplares -, orgulhosamente revelou no frontispício da primeira página (!), ao ensaiar uma explicação para o apoio popular revelado por uma pesquisa de opinião ao presidente da República, que o apoio vem dos "seres simples", beneficiados pelos programas sociais. O sentido discriminatório da opinião veiculada pelo jornal, felizmente, não passou despercebido por um jornalista, famoso por sua independência de opinião, que concluiu: a colunista, certamente, se considera um "ser complexo". A República e a economia de mercado foram forjadas com a exclusão dos ex-escravos, considerados sub-raça destinada ao desaparecimento. A nação desejada por nossa elite não poderia ser formada pelo "rebotalho", mas pelo branco europeu, cuja imigração foi incentivada. Somos o único povo que conseguiu se "modernizar" sem romper com a senzala. De modo inédito, a transportamos para os modernos e arrojados prédios de apartamentos, onde uma linha divisória, aparentemente invisível, separa a "área de serviço" da "área social". Do velho engenho de cana-de-açúcar ao agronegócio do etanol, nosso processo civilizatório segue linear, combinando exclusão social e cinismo que se revelam no emprego da fraude nas relações de trabalho, incluindo, em pleno século XXI, o trabalho escravo nos setores de ponta da economia. A resistência da elite brasileira em se tornar cidadã é notória. Segundo Raymundo Faoro, nossa elite é marginal. A elite manda, mas não aceita ser cidadã. Essa elite marginal imagina que pode modernizar o país excluindo o povo e os que pensam em defesa da inclusão social, como na sátira de Machado de Assis, descrita no conto "O Alienista", no qual um sábio, a pretexto de estudar a loucura, interna num hospício três quartos da população. Assim, o projeto de "modernização" dessa elite marginal inclui a redução de pessoas à condição análoga à de escravo. Na verdade, o trabalho escravo contemporâneo é um elo na cadeia produtiva que vem sendo denunciado pelo Bispo de São Felix do Araguaia, Dom Pedro Casaldaliga desde 1971. O crescente aumento do número de denúncias obrigou o governo a criar o Grupo Móvel de Fiscalização do ministério do Trabalho, que, em parceria com organismos não governamentais e com a Procuradoria do Trabalho, já libertou, desde o início do programa, mais de 25 mil trabalhadores escravos. A maioria está concentrada nas atividades de criação, pastagem e insumos agrícolas, seguidos daqueles encontrados nas plantações de soja e de algodão e nas atividades de plantio e corte de cana-de-açúcar. A Justiça do Trabalho, porém, se apercebeu do problema muito mais tarde e somente em 2005 instalou a Vara do Trabalho de São Felix, onde hoje a corajosa atuação do Juiz João Humberto Cesário no combate e erradicação do trabalho escravo tornou famosa a região, antes conhecida como o "Vale dos Esquecidos". O lobby desses "modernos" senhores de engenho, no entanto, é poderoso, a ponto de suspender o trabalho de fiscalização do ministério. Na segunda-feira, 24 de setembro, a Justiça do Trabalho aceitou a Ação Civil Pública movida pela Procuradoria do Trabalho que, com base no resultado de uma fiscalização realizada pelo Grupo Móvel, denuncia a existência de trabalho escravo na Pagrisa. Na fazenda dessa empresa em Uianópolis, a 417 km de Belém, foram encontrados 1.060 trabalhadores reduzidos à condição análoga á de escravos. Essa foi a maior libertação já feita desde a criação do Grupo. "Eles nos tratavam como porcos". Assim um dos trabalhadores libertados resumiu as condições de trabalho na Pagrisa. E não exagerou. Segundo os relatórios dos fiscais, a empresa violava as normas de proteção ao salário praticando o velho e abominável truck system (vendendo alimentos e remédios aos trabalhadores por preços bem superiores aos praticados no mercado livre); e praticava contravenção penal descumprindo as normas de higiene, saúde e segurança do trabalho, obrigando os empregados a trabalhar sem descanso. E até os alimentos fornecidos estavam deteriorados com a presença de bactérias, vermes e fungos. Acontece que os donos dessa empresa são poderosos e têm aliados de peso no Senado Federal. Flexa Ribeiro (PSDB-PA) e Kátia Abreu (DEM-TO), acusaram os fiscais de praticarem "abuso de poder", e conseguiram suspender o trabalho de fiscalização. Desde o dia 20 de setembro, as ações de combate e erradicação do trabalho escravo estão suspensas. A construção da nossa racionalidade passa pela destruição dessa elite, isto é, vai acontecer na medida em que ela se tornar cidadã. Nisso os Juízes podem dar uma grande colaboração: primeiro, fazendo tesouro da lição de Hannah Arendt (Eichmann em Jerusalém, 1962), segundo a qual a Justiça não admite a teatralidade dos gestos, das condutas estudadas, mas requer o isolamento. Admite mais a tristeza do que a raiva, e pede a mais cautelosa abstinência diante de todos os prazeres de estar sob a luz dos refletores. Segundo, é preciso cuidar para que o protesto na praça pública não se transforme num palanque feito sob medida para os ávidos de ascensão profissional, mas que em nome da disciplina judiciária seguem indiferentes, remando a favor da corrente e dando as costas à desestabilizadora banalização do mal. Por fim, é preciso não esquecer que o povo, cansado da injustiça social, deseja ver coerência entre o discurso e a prática judiciária. O trabalho dos Juízes não termina na Ágora, mas no fórum, no recesso do gabinete e a efetividade da justiça vai acontecer na medida em que os juízes se empenharem em reverter com decisões corajosas o resultado de uma pesquisa científica recentemente divulgada e que revela que o Judiciário brasileiro, inclusive o trabalhista, não realiza justiça social. * Márcia Novaes Guedes é juíza do trabalho, doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de Roma - Tor Vergata e membro da Associação dos Juízes para a Democracia. [Artigo publicado originalmente na revista Terra Magazine, dia 08/10]

A Justiça e a Vídeoconferência

Kenarik Boujikian Felippe "A justiça é algo essencialmente humano" Aristóteles RECENTE decisão do Supremo Tribunal Federal trouxe à tona o tema do uso da tecnologia e o papel do juiz como garantidor dos direitos fundamentais. Em 2002, a Associação Juízes para a Democracia, a Associação dos Advogados de São Paulo, o Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a OAB-SP, o IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), a Apesp (Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo), o Sindiproesp (Sindicato dos Procuradores do Estado, das Autarquias, das Fundações e das Universidades Públicas do Estado de São Paulo) e o Iddd (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) se manifestaram conjuntamente sobre o tema e apresentaram reflexões sobre os graves problemas e as conseqüências danosas da videoconferência para o sistema de justiça, o que foi reconhecido, por unanimidade, pela 2ª Turma do STF, em julgamento cujo relator foi o ministro Cezar Peluso. Evidentemente, essas instituições desejam o aprimoramento da Justiça com o uso de meios tecnológicos para agilização da prestação jurisdicional, mas, em hipótese nenhuma, a título de sermos modernos, podemos suprimir direitos fundamentais. É indispensável o investimento em tecnologia nos processos criminais, que pode ser usada de várias formas, como a digitalização dos processos, a certificação digital, a criação de rede que possibilite a requisição dos presos sem delongas, a expedição de mandados de prisão e de intimação, um sistema de informações que permita a comunicação de dados entre o Executivo (inquéritos policiais) e o Judiciário, para que tenhamos agilidade e transparência das informações e melhor acesso para as partes. Dizem que, com a videoconferência, acabaríamos com o problema de fugas de presos no trajeto de transporte para audiências, o que é fato raríssimo, a contar nas mãos nas últimas décadas. Invocar o custo econômico do transporte de presos para justificar a adoção de medida que atenta contra as garantias constitucionalmente asseguradas é inadmissível, pois o Estado de Direito tem o seu preço. Modernizar a Justiça é utilizar os meios tecnológicos para a celeridade da prestação jurisdicional, e não para a subtração de direitos e garantias expressos na Constituição Federal, decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais. Nessa matéria, um dos princípios de relevo é a garantia constitucional de ampla defesa, que inclui a autodefesa, a qual pressupõe o direito de presença e de audiência. Os tratados internacionais ratificados pelo Brasil determinam a apresentação do preso, em prazo razoável, diante do juiz para ser ouvido, com as devidas garantias. Ora, não se trata de presença ficta, mas real. Os tratados de ordem regional, dos quais o Brasil é signatário, não contemplam a possibilidade da videoconferência. As hipóteses permissivas de videoconferência, no sistema global, são de aplicação excepcional, como se vê nas convenções de Palermo e de Mérida, a primeira referente ao crime organizado transnacional, e a segunda, à corrupção, notadamente de funcionários com cargos no Legislativo, no Executivo ou no Judiciário, e sempre cercadas de garantias, observando-se o caráter de aplicação restritíssima, como o efetivo perigo para a testemunha ou estar em outro Estado-parte. O fato é que assim começam as tiranias. Num dia, tiram dos mais vulneráveis, e nada dizemos porque não conseguimos nos ver nos outros, principalmente se são presos, negros, mulheres ou homossexuais. Admitimos que façam "experiências" com os direitos que são de todos porque não nos vemos atingidos, porque não temos o sentido ético do "nós". No dia seguinte, a experiência será outra e mais outra, até que não nos deixam mais falar e só então percebemos que os outros somos nós. O julgamento do STF faz lembrar "Tempos Modernos", no qual Chaplin criticava a prevalência da máquina sobre o homem, a exigir que o foco da vida fosse o humano. O STF fez a opção. Esse julgamento deve servir de parâmetro e reflexão a todos e, nesse momento, principalmente aos legisladores, que até agora bem rejeitaram as propostas, evitando danos maiores ao sistema de justiça e à segurança. O paradigma está posto: nada substitui a humanidade no exercício de qualquer dos poderes do Estado. KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE é juíza de direito da 16ª Vara Criminal de São Paulo, membro fundadora e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia. [Artigo publicado originalmente no Jornal Folha de S. Paulo, edição de 18/09/07]

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